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12 mil mulheres são agredidas diariamente no Brasil, aponta pesquisa

por Victor Matioli - publicado 28/08/2018 14:25 - última modificação 26/04/2021 17:28

No evento Acesso à Informação e Violência Contra as Mulheres, realizado no dia 23 de agosto, pesquisadores buscaram entender como as discussões sobre o tema têm evoluído no Brasil e refletiram sobre as maneiras pelas quais as pesquisas científicas podem contribuir para o conhecimento da violência contra as mulheres em suas dimensões sociológicas e políticas.
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De acordo com o projeto Relógios da Violência do Instituto Maria da Penha (IMP), a cada 7,2 segundos uma mulher sofre agressão física no Brasil. Hoje, portanto, 12 mil mulheres serão agredidas. Outras 33 mil sofrerão ofensas verbais e mais de 5 mil serão ameaçadas com facas ou armas de fogo. Ainda hoje, segundo este levantamento, 12 mulheres serão assassinadas. Mesmo com a gravidade desse panorama, dados mais claros e precisos sobre a violência contra mulheres ainda são insuficientes e inacessíveis, como mostram estudos realizados pelas ONGs Artigo 19 e Gênero e Número.

No evento Acesso à Informação e Violência Contra as Mulheres, realizado no dia 23 de agosto no IEA-USP, pesquisadores buscaram entender como as discussões sobre o tema têm evoluído no Brasil e refletiram sobre as maneiras pelas quais as pesquisas científicas podem contribuir para o conhecimento da violência contra as mulheres em suas dimensões sociológicas e políticas.

O evento foi organizado por Wânia Pasinato, assessora técnica do USP Mulheres e membro do grupo de pesquisa Direitos Humanos, Política, Memória e Democracia do IEA. Também participaram da mesa, expondo suas pesquisas e perspectivas, Manuel Lisboa, diretor do Observatório Nacional de Violência e Gênero (ONVG) da Universidade Nova de Lisboa (UNL), e José Raimundo de Araújo Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Lisboa relatou a experiência portuguesa de 45 anos com políticas públicas voltadas para a igualdade de gênero e proteção das mulheres. Araújo expôs parte da metodologia e dos resultados da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (PCSVDFmulher), que tem ajudado a desenvolver desde 2016 na UFC.

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Manuel Lisboa: "Não basta fazer propagandas na TV, porque
isso não ‘atinge’ a mulher, é necessário ir até o bairro, até a rua,
até a vítima"

A experiência portuguesa

“Até 1974, Portugal era um país extremamente arcaico, onde as mulheres não acumulavam muitos direitos”, contou Lisboa. “Se uma mulher casada quisesse fazer uma viagem internacional, por exemplo, precisava de uma autorização expressa do marido”. A partir da segunda metade da década de 1970, entretanto, Portugal iniciou uma empreitada política para reduzir as desigualdades de gênero e combater a violência contra a mulher.

Segundo ele, o esforço estava relacionado ao anseio de criar uma nação mais democrática, que se afastasse do regime autoritário criado por Salazar e que perdurou até 1974. “Percebeu-se que, para lutar pela democracia, era necessário trazer para o debate público a questão da desigualdade de gênero”, completou. Hoje, quase 45 anos depois do fim do regime, Portugal acumula seis grandes planos nacionais de inclusão e proteção de mulheres e um plano estratégico para a próxima década.

Lisboa divide a experiência portuguesa em três períodos. No primeiro, marcado pelo combate e prevenção da violência, o desafio era entender a hostilidade. O resultado máximo desta primeira fase foi o 1º Inquérito Nacional sobre a Violência Contra as Mulheres, concluído em 1995. O documento revelou que 50% das portuguesas com mais de 18 anos já haviam sofrido violência ao menos uma vez, na maior parte das vezes dentro de casa, e que somente 1% das vítimas denunciava os abusos.

O Inquérito deixou clara a fragilidade do sistema policial e jurídico do país e influenciou a criação de algumas das primeiras políticas públicas para a área. Segundo Lisboa, só então os crimes relacionados ao gênero passaram a ser considerados “públicos” e de amplitude nacional. Foi criado também o 1º Plano Nacional de Combate à Violência Doméstica, em 2000.

No segundo período, iniciado em 2001, o foco das políticas públicas passou a ser a prevenção. “Isto não quer dizer que os crimes deixaram de ser punidos e que as vítimas deixaram de ser protegidas”, esclarece Lisboa. Foram conduzidas pesquisas sobre os custos (materiais e imateriais) da violência. Foi realizado também um Inquérito Nacional sobre a Violência e Gênero, que buscava entender de que maneira a desigualdade de gênero influía sobre a violência contra a mulher.

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Fotos do evento

Na última fase, que começou em 2008, o objetivo era compreender as diferentes maneiras pelas quais a violência atingia mulheres de contextos socioculturais diversos. Para Lisboa, o desafio mais atual é entender quais são, exatamente, os perfis tanto das vítimas quanto dos agressores. Hoje, ele ressalta, também é mandatário olhar mais minuciosamente para a violência em nível local.

“É necessário aproximar as forças de combate e prevenção do plano local (das cidades) e do plano próximo (dos bairros)”, defende. Para isso, Lisboa defende a ação comunitária da polícia, além do acompanhamento longitudinal das vítimas por agentes que interajam com as forças do Estado. Por fim, ele acredita que as pesquisas e análises sobre a violência relacionada ao gênero devem ser feitas de maneira menos fragmentária, usando uma visão mais holística deste tipo de fenômeno social.

O contexto brasileiro

Segundo o professor José Raimundo de Araújo Carvalho, o Brasil é um dos países mais violentos para as mulheres. Em 2014, ele ressalta, sete das nove capitais nordestinas estavam entre as 20 cidades mais com homicídios do mundo e, em 2017, Fortaleza se tornou a cidade onde mais se assassinam mulheres no mundo. E isto, para ele, custa caro: “Custos não monetários, como os relativos à dor e sofrimento das vítimas e seus parentes, bem como aqueles devidos à exposição de crianças à violência”.

Ainda assim, mesmo que humanamente menos relevantes, ele lembra que os custos monetários da violência também são altíssimos: “gastos para as vítimas, orçamentos públicos na área de segurança, serviços sociais e médicos, redução da produtividade na economia, diminuição dos ganhos do mercado de trabalho, absenteísmo, diminuição da poupança e dos investimentos”.

Em uma “estimativa conservadora”, que leva em consideração somente a perda de produtividade, Carvalho acredita que as despesas da violência contra a mulher no Brasil podem atingir US$ 21 bilhões — cerca de 1,2% do PIB. Segundo ele, na França os custos atingem US$ 3 bilhões (0,12% do PIB) e, nos Estados Unidos, US$ 12 bilhões (0,06% do PIB). Essa conjuntura desnuda, para ele, o engatinhar das políticas públicas brasileiras de proteção e prevenção contra a violência de gênero.

Carvalho argumenta, entretanto, que um dos grandes entraves para o desenvolvimento destas políticas é a falta de dados e informações acessíveis sobre a violência. “A ausência de comprovações empíricas e dados tangíveis inviabiliza o convencimento dos legisladores sobre a urgência de criar programas nacionais de proteção e prevenção”, explica. Sem o apoio dos atores políticos, as políticas públicas raramente saem do papel.

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José Raimundo de Araújo Carvalho: "É muito difícil acessar os dados sobre violência doméstica, a lei de acesso à informação não funciona"

Uma iniciativa nacional

Este panorama de desamparo foi, segundo ele, um dos principais motivadores da formulação da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (PCSVDFmulher). Além de contrapor a lógica vigente, a intenção era criar um banco de dados de indicadores estatísticos sobre violência de gênero, publicar artigos científicos e realizar avaliações de políticas públicas com os dados da pesquisa.

Carvalho contou durante o seminário que o projeto de pesquisa surgiu em uma conversa que teve com Maria da Penha, na qual a ativista demonstrou sua frustração com os resultados da lei que leva seu nome, 10 anos depois de sua promulgação. A partir de então, a PCSVDFmulher contou com apoio irrestrito do Instituto Maria da Penha (IMP). Segundo Carvalho, a experiência agregada pelo IMP foi fundamental para a estruturação da pesquisa
e do questionário.

Com o intuito de ser longitudinal — acompanhar as mulheres durante um longo período de tempo — o estudo foi modelado em “ondas” anuais. A primeira foi realizada em 2016 e a segunda em 2017. Nelas, mais de 10 mil mulheres (de 15 a 49 anos, moradoras das capitais nordestinas) foram ouvidas por 256 entrevistadoras treinadas pelo IMP. Segundo Carvalho, os resultados da pesquisa configuram propriedade intelectual e estão sendo analisados pelos pesquisadores da PCSVDFmulher, portanto ainda não foram integralmente divulgados.

Para a “onda” deste ano, os organizadores estudam a possibilidade de expandir a pesquisa para outros estados brasileiros. De acordo com Carvalho, a ideia é que a base de dados da PCSVDFmulher se transforme em um alicerce global para pesquisas mais abundantes e amplas.

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Wânia Pasinato: "As delegacias da mulher são insuficientes para protegê-las"

A violência e a lei

A professora Wânia Pasinato acredita que a própria concepção de violência adotada pelo Estado impede avanços na área. Segundo ela, apesar da subnotificação e da dificuldade para acessar os dados reais, é notório que a violência psicológica é a que mais vitima as mulheres. Esta classe de agressão engloba humilhação, menosprezo e intimidação. “Não existe, entretanto, correspondente para estas ofensas no código penal”, lembrou Pasinato. “Se uma vítima procura uma delegacia com esta denúncia, não será absorvida pelo sistema jurídico ou policial.”

Segundo ela, é necessário abrir outras portas de auxílio para as mulheres, tendo em vista que a ação da polícia é limitada e raramente encaminha as vítimas para serviços complementares. “Isto faz com que as mulheres cresçam, se eduquem e se desenvolvam sendo humilhadas, menosprezadas e intimidadas”, argumentou. “Portanto, as delegacias da mulher são insuficientes para protegê-las.”

Lisboa acompanhou a colega de mesa e defendeu uma mudança brusca no comportamento das forças policiais: “Não basta fazer propagandas na TV, porque isso não ‘atinge’ a mulher, é necessário ir até o bairro, até a rua, até a vítima”. Ele encerrou sua fala lembrando que é preciso ter coragem para enfrentar as mudanças necessárias — e citou Fernando Pessoa: “É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP