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A arqueologia resgatando a memória de grupo sociais da cidade de São Paulo

por Mauro Bellesa - publicado 02/09/2022 09:35 - última modificação 25/08/2023 12:26

O quarto encontro da série Jornadas Investigativas Contemporâneas, no dia 31 de agosto, teve o tema "Disciplina Arqueológica entre a Interdisciplinaridade e o Patrimônio Cultural" e tratou também da gestão das diversas coleções do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

Parque Augusta
Parque Augusta: trabalho arqueológico permitiu identificar resquícios das antigas construções do localrevelou aspectos

Os desafios e realizações dos trabalhos de arqueologia histórica na cidade de São Paulo foram destaque no quarto encontro da série Jornadas Investigativas Contemporâneas, no dia 31 de agosto. Com o tema A Disciplina Arqueológica entre a Interdisciplinaridade e o Patrimônio Cultural, o evento tratou também da gestão das diversas coleções do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

O encontro foi coordenado pelo arqueólogo Vagner Carvalheiro Porto, professor do museu e especialista em arqueologia mediterrânica e do Oriente Médio. Ele é um dos participantes do Programa Ano Sabático do IEA 2022, responsável pela organização das jornadas.

O objetivo da mesa-redonda foi discutir o patrimônio cultural sob a perspectiva das reflexões arqueológicas, levando em consideração a natureza interdisciplinar da disciplina. A ideia foi refletir, a partir da materialidade, a recepção e os usos do passado, as referências a identidades em vários níveis territoriais e o resgate da memória de diferentes grupos sociais, segundo Porto.

As expositoras foram três arqueólogas com diferentes experiencias de pesquisa e profissionais: Paula Nishida, supervisora do Centro de Arqueologia de São Paulo (Casp), vinculado ao Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo; Lucia Cardoso Juliani, sócia-diretora da empresa de assessoria em arqueologia A Lasca e ex-geóloga da Prefeitura de São Paulo; e Carla Gibertoni Carneiro, chefe da Divisão de Apoio à Pesquisa e Extensão do MAE, responsável pela gestão das ações de salvaguarda e comunicação da instituição. Maria Cristina Nicolau Kormikiari, professora de arqueologia clássica no MAE, onde atua também como pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (Labeca), participou como debatedora e comentarista das exposições.

Parque Augusta

Paula Nishida
Paula Nishida

Paula Nishida abordou sobretudo o trabalho arqueológico feito na pré-construção do Parque Augusta, localizado num quarteirão da região central da cidade de São Paulo.

Ela afirmou que antes se dizia que não era possível fazer arqueologia histórica na cidade de São Paulo, pois tudo teria sido destruído em razão do vertiginoso processo de crescimento da cidade. "Territórios inteiros desapareceram de uma hora para outra. O papel da arqueologia urbana é tentar enxergar o que resta das fases anteriores da cidade", disse.

A demanda pelo trabalho no parque veio da sociedade, do Movimento Parque Augusta, que instigou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a pensar o lugar como um sítio arqueológico da cidade, disse. A obra foi embargada e, diante da falta de verba para contratar a pesquisa, decidiu-se que o Casp realizaria o trabalho.

O parque tem 24 mil m2. O lugar primeiro abrigou o palacete da família Uchoa, inaugurado em 1902, uma sensação da cidade na época, tendo até entradas de carros, que não chegavam a três dezenas em São Paulo. Em 1907, o palacete foi leiloado e se tornou o Colégio Des Oiseaux,  administrado por cônegas belgas da Ordem dos Regrantes de Santo Agostinho. O colégio funcionou até 1969, sendo ocupado por outras instituições em seguida. Nos anos 70, tudo foi demolido, mas o projeto de um consórcio japonês para o terreno não foi adiante e a área acabou virando um estacionamento, relatou Nishida.

As escavações no local revelaram vários resquícios do colégio (destinado a meninas da elite paulistana), do Colégio Santa Mônica (construídos pela ordem para meninas de famílias baixa renda) e de uma catedral monumental. Para fazer as escavações, foi necessário contar com a ajuda de pessoas em situação de risco cadastradas em programa municipal e voluntários, uma vez que o Casp só possuía três técnicos, disse a antropóloga. As escavações (de até três metros de profundidade em alguns pontos) desvendaram estruturas, fundações, caminhos, pisos e caminhos contemplativos, com grutas (que estavam aparentes), onde as freiras descansavam e rezavam.

Como não era possível abrir os canteiros de escavações ao público, a ação educativa da equipe foi colar cartazes nos tapumes e pendurar varais com folhetos nas estruturas. Neles constavam informações sobre o que existiu no local e depoimentos de pessoas que participaram da vida dos colégios.

"Como muitas estruturas tiveram de ser tapadas, recomendamos que o local se tornasse o primeiro parque arqueológico da cidade, com parte do encontrado sendo visível pelo público", afirmou Nishida. Para ela, há muito a ser pesquisado da arqueologia histórica da cidade em locais como pátios, estacionamentos, galpões industriais, vilas operárias, sedes de times de futebol e outros lugares.

É papel das universidades promover a discussão sobre o trabalho a ser feito e é preciso que os órgãos municipais discutam o que é arqueologia urbana, afirmou. "Não estamos preparando técnicos com visão sobre a arqueologia urbana para ocupar cargos nos órgãos de preservação", disse Nishida.

Lucia Cardoso Juliani
Lucia Cardoso Juliani

Em sua exposição, Lúcia Cardoso Juliani afirmou que nos 20 anos em que trabalhou no DPH participou da equipe que iniciou o debate para a inserção da arqueologia no órgão. Segundo ela, os técnicos ligados ao património histórico viam o trabalho arqueológico como "algo irrelevante, que não daria muitas respostas sobre o passado da cidade".

Lucia, que também é geóloga, comentou que o trabalho na cidade é dificultado devido a fatores como o relevo ondulado e as inúmeras modificações da paisagem por drenagens e aterros, com terra retirada das bordas das bacias dos rios para aplainar os terrenos e propiciar o crescimento da metrópole.

Capela de São Miguel

Ela concentrou sua participação no relato sobre o trabalho feito por sua empresa na Capela de São Miguel Arcanjo, no bairro de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo. A igreja original foi construída em 1622 no aldeamento São Miguel de Ururay, fundado por jesuítas em 1560 e integrante do antigo caminho que levava ao Vale do Paraíba do Sul.

Segundo ela, a obra de restauração da capela, com verba obtida via Lei Rouanet, teve o projeto arquitetônico aprovado, mas ninguém tinha pensado em trabalho arqueológico. Novamente a demanda foi da sociedade. Moradores do local procuraram a associação da igreja para dizer que tinham antepassados enterrados lá.

"Cavamos pouco, mas obtivemos informações importantes sobre o local. No começo, houve dificuldades no relacionamento com técnicos do Iphan, que barraram algumas iniciativas, segundo ela. "O DPH teve um papel importante ao exigir que muitas coisas fossem feitas."

"Foram realizadas escavações internas e externas e algumas trincheiras, com uma prospecção arqueológica orientada. Conseguimos mudar algumas diretrizes. O projeto original previa rebaixar o solo para elevar o pé direito. Pretendiam rebaixar sem fazer o trabalho arqueológico", afirmou.

Logo no iníco da escavação foram encontrados sepultamentos. Isso fez com que o projeto fosse mudado e, em vez do rebaixamento do piso antigo, foi prevista apenas a substituição por novas lajotas, disse Lúcia. "Numa trincheira, foi encontrado um piso de terra batida recortado a 60 cm de profundidade. Escavamos e encontramos um grande buraco. É provável que os jesuítas enterrassem coisas nesses buracos grandes sempre atrás dos altares."

Segundo a antropóloga, na Capela Coração de Jesus, lateral à capela principal, foram encontrados dois níveis de sepultamento, um entre 30 e 60 cm de profundidade e outro entre de 80 a 100 cm. No primeiro nível, havia um sepultamento com partes de ossos de um indivíduo, bastante descontextualizado, talvez por obras e solo remexido. No nível mais profundo, havia o sepultamento de uma pessoa colocada em posição lateral fletida, acompanhada de um saquinho com cal para diminuir o odor. "A suposição é que talvez os indígenas enterrassem seus mortos dentro da igreja quando os jesuítas viajavam. Há muitos sepultamentos nos níveis mais profundos", disse Lúcia.

No entorno da capela, o geoprocessamento realizado depois do trabalho arqueológico também indicou dois níveis no subsolo. Ela disse acreditar que há diversos sepultamentos nessa parte, onde foram encontradas muitas vasilhas pequenas e algumas maiores. "Há muito material do período colonial, como cerâmicas e cachimbos, estes provavelmente do contato dos indígenas com negros", afirmou

"No relatório, sugerimos mais pesquisa na área. O trabalho será útil para comparações com outros aldeamentos. Ao contrário de outras cidades, São Paulo cresceu a partir de vários núcleos surgidos em antigos aldeamentos, como os da Penha [onde foram encontradas urnas funerárias no passado] e de Pinheiros", comentou Lúcia.

Gestão de coleções

Carla Gilbertoni Carneiro
Carla Gilbertoni Carneiro

Carla Gibertoni Carneiro apresentou um panorama das coleções integrantes do MAE, especialmente sob a ótica da gestão. Segundo ela, a arqueologia brasileira vem crescendo nas últimas décadas e as coleções têm uma importância muito grande na continuidade da produção de conhecimento das histórias que a visão eurocêntrica procurou apagar.

Ela afirmou que o museu se pauta pela missão institucional da USP, centrada no compromisso com o ensino, a pesquisa e a extensão. Lembrou que a criação do MAE é relativamente recente, há pouco mais de 30 anos, a partir da fusão de coleções do Museu Paulista (mais conhecido como Museu do Ipiranga), do antigo Instituto de Pré-História e do Departamento de Arqueologia, ambos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Cada instituição tinha enfoques específicos, de acordo com Carla. "O antigo MAE, por exemplo, possuía mais peças do Mediterrâneo africano, da pré-história e da arqueologia do Brasil. O Museu Paulista, por sua vez, sempre foi mais ligado à história natural, num modelo mais enciclopédico, com registros históricos de povos e culturas prestes a desaparecer. No entanto, apenas parte das coleções do Museu Paulista foi para o MAE e talvez isso explique a lacuna existente na formação acadêmica na linha da arqueologia histórica", disse a pesquisadora.

De acordo com ela, durante muito tempo o MAE enfrentou os desafios decorrentes da fusão das coleções, "alguns deles ainda presentes, principalmente no plano da gestão". Mas houve avanço na criação da estrutura institucional, que hoje reflete o compromisso com ensino, pesquisa e extensão, afirmou.

As origens das coleções são múltiplas, disse. Grande parte é oriunda de pesquisas acadêmicas em arqueologia e etnologia brasileiras. Há também coleções adquiridas e resultantes de trocas, comodatos, doações e decisões judiciais.

Ela apresentou dois casos diferenciados de como coleções passam a integrar ou deixam o museu. Um deles é o da coleção que pertencia ao banqueiro Edmar Cid Ferreira. O MAE a recebeu em 2005, em seguida à falência do Banco Santos. Agora, depois de todos as despesas da USP durantes todos esses anos para abrigar e conservar essa coleção, ela está sendo reivindicada por antigos credores do banco. Para Carla, seria paradoxal que a Justiça determinasse o repasse da coleção a instituições privadas, pois desde 1961 a legislação federal estabelece que o patrimônio arqueológico pertence à União.

A outra experiência vai no sentido contrário. Trata-se do retorno de uma coleção a seu local de origem, o município de Pereira Barreto. No começo, Ilha Solteira e Pereira Barreto reclamaram o retorno de coleções resultantes de pesquisa realizadas na região, mas Ilha Solteira desistiu logo no início do processo, segundo Carla.

Pereira Barreto, por meio de uma associação da comunidade japonesa, continuou a demandar a ida da coleção para o Museu Histórico da Colonização da cidade. "Fizemos todo o planejamento da transferência para o museu, que não possuía material arqueológico, apenas objetos das famílias que colonizaram a região. Eles já tinham uma sala para exposição. Conseguimos instalar o mobiliário, ajudamos a organizar a exposição, a reserva técnica e o banco de dados e a elaborar o projeto para captação de recursos", contou Carla.

"Não foi um movimento de perda, mas de cooperação. A partir do interesse da comunidade foi promovido um diálogo entre o passado e a colonização no século 20", disse a pesquisadora.

Fotos (a partir do alto): primeira, Rovena Rosa/Agência Brasil; demais, Leonor Calasans/IEA-USP