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A interação do relógio biológico com os processos fisiológicos

por Mauro Bellesa - publicado 25/05/2015 11:20 - última modificação 12/02/2016 11:53

O neurocientista Ruud Buijs, da Universidad Nacional Autónoma de México, tratou das relações entre o relógio biológico e os processos fisiológicos em sua conferência na Intercontinental Academia.

O relógio biológico trabalha em estreita interação com diversos processos fisiológicos para enviar comandos aos órgãos e também receber feedback sobre as necessidades do organismo. De acordo com o neurocientista Ruud Buijs, da Universidad Nacional Autónoma de México, o tempo é um fator fundamental para a regulação da  temperatura, da reprodução, do metabolismo, da circulação e do sistema imunológico.

Ruud Buijs - Intercontinental Academia
O neurocientista Ruud Buijs, da Universidad Nacional Autónoma de México

Em conferência na Intercontinental Academia (ICA) no dia 21 de abril, Buijs tratou dessa interação, ilustrando suas explicações com diversos exemplos de estudos com animais e seres humanos.

Antes, ele explicou de forma esquemática o funcionamento do hipotálamo, uma parte do cérebro extremamente conectada com as partes primitivas do órgão e que se conecta, via nervos autônomos do córtex espinhal, a outras partes do corpo, para envio de comandos do cérebro para elas. “Além de essencial para movermos a mão e outras ações, o córtex espinhal é essencial também para a condução de processos fisiológicos. Para esse controle da fisiologia, precisamos do hipotálamo."

O relógio biológico, que recebe informações sobre claro e escuro diretamente das retinas, está localizado no hipotálamo, próximo ao núcleo supraquiasmático (NSQ), centro primário de regulação dos ritmos circadianos.

Segundo Buijs, é possível retirar o relógio biológico do cérebro de uma cobaia e mantê-lo funcionando in vitro, com atividade elétrica num ciclo de cerca de 24 horas, autonomamente, sem ser preciso fazer mais nada.

Exatidão

Para exemplificar a precisão do mecanismo, ele disse que na medicina forense é possível determinar com grande exatidão o horário em que uma pessoa foi assassinada por meio da analise da expressão do relógio biológico em seus órgãos, especialmente se a vítima for encontrada nas primeiras 48 horas depois de sua morte.

Também o momento em que alguém vem ao mundo é determinado pelo relógio biológico. Ele mostrou um gráfico onde o pico de nascimentos do primeiro filho de grávidas moradoras de Amsterdã acontece em torno das 8 horas da manhã (na Holanda, em geral, os bebês nascem com a ajuda de uma parteira). Outro gráfico apontou o pico entre 4 e 5 da manhã para o segundo filho ou seguintes, que ele atribui ao fato de a mulher já ser experiente quanto ao trabalho de parto. Um terceiro gráfico, no entanto, mostra um pico em torno do meio-dia e refere-se a partos com obstetras, quando "os bebês nascem no tempo do médico, que induz o trabalho de parto ou a cesariana".

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O momento de morte de um indivíduo também pode ser determinado em alguns casos pelo relógio biológico, como demonstra o fato de o pico de acidentes cardiovasculares acontecer na primeira parte da manhã, com mais incidência às segundas-feiras (talvez em função da desregulagem dos horários no fim de semana, segundo Buijs).

Hormônios

De acordo com o neurocientista, o relógio biológico usa muitos mecanismos para impor ritmos ao corpo. Em muitos casos isso é conduzido pelo hormônio corticosterona. "Nos experimentos em ratos, o pico de corticosterona acontece logo após o período noturno (sabemos que os ratos são ativos à noite), ao passo que o pico do hormônio melatonina acontece à noite, o que indica que ela é a indutora da atividade dos animais." Nos seres humanos, a melatonina também atinge seu pico à noite, mas, ao contrário do que acontece com os ratos, nos humanos ela promove o sono.

Para estudar esse processo num animal oposto ao rato, com atividade diurna, Buijs utilizou o Arvicanthis ansorgei, uma roedor silvestre africano. Esse animal é ativo no início e no final do período diurno. "Costumamos dizer que o relógio biológico prepara nosso corpo para a chegada do período ativo. Ao medir a corticosterona no animal, verificou-se que o pico dela é justamente antes dos períodos ativos, portanto, há dois picos de corticosterona em 24 horas. Isso significa que, de alguma forma, o relógio biológico se adapta ao estilo de vida do animal e adota dois picos de atividade."

O hipotálamo contém áreas específicas para controlar a temperatura, a frequência cardíaca e a ingestão de alimentos. O relógio biológico impõe um padrão temporal a todas elas. "Essas conexões são fortes e não há como escapar do relógio biológico".

Buijs disse que as áreas do hipotálamo ligadas à ingestão de alimentos possuem um tipo de influência similar àquela do relógio biológico e trabalham em sintonia com ele. Ele citou como exemplo o papel de fatores temporais e metabólicos na modulação da temperatura corporal. No caso de um animal estudado com hábitos noturnos, a temperatura é alta à noite, depois abaixa e volta a aumentar novamente, antecipando o período ativo.

O metabolismo influencia a temperatura de forma que, durante o período diurno (descanso), ela seja mais baixa. Se se lesiona o relógio biológico, o ritmo de variação da temperatura desaparece, não sendo afetado nem pelo fator metabólico. Isso demonstra a relação entre o relógio biológico e o metabolismo.

Para a produção da corticosterona, o núcleo paraventricular do hipotálamo produz um hormônio que leva à produção, em outra parte do hipotálamo, do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), o qual estimula a produção de corticosterona nas glândulas suprarrenais. Então, seria esperado que, ao examinar os níveis diurnos e noturnos de corticosterona num animal, encontrássemos uma relação com os níveis de ACTH, mas não é o que acontece.

Para investigar isso, Buijs inseriu um vírus similar ao da raiva nas glândulas adrenais de ratos. Como esse vírus tem a propriedade de ser absorvido por terminais nervosos, se reproduzir no corpo da célula e migrar para outras via terminais nervosos, é possível seguir a cadeia de comando do cérebro até as glândulas.

Com isso, foi possível saber que neurônios no córtex espinhal se comunicam com as glândulas suprarrenais e seguir os impulsos do relógio biológico, comprovando que ele não usa apenas hormônios para enviar comandos aos órgãos, valendo-se também de caminhos autônomos. Isso é uma vantagem, pois algo introduzido na corrente sanguínea levará certo tempo até atingir os órgãos. Com a ligação direta com os órgãos, o relógio biológico os prepara para o que está chegando via sangue e também para a chegada dos hormônios.

Se o relógio biológico usas esses meios para se comunicar com o corpo, que meios usam os órgãos para responder ao relógio biológico? "Muitos cientistas ainda pensam que o relógio biológico é um relógio autônomo, que não precisa de feedback. Evidentemente, isso não é verdade. Temos evidências de que ele precisa de feedback. O relógio biológico está em constante interação com o corpo."

Nos mamíferos e muitos outros animais, essa resposta é regulada pela melatonina, que leva inclusive o organismo a ignorar o ciclo do relógio biológico. Ele exibiu gráficos que mostram o aumento da produção de melatonina numa rena na Finlândia no outono à medida que a duração da noite aumenta menos de uma hora no final de julho até mais de 11 horas na segunda quinzena de setembro. Também na Finlândia, nos períodos do ano em que as temperaturas inviabilizam o voo noturno de mosquitos, os morcegos também passam a voar durante o dia para caçar seu alimento. "Cada organismo se esforça de muitas maneiras para entrar em balanço com o ambiente, no qual a duração do ciclo dia-noite determinará o ritmo diário padrão e o ritmo adotado pelo animal."

De acordo com Buijs, diferentes áreas do cérebro produzem o mesmo neurotransmissor. O relógio biológico é uma das áreas que produzem a vasopressina, um hormônio antidiurético e vasoconstritor que também atua como neurotransmissor no cérebro. O relógio biológico produz a vasopressina para uma área que também sofre a influência de hormônios gonadais.

Buijs mostrou imagens de duas áreas no cérebro de um rato com enervação vasoconstritora, uma que sofre a influência dos hormônios gonadais e outra sensível ao relógio biológico. Quando o rato é castrado, a vasoconstrição na primeira área desaparece, mas se mantém na área sensível ao relógio biológico. Isso indicaria a possibilidade de uma perda eventual da enervação vasoconstritora por algum motivo fisiológico e com um sentido funcional. De acordo com Buijs, é possível que isso ocorra, por meio da diminuição dos hormônios gonadais, como preparação para o inverno, quando o animal hibernará.

O tamanho dos testículos e os níveis de testosterona do hamster europeu, um animal que hiberna, são bem maiores no verão do que no inverno. Esse tamanho e esse nível diminuem abruptamente entre o final de julho e o final de agosto, aparentemente preparando o animal para sobreviver ao próximo inverno. "Ele entra em hibernação durante quatro ou cinco dias, então acorda e durante 24 horas come, bebe e urina um pouco, depois entra novamente em hibernação, num processo muito bem organizado em termos temporais. Se for dada testosterona ao animal nesse período, ele não irá hibernar, irá viver no espaço aberto e morrerá."

Imagens de certa área do cérebro do hamster (a mesma observada no rato no exemplo anterior) são completamente diferentes no verão e no inverno, o que indica como a ritmicidade do animal influencia o sistema nervoso central. A redução de hormônios gonadais prepara o animal para o inverno. A perda de vasoconstrição no septum permite adaptar sua fisiologia e faz despencar sua temperatura para 5º C.

Diabetes tipo 2 e obesidade

Outros dois exemplos de descontrole de processos fisiológicos possivelmente causados por dessincronização na interação do relógio biológico com os próprios mecanismos fisiológicos são o surgimento de diabetes tipo 2 e o desenvolvimento de obesidade, segundo Buijs.

No caso do diabetes tipo 2, isso talvez tenha a ver com o fato de o cérebro precisar de mais glicose para o período ativo do ciclo diário do indivíduo. A quantidade de açúcar (glicose) consumida pelo cérebro em 24 horas é de 100 g e a quantidade disponível para o resto do corpo é de 5 g. “O cérebro egoísta compete com o resto do corpo por energia. Mas competir não é um bom verbo, pois o cérebro é o chefe e ordena que o açúcar lhe seja cedido.”

Um experimento foi feito com pessoas com diabetes tipo 2 e o dobro da glicose de pessoas sem a doença. Apesar de o nível de glicose já ser bastante elevado nos doentes, ele começa a subir ainda mais em torno das 5 horas da manhã, numa preparação do organismo para o período ativo do dia.

A explicação para isso, segundo Buijs, é que o cérebro se torna mais ativo e demanda mais energia no início do período de maior atividade do indivíduo. Para atender à demanda do cérebro, o relógio biológico prepara o organismo para tornar disponível maior quantidade de glicose.

Quando o organismo disponibiliza mais glicose, o pico da presença dela na circulação acontece rapidamente e em seguida o nível cai em pouco tempo. Observando o fenômeno ao longo do dia, constatou-se que os picos no nível de glicose no sangue vão ficando mais baixos até antes do período ativo.

O interessante é que se se compara os dois fenômenos, vê-se que o pico de glicose no sangue corresponde ao pico mais baixo dela nos músculos. "O que significa que o relógio biológico está fazendo duas coisas ao mesmo tempo: de um lado estimulando a produção de glicose e de outro fazendo com o que o cérebro absorva mais dela: uma preparação perfeita para o período ativo do dia."

Qual seria o papel do relógio biológico na obesidade? Buijs disse que uma das correlações tem a ver com o período de sono: quanto menor esse período, maiores as chances de desenvolvimento de obesidade. Mas há outra correlação, ligada aos fatores que fazem o tecido gorduroso crescer.

O sistema nervoso autônomo possui dois sistemas (simpático e parassimpático) por meio dos quais o cérebro envia comandos para os tecidos gordurosos crescerem. Ao injetar o vírus similar ao da raiva na gordura retroperitoneal (parte posterior da cavidade abdominal) de ratos é possível identificar a área do cérebro que comanda o sistema parassimpático, que é, em geral, o sistema para o descanso. "Ao se cortar a enervação do sistema, a absorção de glicose diminui, o que indica que é preciso um comando do cérebro para o tecido gorduroso absorvê-la."

Ao analisar a gordura abdominal de dois rapazes de 14 anos, um não diabético e outro diabético, a constatação clínica foi que o acúmulo de tecido gorduroso no compartimento gastrointestinal está associado com a doença. Segundo o neurocientista, quando se compreende que o sistema parassimpático é importante para o acúmulo de gordura, isso sugere que o comando do sistema para o compartimento gastrointestinal pode ser mais forte do que o comando para a área subcutânea. Isso pode significar que as duas regiões precisam de outros sinais do corpo, caso contrário o cérebro não poderia diferenciar entre os dois compartimentos.

Para dirimir essa dúvida, injetou-se marcadores no tecido abdominal de rato e verificou-se que no núcleo autônomo que comanda os tecidos gordurosos há um par de nervos diferentes para comandar a gordura de cada compartimento. Essa diferenciação de nervos pode ser seguida até o hipotálamo e lá, numa das estruturas que recebem informações do relógio biológico, a mesma diferenciação pode ser vista. Assim, constata-se que no relógio biológico há nervos que se comunicam apenas com alguma parte do corpo e não com outra.

A conclusão desses experimentos é de que o controle diferenciado de diferentes tecidos é a base para o controle central da distribuição de gordura. Segundo Buijs, verifica-se isso no fato de que quando o indivíduo acumula gordura abdominal há desequilíbrio nos compartimentos de gordura do corpo, o que sugere que em algumas situações de diabetes e hipertensão possa haver esse desequilíbrio nos comandos do sistema nervoso autônomo, não apenas a partir do hipotálamo, mas a partir do próprio relógio biológico.

A hipótese de trabalho para pesquisa futuras de Buijs é de que um distúrbio no relacionamento recíproco do relógio biológico com os órgãos em qualquer nível e em qualquer fase da vida pode resultar em doença. "A doença pode ser induzida, por exemplo, por ingestão de alimentos em horários errados durante o ciclo de 24 horas."

Foto: Leonor Calazans/IEA-USP