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A postura ética diante dos acontecimentos na Síria

por Flávia Dourado - publicado 19/09/2013 12:35 - última modificação 01/02/2016 11:08

O tema foi debatido no encontro "Ética e Ataque", realizado pelo IEA no dia 11 de setembro.

No dia 11 de setembro, quando o mundo relembrava dois acontecimentos marcantes  — o golpe militar no Chile e o atentado às Torres Gêmeas em Nova York —, o desenrolar de um novo capítulo trágico da história contemporânea era debatido no IEA. O encontro Ética e Ataque colocou em discussão a possibilidade que se cogitava de uma intervenção militar na Síria por parte do governo dos Estados Unidos em resposta ao uso de armas químicas na guerra civil naquele país.

Mesa-redonda 'Ética e Ataque'
Os participantes do debate (a partir da esq.):, Pedro Dallari, Renato Janine Ribeiro, Bernardo Sorj (monitor), Massimo Canevacci e Deisy Ventura

Organizado pelo Laboratório Sociedades Contemporâneas do IEA, em parceria com  o Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, o debate foi conduzido a partir de duas questões principais: ações políticas podem resolver conflitos internacionais, evitando-se o uso da força? A ética pode ficar indiferente à monstruosidade do uso de armas químicas?

Participaram do encontro o sociólogo Bernardo Sorj (por videoconferência) e o antropólogo Massimo Canevacci, ambos professores visitantes do IEA, e os juristas especializados em direito internacional Pedro Dallari, vice-diretor do IRI, e Deisy Ventura, professora do mesmo instituto. A moderação ficou a cargo do filósofo Renato Janine Ribeiro, conselheiro do IEA.

INTERESSES ENVOLVIDOS

Inspirado na onda de protestos no Oriente Médio e no Norte da África, conhecida como Primavera Árabe, o conflito na Síria surgiu há dois anos com uma agenda política de democratização. Mas, segundo Dallari, o movimento rapidamente sofreu uma transformação e adquiriu um caráter étnico quando os sunitas, etnia predominante no país, assumiram a liderança da insurgência contra o governo do ditador Bashar al-Assad, pertencente à minoria alauíta. O jurista afirmou que essa clivagem étnica tem levado à internacionalização do conflito, com cada lado buscando apoio de grupos e países com interesses comuns, caso dos sunitas, que vêm sendo apoiados pelos jihadistas da Al-Qaeda.

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Sorj também abordou a internacionalização do conflito. De acordo com ele, a Rússia e o Irã vêm armando o governo Sírio, enquanto os países árabes vêm armando os rebeldes. "A guerra é mantida com apoio de todos os lados e, nesse sentido, criticar Obama unilateralmente seria no mínimo injusto", disse, ressalvando que o presidente dos Estados Unidos tem procurado ser o menos intervencionista possível. "A postura de Obama de não enviar armas para os rebeldes é um mérito", frisou.

Já Dallari considera que a opção do presidente americano por não armar os rebeldes deve-se ao alinhando dos Estados Unidos com Israel, que não tem interesse na derrubada de Assad por temer o alto grau de instabilidade que isso poderia gerar na região. Para os israelenses, observou, é melhor ter uma minoria à frente do governo sírio do que correr o risco de tomada do poder por radicais da maioria étnica.

Ventura, por sua vez, ponderou que a questão do ataque à Síria deve ser pensada de modo a superar a dicotomia entre inocência e cinismo: "Inocência da alegação de que a intervenção seria motivada pela defesa dos direitos humanos; cinismo da alegação de que nenhum país tem o direito de intervir em outro".

Para a jurista, a lógica binária que opõe bem e mal não se aplica à Síria, uma vez que não é possível identificar defensores e violadores dos direitos humanos. Como exemplo, mencionou o caso dos Estados Unidos, cujas intervenções têm sido motivadas mais pela garantia da segurança do que pela defesa dos direitos humanos, sendo esta a única motivação lícita.

"Todo estado que se propõe a intervir o faz de maneira seletiva; e essa seletividade não é determinada pelo grau de violação aos direitos humanos, mas pelas relações de poder que vigoram em cada caso", destacou, advertindo que é impossível intervir de maneira neutra e que todo tipo de intervenção implica mudanças na equação de forças do lugar. Sorj, da mesma forma, comentou que "qualquer intervenção em qualquer país  vai, de alguma forma, misturar valores e interesses".

LEGITIMIDADE

Canevacci, propositor do encontro, levantou questões sobre a legitimidade da iniciativa americana. De acordo com o antropólogo, a ameaça de ataque à Síria ampara-se numa ética baseada na ideia de punição: punir o regime de Assad, usando a guerra para dar uma lição de bondade.

"Mas será que a ética é universal? Quem tem o direito de colocar em cheque a autonomia de um estado?", questionou, destacando que não cabe a um único país decidir se um outro país cometeu um crime contra a humanidade. "Isso cabe à ONU, uma organização supranacional a quem foi dado o poder de tomar essa decisão." Ainda assim, os Estados Unidos tomaram para si o poder de definir uma ética universal e o direito de intervir onde quer que se ultrapassem os limites do que consideram tolerável.

Falando a partir da perspectiva do direito internacional, Dallari afirmou que a Carta das Nações Unidas, documento de 1945 que deu origem à ONU, prevê apenas duas possibilidades lícitas de intervenção em um estado: por legítima defesa ou por deliberação do Conselho de Segurança. "E a intervenção americana não se encaixaria em nenhum desses quesitos", ressaltou.

O jurista explicou também que, do ponto de vista da responsabilidade pela violação aos direitos humanos, é irrelevante quem fez uso das armas químicas na Síria. "Quando se trata de direito internacional, sempre que há um quadro de violação dos direitos humanos, é o Estado que deve responder, de modo que o governo sírio é o responsável, independentemente de quem utilizou as armas."

ÉTICA X DIREITO

Segundo Janine, a ameaça de ataque à Síria por parte dos Estados Unidos não deve ser pensada apenas à luz do direito, uma vez que haveria uma grande diferença entre a abordagem da lei e a da ética. "A lei discute qual intervenção é lícita, sendo este um papel que os Estados Unidos gostariam de assumir." Para ele, a ética vai muito além da aplicação de normas consensuais e da garantia da segurança jurídica, uma vez que seria obrigação de todo governo, independentemente das leis, ater-se aos princípios éticos.

O filósofo lembrou que, quando a crise na Síria teve início na esteira da Primavera Árabe, tratava-se de um movimento para derrubar uma ditadura, o que facilitava as análises, visto que a ditadura é, por si só, antiética. "Mas a questão se complicou ao se discutir que tipo de liberdade iria ser estabelecida a partir dessa derrubada", avaliou, observando que, no caso dos rebeldes sírios, a tendência é privilegiar a liberdade do coletivo, amparada na identidade étnica, e não a liberdade individual.

"Ali, a etnia é mais importante que o indivíduo, de modo que temos várias agendas compreendidas no conflito: a da democracia, a do direito à vida e a dos direitos dos diversos grupos étnicos envolvidos", explicou.

EFICÁCIA

Além de discutirem um eventual ataque americano à Síria do ponto de vista ético e legal, os participantes do debate falaram sobre a eficácia de uma iniciativa desse porte. Na interpretação de Dallari, a medida seria inócua na promoção da paz, uma vez que não se trata mais de uma luta pela democracia, mas de uma disputa entre etnias. "Em que medida um bombardeio às instalações militares da Síria poderia cessar um conflito que tem uma matriz étnica?", questionou, advertindo que isso só levaria ao recrudescimento dos efeitos negativos da crise.

Ventura também pontuou a ineficácia de um possível ataque americano e das intervenções internacionais como um todo. De acordo com ela, as guerras vêm sendo substituídas por outras formas de intervenção que, embora se apresentem como "cirúrgicas", instauram estados difusos de violência, causam danos enormes e só restauram a dignidade parcialmente. "Inúmeros países que sofreram intervenções não passaram por uma recuperação e continuam afundados na violência", afirmou.

ALTERNATIVAS

Ao discutir caminhos para solucionar o conflito na Síria, Canevacci também destacou que o direito não é suficiente. Para ele, uma questão complexa como essa deve ser abordada a partir de um pensamento plural, que leve em consideração as dimensões da cultura e da cidadania e busque, acima de tudo, alternativas à guerra. "Não existe um sistema objetivo — como o direito pretende ser — para resolver crimes de guerra; por isso precisamos enfrentar o problema na Síria com base na dialogia, abrindo-nos ao descentramento de valores e procurando superar a dicotomia entre bem e mal", concluiu.

Dallari reconheceu que o direito apresenta limitações diante da clivagem étnica presente no conflito e que é preciso promover o diálogo entre culturas. "Mas como fazer isso?" Para ele, a única possibilidade real de solução, no momento, é a proposta diplomática encabeçada pela Rússia.

Já Ventura lembrou que o direito internacional prevê alternativas à intervenção armada, mas que seriam muito mais trabalhosas. Segundo a jurista, a ONU poderia, por exemplo, apresentar o caso da Síria ao Tribunal Penal Internacional e pedir que os criminosos de guerra sejam julgados. No entanto, advertiu, haveria algumas obstáculos, visto que o tribunal não foi ratificado pelos Estados Unidos e por outras nações importantes.

 

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