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Agricultura urbana, articulação social e poder público em pauta

por Sylvia Miguel - publicado 02/12/2016 17:15 - última modificação 13/12/2016 15:09

Valorização e regularização do agricultor, mercado de orgânicos e criação de um fórum permanente de horticultores foram temas levantados no dia 11 de novembro
Agricultura orgânica - Lufa Farms - 1

Produção de tomates na Lufa Farms, Laval, norte de Montreal, no Canadá

Para os agricultores presentes no debate sobre agricultura urbana no IEA, no dia 11 de novembro, a reinserção do conceito de zona rural no Plano Diretor Estratégico de 2014 foi uma medida relevante, mas não suficiente para promover a horticultura na capital paulista. O encontro Agricultura Urbana em Rennes, Montreal e São Paulo: Como Podemos Aprender e Articular Ações à Luz da Comparação? reuniu integrantes do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU) do IEA, representantes de associações e cooperativas agrícolas, educadores, agricultores familiares, hortelões, pesquisadores e representantes de organizações não governamentais.

“O Plano Diretor Estratégico de 2014 voltou a reconhecer a existência de zona rural e isso é um avanço. Mas ainda falta a oficialização e regularização das hortas urbanas comunitárias. A prefeitura precisa reconhecer oficialmente a existência dessas hortas. Precisamos de mais parcerias através de cooperativas e universidades para viabilizar pequenos planos de negócio para os agricultores”, disse André Biazzotti, integrante do Movimento Urbano de Agroecologia (Muda SP).

A partir de 2014, o Plano Diretor Estratégico reinseriu o conceito de zona rural na cidade de São Paulo, que havia sido retirado no documento de 2002. A legislação passou a reconhecer a existência de áreas rurais, numa parcela de 30% do total do município, ou 445 quilômetros quadrados. Isso é importante não só pelas mudanças na organização do espaço, como também no reconhecimento dos direitos concedidos aos produtores agrícolas.

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Biazzotti e outros hortelões presentes na plateia apresentaram sugestões para viabilizar a horticultura urbana em São Paulo. “Precisamos construir uma articulação através de um fórum permanente para canalizar um diálogo consistente junto aos órgãos públicos. Também não pode faltar um mapeamento para evidenciar os agricultores que ainda não acessam essa rede que começa a ser construída”, concluiu Biazzotti.

A sistematização da agricultura urbana em São Paulo foi justamente um dos temas centrais tratados em junho deste ano durante a 1ª Conferência Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável da Cidade de São Paulo, conforme explicou o engenheiro agrônomo Luis Henrique Marinho Meira, especialista em Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de São Paulo e participante da mesa de debates.

“Naquela conferência discutimos a criação de um cadastro de terras disponíveis na cidade para a horticultura. A ideia é disponibilizar terrenos da prefeitura e também áreas de concessão, como as que ficam no entorno das linhas da Eletropaulo, Sapesp e outras. A proposta seria a Prefeitura gerenciar o cadastro dos agricultores, de forma a viabilizar a regularização e a gestão da atividade através de um termo de cooperação com as concessionárias. Mas esse diálogo não avançou”, disse Meira.

Para Meira, apesar dos esforços, as políticas públicas urbanas não foram estruturadas como intervenção no mundo rural. “Para citar um exemplo, o departamento de agricultura do município não tem estrutura nem orçamento próprios. Seus cargos são genéricos, não estritamente relacionados à atividade agrícola, e vieram da antiga supervisão de abastecimento. Não é um organograma específico. Tivemos alguns programas pontuais nesse ano. E a partir de uma emenda para uma campanha contra agrotóxicos tivemos nosso primeiro orçamento, algo como R$ 100 mil que se desdobrou em muitas atividades”, citou Meira.

Segundo o engenheiro agrônomo, a Casa Agrícola de Parelheiros “é o único local onde nossa atuação está mais próxima de uma assistência rural extensionista, em que há uma equipe permanente e método de trabalho, ao contrário de outros locais”, disse. “Esse debate não é novo. A assistência técnica no campo está mais consolidada no plano federal, em especial pelo atendimento aos assentamentos dos Sem Terra. Mas há muito por fazer nessa área”, disse Meira.

A Prefeitura atua junto aos agricultores com bolsas sociais de capacitação e a ajuda de parcerias. “As políticas públicas são fragmentadas e dependemos de bolsas para capacitação de pessoal. Mas não há estrutura de fomento às hortas. Dependemos muito dos arranjos entre os parceiros da Prefeitura porque isso dinamiza as atividades. Mas precisamos aperfeiçoar o processo, independentemente de governos”, afirma Meira.

Mananciais e mercados

Para Valéria Marcoratti, presidente da Cooperapas Agricultura Orgânica Parelheiros, a união foi a forma que os agricultores do extremo sul da capital paulista encontraram para viabilizar seus pequenos negócios. Com a ajuda da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP, em 2007, os agricultores daquela região passaram a frequentar cursos de capacitação em agroecologia para que fizessem a transição para o cultivo de orgânicos. “Somos 34 cooperados numa região com mais de 400 agricultores. Com a cooperativa agora temos mais força e reconhecimento”, disse.

A novidade na Associação de Agricultores da Zona Leste (AAZL), entidade especializada em produtos orgânicos, é o interesse de jovens querendo virar agricultores, contou Andreia Perez Lopes, bióloga e agricultora. “Há cooperados que já tinham na família a tradição do trabalho no campo. Vieram para a cidade como pedreiros, motoristas, domésticas, mas agora estão retomando o trabalho com a terra. A novidade é que a associação tem recebido muitos jovens querendo atuar profissionalmente na agricultura urbana”, disse.

Na vila Nova Esperança, extremo oeste da capital, o trabalho colaborativo na horta comunitária começou em 2013 para promover educação ambiental. No início, poucos aderiram à ideia. Mas foi o suficiente para fazer a limpeza de um terreno baldio, “ponto viciado de lixo”, onde seria construída a horta, relatou a agricultora Maria de Lourdes Andrade de Souza, a Lia, presidente da associação de moradores local.

GEAU Maria de Lourdes Andrade de Souza

"Foi o suficiente para fazer a limpeza de um terreno baldio, ponto viciado de lixo", disse Lia, da horta da vila Nova Esperança

“Quando os resultados começaram a aparecer, todo mundo entrava na fila para ganhar alimento, até os que

não ajudavam em nada. Daí criamos a moeda social Esperança. Quem ajuda na manutenção da horta é remunerado e troca por legumes e hortaliças fresquinhas. Tudo o que vem de graça parece que não tem valor. Então estamos ensinando a valorização da terra. Tudo isso está unindo muito a comunidade”, diz Lia.

No lugar do entulho de lixo, além da horta da vila Nova Esperança é possível ver também uma composteira e um viveiro de mudas. Em breve, um pesqueiro fará parte da paisagem, conta Lia.

A plateia sugeriu iniciativas para coibir o vandalismo nas hortas comunitárias e a ideia de conscientizar e educar foi a forma mais citada para evitar roubos de mudas e produtos. “Essa atitude é um reflexo da relação da sociedade brasileira com o espaço público. Conversar com as pessoas tem adiantado nas hortas onde atuo como voluntária”, disse a hortelã Cláudia Visoni, que falou sobre sua experiência à frente da horta das Corujas, na vila Beatriz, zona oeste da capital.

Prefeitura buscará integrar mercados com projeto premiado de plataforma digital

Numa audiência pública realizada na Câmara Municipal no dia 28 de novembro, o secretário de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, disse que a Prefeitura da cidade de São Paulo está desenvolvendo uma plataforma para fomentar a venda dos produtos de agricultores familiares. “Queremos conectar a produção rural com a zona urbana, articulando os produtores com os restaurantes que estão voltados a um cardápio mais qualificado e baseado em orgânicos”, disse o secretário, segundo nota publicada no site da Câmara Municipal de São Paulo.

A plataforma digital mencionada por Franco é nada menos do que o projeto da Prefeitura de São Paulo ganhador do Prêmio Mayors Challenge 2016 da Bloomberg Philanthropies, anunciado no dia 30 de novembro, em Ciudad del Mexico. A instituição concedeu US$ 5 milhões para a execução do projeto, que tem como foco o desenvolvimento econômico da zona rural paulistana e a proteção das áreas de mananciais da cidade.

A proposta, intitulada “Ligue os Pontos”, pretende conectar toda a cadeia de valor da agricultura urbana, com o objetivo de facilitar e ampliar a distribuição do alimento produzido por agricultores familiares das áreas urbanas e periurbanas da cidade. Envolveu soluções de logística e tecnologia para a articulação entre produtores agroecológicos e orgânicos, distribuidores e consumidores. A assessoria de imprensa do gabinete da Prefeitura não informou quando será feita a implantação da plataforma digital.

Outra sugestão foi a criação de cultivares orgânicos em áreas de nascentes visando à proteção dos mananciais paulistas. Houve ainda intervenções para incentivar o uso das podas de árvore na adubação das hortas da cidade.

“Já existe uma lei de autoria do vereador Gilberto Natalini (PV-SP), atual secretário do Verde, proibindo enviar as podas de árvores para aterros. Então agora é o momento de conversar com ele para viabilizar o uso desse material nas hortas”, disse Visoni. A lei 14.723, de 2008, instituiu o Programa de Aproveitamento de Madeira de Podas de Árvores para reduzir o acúmulo de material orgânico nos aterros e economizar inúmeras viagens de caminhões da prefeitura no transporte desse tipo de produto.

Os participantes lembraram a importância dos espaços de comercialização, como feira livres e mercados. “Os mercados municipais deveriam ter uma área para a agroecologia urbana e isso é um ato administrativo que não precisa de orçamento. Outras medidas deveriam fortalecer as compras escolares desses produtores de forma a executar de fato o que já está previsto em lei. Muitas escolas gastam dinheiro para capinar terreno e deveriam direcionar essas áreas para hortas. Os agricultores conveniados com a prefeitura poderiam produzir mais e teriam ganho de escala. As feiras livres deveriam inclusive incentivar a troca de produtos e a logística solidária em circuitos aproximados”, disse Regiane Nigro, do Instituto Kairós.

 

A força da articulação coletiva em Rennes e Montreal

Com a mediação de Gustavo Nagib, integrante do GEAU, o debate Agricultura Urbana em Rennes, Montreal e São Paulo: Como Podemos Aprender e Articular Ações à Luz da Comparação? trouxe os relatos das pesquisadoras do GEAU Giulia Giacchè e Lya Porto, que mostraram as experiências de diversos tipos de hortas urbanas em Rennes, noroeste da França, e Montreal, na província de Quebec, no sudeste do Canadá.

Além da língua – apesar de pertencer a um país de língua inglesa, Montreal tem o francês falado correntemente junto com o inglês – essas duas cidades possuem em comum o fato de terem uma grande concentração de estudantes. Os inúmeros projetos apresentados pelas pesquisadoras demonstraram a integração das políticas públicas, de forma que a agricultura urbana se insere organicamente nas políticas municipais.

Agricultura orgânica - Lufa Farms 2

Runaway Creek Farms, um dos pontos de distribuição da Lufa Farms, de Montreal

Nos casos citados, a gestão dos espaços de agricultura urbana é coletiva. O poder público participa ativamente por meio de financiamentos de negócios sociais, fornecimento de insumos, de terrenos ou mão de obra e assistência técnica, mostraram as pesquisadoras.

“Rennes votou na Câmara Municipal que quer se tornar uma cidade comestível. O programa Incredible Edible identificou 50 ações para a cidade se tornar comestível e a Prefeitura se engajou para cumprir essas 50 ações necessárias”, disse Giacchè.

A meta em Rennes é chegar a uma produção de 40% de orgânicos e à redução de 50% do desperdício de alimentos. Uma das formas de atingir essa meta foi a Prefeitura disponibilizar terrenos para a agricultura urbana – atualmente são 19 hectares em regiões periféricas – e a própria comunidade cria associações para gerir essas áreas.

A Prefeitura também atua com concessões de terras, que são geridas por associações, caso do Vert le Jardin, que atualmente possui 95 horticultores associados, que também partilham sementes. No projeto Embellissons nos mur, a Prefeitura estimula o cultivo em calçadas e paredes, fornecendo implementos e até quebrando a calçada para o plantio.

A plataforma digital Prêter son Jardin.com reúne cidadãos que têm terra para plantar, mas não têm tempo e aqueles que querem plantar, mas não possuem espaço. Há também os galinheiros coletivos e negócios sociais apoiados pela Prefeitura para a produção de sementes orgânicas e mel.

A compostagem geralmente acompanha a maioria dos projetos. Do orçamento anual da Prefeitura, 5% é destinado às chamadas publicas. Todos os cidadãos votam pela internet e os vencedores implementam seus projetos de agricultura, hortas suspensas e projetos sociais.

GEAU 2

Giulia Giacchè (esq.) e Lya Porto, do GEAU, mostraram as experiências de Rennes e Montreal

projeto de alimentação positiva em Rennes, parceria da Prefeitura com uma associação de produtores orgânicos, seleciona e acompanha 30 famílias para engajá-las no consumo de alimento saudável. O objetivo é demonstrar que é possível comprar orgânicos por preços menores ou iguais aos produtos convencionais.

Montreal tem alguma dificuldade de integrar as políticas públicas da cidade, pois a gestão municipal é descentralizada. Os movimentos sociais lutam atualmente por ações mais planejadas do poder público e com isso há um forte engajamento comunitário, mostrou Lia Porto.

Existem 400 iniciativas de apicultura na cidade canadense, onde a agricultura urbana ocupa 1,5% do território. As hortas familiares remontam à década de 1970.  Um comitê gestor é responsável pela compra de insumos, manutenção das hortas e articulação de novos membros. Os participantes pagam em média US$ 20 dólares mensais para compras em geral. Há um total de 97 horticultores nesse esquema e 8.500 pessoas envolvidas.

Mas a demanda para esses espaços é muito alta e há uma fila de sete anos de espera para novos membros. Com isso, surgiram as hortas coletivas, organizadas e geridas coletivamente em parceria com igrejas, restaurantes e departamentos municipais. Atualmente, esse tipo de organização soma 75 hortas em Montreal.

Há também hortas comunitárias em que cada gestor de canteiro decide o que plantar. Geralmente são estrangeiros que plantam alimentos não convencionais, de forma que podem seguir a alimentação conforme sua cultura e tradições.

Increadible Edible, Le Mange Trottoir, Partage ta terre, Cycle Alimenterre, Le Fruits Défendus são alguns dos movimentos urbanos de Montreal voltados ao plantio coletivo. Também recebem apoio da Prefeitura, seja como treinamento para plantio e colheita, ou na distribuição e comercialização dos alimentos, mostrou Porto.

O Lufa Farms, um tipo de “fazenda em telhado”, são estufas que permitem o plantio durante o ano todo. Fora dessas estufas, só é possível plantar por seis meses devido ao clima frio. As parcerias disponibilizam aos produtores 355 pontos de entrega, como lanchonetes, cafés, restaurantes e mercados.

O projeto Eco Quartier da Prefeitura estimula e gere múltiplos projetos ambientais e de agricultura urbana voltados à transformação de ruas em espaços verdes.

Há também financiamentos públicos para projetos sociais em Montreal. As empresas sociais e cooperativas atuam em uma diversidade de projetos sociais, envolvendo financiamentos da Prefeitura para o cultivo de cogumelo, apicultura, cozinhas comunitárias, compostagem e até distribuição de bicicletas.

As pesquisadoras mostraram também as formas de engajamento das universidades na questão da agricultura urbana, com as escolas oferecendo pesquisas sobre hortas e estufas, além de cursos, oficinas educativas e projetos comunitários.