Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Violência, resistência e integração na formação da sociedade brasileira

Violência, resistência e integração na formação da sociedade brasileira

por Mauro Bellesa - publicado 14/11/2019 11:06 - última modificação 14/11/2019 11:06

O encontro "Brasil, Brasis e sua Complexa Formação Social", no dia 1º de novembro, foi o 14º evento da "Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral".

Encontro "Brasil, Brasis e sua Complexa Formação Social"
Evento teve a participação de pesquisadores e representantes de várias comunidades
O encontro Brasil, Brasis e sua Complexa Formação Social, no dia 1º de novembro, debateu vários aspectos da constituição da sociedade brasileira, entre os quais o genocídio de indígenas pelos colonizadores e as ameaças que ainda enfrentam, a escravidão de africanos e seus descendentes e o racismo ainda imperante, a cultura de povos tradicionais da Amazônia e a história da imigração de judeus e árabes. Foi o 14º encontro da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral.

Os expositores foram o historiador da arte e curador Marcelo Campos, o sociólogo da cultura João de Jesus de Paes Loureiro, o líder indígena Ailton Krenak, o rabino Michel Schlesinger e a neurocientista Soraya Soubhi Smaili. O curador Paulo Herkenhoff, titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura de Ciência, moderou o evento.

Relacionado

Notícia

Textos

Midiateca


Textos, notícias, vídeos e fotos dos encontros

Afro-brasilidade

Marcelo Campos, professor de teoria e história da arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), tratou das relações entre afro-brasilidade e arte em seu mestrado e no doutorado.

Marcelo Campos - 1º/11/2019
Marcelo Campos

Para ele, o Brasil continua produzindo feridas em relação aos afrodescendentes: "A coetaneidade nos foi negada; teses e dissertações só tratam do barroquismo, forma descontextualizada e muitas vezes infértil".

Ninguém lhe explicava o travestismo do candomblé, "onde coexistem gênero e religiosidade", afirmou.

Campos considera que "os signos coloniais que lotam coleções de museus deveriam estar em autos criminais".

Apesar de haver agora na arte um grande empenho de descolonização da linguagem, para ele "não há mais tempo para retórica, metáfora; se houver arte, que ela nos encontre".

Cultura amazônica

Para João de Jesus de Paes Loureiro, a Amazônia da cultura e da arte parece estar fora da grande narrativa do país. "O que se perde à medida que a região é destruída, os homens do campo são expulsos e as sociedades indígenas são desestruturadas?"

Sobre a jornada

A Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral é uma disciplina de pós-graduação aberta à participação do público oferecida pela Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (parceria entre o IEA e o Itaú Cultural) e a Pró-Reitoria de Pós-Graduaçãoda USP.

A iniciativa é uma homenagem ao professor Alfredo Bosi, ex-diretor do IEA, editor da revista do Instituto desde 1989 e estudioso das interseções entre arte e ciência.

A idealização e coordenação é dos titulares da cátedra: o crítico, curador e historiador de arte Paulo Herkenhoff e a biomédica Helena Nader, professora da Unifesp.

A intenção é promover uma discussão profunda sobre as inter-relações arte e ciência ao longo dos tempos, perpassando por aspectos como proeminência cultural de um país sobre outro, questões de gênero, de estilos e formatos.

Ao todo, serão 19 encontros de agosto e dezembro, sempre às quintas e sextas-feiras, das 14h às 17h, com a participação de palestrantes e debatedores de diversos campos do conhecimento, líderes em suas áreas de atuação.

Segundo ele, a natureza da Amazônia "ocupa o palco principal e o mundo inteiro se comove com as queimadas". Isso tem a ver com o fato de a Amazônia integrar o imaginário ocidental, disse, pois "representava a busca de um novo mundo, do paraíso na Terra".

É preciso também considerar a Amazônia como "exemplo da revelação de um imaginário que constitui um fato social e integra sua diferença como região, com capacidade muito grande de expressão própria".

Ele avalia que agora a região assumiu uma dimensão aurática, como definida pelo filósofo Walter Benjamin: "Todos, de todos os níveis, a defendem por ser algo irrepetível; isso é uma forma de colocá-la a distância, ainda que esteja próxima. Essa dimensão tem provocado movimentos de solidariedade com uma realidade que parece viver um período comatoso desde sua Belle Époque, que na verdade foi um período de expropriação da região pela Belle Époque europeia".

João de Jesus de Paes Loureiro - 1º/11/2019
João de Jesus de Paes Loureiro

No entanto, Loureiro criticou o fato de nenhuma universidade da região ter cursos regulares sobre o imaginário, que é um dos elementos distintivos da Amazônia.

"Ela é um almoxarifado nacional e internacional onde se vão buscar ideias, fatores simbólicos, porém, as matrizes desses valores não são vistas nos estudos sob uma ótica do imaginário, para que sejam compreendidas."

Ele lembrou três situações emblemáticas da relação com os mitos da Amazônia na época do modernismo: peças musicais de Villa-Lobos, "Cobra Norato", de Raul Bopp, e "Macunaíma", de Mário de Andrade.

"'Cobra Norato' é uma conjunção de narrativas que Bopp poetizou. Talvez seja o primeiro etnopoema  da literatura brasileira, uma interligação do poético com o antropológico." Quanto a "Macunaíma", Loureiro lembrou que Mário de Andrade se inspirou em lendas de Roraima, como a do tambatajá, na qual os corpos de um casal de índios geram uma planta, o tambatajá, cujas folhas representam o homem e a mulher. Para ele, essa lenda "dá uma lição de ética amorosa".

Ele também comentou a lenda do boto, que se transforma num rapaz bonito para conquistar as moças. As crianças reconhecidas como filhos do Boto são vistas como diferentes. "É como se possuíssem uma hybris, por serem filhos de um encantado e de uma mulher, como o herói grego e o Cristo terreno."

Genocídio indígena

Se a participação de Ailton Krenak destoou do intuito de discutir a contribuição de vários povos para a formação sociocultural do Brasil, ao mesmo tempo foi uma reafirmação da complexidade e violência desse processo, dado o genocídio sofrido pelos indígenas e as ameaças persistentes a sua cultura e suas terras.

Ailton Krenak - 1º/11/2019
Ailton Krenak

"Assim como Mário de Andrade observa a Amazônia do ponto de vista de um paulista, vocês veem o mundo amazônico pela cultura do Ocidente. Os europeus ocuparam o planeta. A narrativa do Ocidente se impõe ao mundo e os outros povos se tornam pigmeus."

Na opinião de Krenak, as universidades ocidentais só fazem perpetuar o colonialismo, cuja continuidade, genocídio e falsificação da história precisam ser denunciados.

Para os povos indígenas não há distinção entre arte, cultura e natureza, afirmou. "Não consigo pensar em arte e cultura separadas dos rios, florestas e montanhas. Os únicos povos que compõem uma narrativa assim são os originários. Até quando vamos continuar privilegiando uma visão hegemônica, europeia, colonialista?"

Ele citou o pajé Davi Kopenawa, líder yanomami, para quem o homem branco escreve tudo porque tem uma memória cheia de esquecimento. "Alguns de nossos anciões, quando escutam os brancos falando sobre sua história, dizem: 'Vejam como eles se esqueceram de tudo!'" A ideia é que os brancos se esqueceram que faziam parte do mesmo povo integrado pelos indígenas. "Como não se lembram, vivem nos infernizando". disse Krenak.

Imigração judaica

Dados do Censo 2010 indicaram a presença de 107.329 judeus no Brasil, constituindo a 11ª maior comunidade do mundo, superada na América Latina apenas pela comunidade judaica da Argentina, segundo Michel Schlesinger, que integra a Congregação Israelita Paulista. "O número de descendentes é incerto. De acordo com pesquisa de 1999, 0,2% dos brasileiros declaram ancestralidade judaica, o que significaria mais de 400 mil descendentes atualmente."

O rabino historiou o processo de vinda de judeus ao Brasil desde o início da colonização, a chegada de sefarditas e cristãos novos ibéricos devido à Inquisição e a imigração, nos séculos 19 e 20, de judeus originários do leste europeu para as cidade de São Paulo e Rio de Janeiro, e germânicos instalados pelo imperador Pedro II em Santa Catarina e no Paraná.

Michel Schlesinger - 1º/11/2019
Michel Schlesinger

Segundo Schlesinger, no período colonial, os judeus portugueses viam no novo mundo uma possibilidade de liberdade para suas práticas religiosas. "Durante os 24 anos [1630-1654] da dominação holandesa do Nordeste, aumentou a imigração de judeus. No Recife, eles se estabeleceram como comerciantes e fundaram a Congregação Rochedo de Israel [Kahal Zur Israel], primeira sinagoga das Américas."

Com a expulsão dos holandeses, os judeus fugiram para os Países Baixos, Antilhas e Nova Amsterdam, que depois se tornou Nova York, onde criaram a primeira comunidade judaica. "Há lápides com inscrições em português no cemitério dessa comunidade e havia uma sinagoga de rito português."

Schlesinger também relatou a ida de cristãos novos para Minas Gerais, durante o ciclo do ouro, no século 18, a onda de imigração de judeus vindos do Marrocos em direção a Amazônia a partir de 1810, a presença deles em Manaus, com o ciclo da borracha iniciado em 1880, e certo sincretismo entre judaísmo e catolicismo em Cametá, no Pará.

Com a Proclamação da República em 1889, que garantiu a liberdade religiosa no país, muitos judeus do leste europeu se instalaram em Santos e na Capital paulista, constituindo uma comunidade próspera, afirmou o rabino.

"No início do século 20, foram formadas colônias judaicas no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, no final dos anos 20, os judeus concentraram-se no bairro do Bom Fim. Na década de 30, um maior contingente chegou ao Brasil, estabelecendo-se no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, e em outras regiões do país."

Perguntado sobre a existência de costumes genuinamente brasileiros incorporados pela prática religiosa judaica, Schlesinger observou que na semana do Pessach (conhecida como "Pascoa Judaica"), os judeus não podem comer alimentos com farinha de trigo fermentada, mas podem comer outras coisas, como pão de queijo e tapioca.

A biomédica Helena Nader, assim como Herkenhoff titular da Cátedra Olavo Setubal, citou o envolvimento de imigrantes judeus na política brasileira. Herkenhoff acrescentou que, apesar de não ter havido uma perseguição ostensiva a eles no país durante o século 20, "não podermos esquecer casos como o de Olga Benário [deportada para a Alemanha nazista em 1936 pelo governo Vargas] e Stefen Zweig", obrigado a escrever "Brasil: O País do Futuro" para permanecer no Brasil, segundo o curador.

Para Schlesinger, a sensibilidade social dos judeus talvez tenha sido estimulada pela opressão que sofreram ao longo da história. "Essa ligação com a sociedade está associada à história religiosa e à perseguição."

Soraya Soubhi Smeili - 1º/11/2019
Soraya Soubhi Smaili

Presença árabe

Soraya Soubhi Smaili, reitora da Unifesp, historiou a chegada dos árabes ao Brasil e sua participação para a constituição da sociedade brasileira.

Ela citou o geógrafo Aziz Ab'Sáber (que foi professor honorário do IEA), para quem a obra de Darcy Ribeiro "'O Povo Brasileiro",  "deve ser lido e visto [o filme] por todos nós, pois nos ajuda a entender como os árabes chegaram ao Brasil e como influenciaram a constituição da nossa cultura muito antes de a imigração árabe chegar”.

Smaili lembrou que Darcy Ribeiro fala no livro do príncipe D. Henrique, o Navegador (1394-1460), incentivador das primeiras viagens expansionistas de Portugal, com naus providas de leme fixo, como as dos árabes, inventores também de instrumentos utilizados pelos navegantes, como o astrolábio e bússola usados pelos navegantes.

Ela comentou as contribuições árabes à cultura ibérica, como a introdução do moinho d'água, bicho da seda, laranjeira, rabeca, varanda, algodão, azulejos e a cana de açúcar e a incorporação de inúmeras palavras árabes pela língua portuguesa (25% do vocabulário têm essa origem).

"Muitos árabes chegaram jovens e começaram como mascates no século 19, sobretudo sírios e libaneses. Prosperaram no comércio, passando de vendedores ambulantes a donos de lojas e depois de indústrias. O Brasil também propiciou coexistência com outros povos e liberdade total de culto religioso."

Smaili lembrou o livro "Amrik", de Ana Miranda, que narra a saga de imigrantes árabes recém-chegados a São Paulo no final do século 19, e "Lavoura Arcaica", de Raduan Nassar, cujo núcleo familiar é de libaneses. Também comentou influências árabes na música, arquitetura, mosaicos em construções e consumo de café e azeite.

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP