Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Origens, características e consequências de junho de 2013, segundo Angela Alonso

Origens, características e consequências de junho de 2013, segundo Angela Alonso

por Mauro Bellesa - publicado 16/12/2021 14:45 - última modificação 06/01/2022 13:24

O terceiro encontro do ciclo anual da Cátedra Otavio Frias Filho, no dia 2 de dezembro, teve o tema "As Políticas das Ruas nos Governos do PT", com exposição de Angela Alonso, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Angela Alonso - 2/12/2021
Angela Alonso: ''Não foi algo unificado, mas um ciclo de protestos com vários movimentos simultâneos, cada um com agenda e ativismo próprios''

As tendências políticas e sua atuação pública desde o primeiro governo Lula foram destaque no terceiro encontro do ciclo anual da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos de Comunicação, Democracia e Diversidade, parceria entre o IEA e o jornal Folha de S.Paulo.

Com o título "As Políticas de Rua nos Governo do PT", o encontro ocorrido no dia 2 de dezembro teve como expositora a professora Angela Alonso, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e integrante do Conselho Executivo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Ela apresentou dados e conclusões da pesquisa que lidera no centro sobre as manifestações de junho de 2013.

O encontro teve comentários do titular da cátedra, o sociólogo Muniz Sodré, e a moderação de dois integrantes do Comitê de Governança: o coordenador acadêmico, André Chaves de Melo Silva, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e o coordenador-adjunto, Vinicius Mota, secretário de Redação da Folha de S.Paulo. Também participaram vários pesquisadores vinculados à cátedra este ano, que apresentaram questões à expositora.

Para Angela, os acontecimentos de junho de 2013 podem ser analisados a partir de múltiplas perspectivas. A dela, que considera mais fria, é resultado de pesquisa que iniciou à época das manifestações e de outra maior que está finalizando e deve resultar num livro em 2022. O trabalho também está subsidiando um documentário que ela está produzindo com o jornalista Paulo Markun.

Relacionado

O Que Está Acontecendo?
(debate em 21 de junho de 2013)

Notícias
Midiateca

 

Como Avançar?
(debate em 3 de julho de 2013)

Notícia
Midiateca


Outros encontros do ciclo anual da Cátedra Otavio Frias Filho

Posse de Muniz Sodré como titular

Notícias
Midiateca


Como o Índice Folha de Equilíbrio Racial Pode Contribuir para o Debate sobre As Múltiplas Desigualdades Raciais no Brasil

Notícia
Midiateca

A questão que persiste para muitos é como se passou de algo em que se pensava estar mudando o pais para o governo de “o país acima de tudo e Deus acima de todos”, slogan do presidente Jair Bolsonaro, comentou. Uma parte da resposta, disse, está nas relações entre as mobilizações e o período do Partidos dos Trabalhadores (PT) no poder.

“Quando o movimento estourou só se falava de nova esquerda. O fenômeno foi visto como um movimento insurgente, progressista. Depois houve a tese da captura das manifestações por líderes de movimentos conservadores.”

Equívoco

Ela considera essa tese equivocada e vê no movimento algo muito complexo, com influência de várias reações políticas a reformas ou falta delas nos governos Lula e no primeiro governo Dilma. “Não foi algo unificado, mas um ciclo de protestos, com vários movimentos simultâneos, cada um com sua agenda e ativismo próprio.”

É preciso retroagir até à ascensão de Lula à presidência e o que isso significou do ponto de vista das mobilizações de rua, afirmou. “Ocorreu um vácuo. A rua perdeu líderes.” Com a incorporação de quadros do partido na máquina estatal, muita gente que organizava protestos foi para o governo, afirmou a socióloga. E quem não foi para o governo e defendia mais mudanças “ficou desconfortável em bater nele”.

As ações do governo em favor de camadas mais pobres geraram embates, com a zona de conflito se configurando em torno da redução da desigualdade, bolsa-família, aumento do salário mínimo, com impactos também provenientes da redistribuição de acessos e oportunidades, disse. “Essas políticas geraram descontentamento nas camadas intermediárias e superiores, que perdiam destaque.”

O descontentamento, no lado da esquerda, a criação do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e da Rede, em função da agenda ambiental. Pelo lado da direita, com a iniciativa do governo em estabelecer limites aceitáveis para o uso da força e tentar investigar os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura, surgiu a chamada “bancada da bala” no Congresso Nacional, “que ganhou o plebiscito do desarmamento e impediu a criação da Comissão da Verdade”, afirmou a professora.

Moralidade

Outra zona de conflito se deu no campo da moralidade privada, segundo Angela, como no caso da luta pela descriminalização do aborto pelas feministas: “A rua se movimentou a favor e contra, e o governo recuou”.

No caso da moralidade pública, ela considera que as denúncias de corrupção e o caso do Mensalão, em 2005, provocaram reações dos dois lados: do Psol e movimentos vinculados a ele; depois, do Cansei - liderado pelo então apenas empresário João Dória - e em seguida de outros movimentos.

“No entanto, durante todo o governo, apesar das denúncias de corrupção, foi a moralidade privada que levou gente às ruas, como manifestações contra a legalização do aborto e a Marcha por Jesus.”

Segundo Angela, manifestações de grande porte não aconteceram no governo Lula porque ele recuou na agenda de costumes em favor de seu foco nas políticas redistributivas e porque a oposição não estava preparada para protestos gigantes. “Para pôr milhões na rua são necessárias redes de recrutamento e mobilização. E elas foram surgindo durante o governo Lula.”

Ela destacou a aparição de vários grupos autogeridos, organizações típicas do cooperativismo, coletivos de ativismo cultural, redes de empreendedores, de jovens empresários ligados às novas tecnologias ou à atividade rural, organizações religiosas. “Tudo isso funcionou como uma rede de recrutamento e organização de várias correntes, todos na linha mais sociedade e menos Estado.”

Campos políticos

Angela identifica três posturas básicas que caracterizaram o clima político herdado pelo governo Dilma: o ativismo socialista repaginado (com a parte da esquerda descontente com o governo do PT), a corrente autonomista e o movimento que ela chama de patriota.

Muniz Sodré - 2/12/2021
Muniz Sodré: ''Foi uma massa ancorada no antigo mote da corrupção''

“Ela herdou um prato pronto, mas pôs seu tempero”. Uma de suas ações foi implantar a Comissão da Verdade. Daí surgiram movimentos pela punição dos torturadores e, do outro lado, pela punição dos participantes da luta armada da esquerda, disse. Outro fato foram os movimentos pela paz social e a contraposição de outros que pregavam a autodefesa e o direito ao uso de armas, acrescentou.

Outros componentes foram acrescentados a esse clima geral. Um deles foi, segundo a socióloga, a aprovação do novo Código Florestal, com campanhas pelo veto e, do outro lado, a atuação da frente parlamentar do agronegócio. “Nenhum dos dois lados ficou satisfeito.”

Somado a isso, ela elenca os posicionamentos a favor ou contrários a várias questões, como a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, as obras para a Copa do Mundo, a PEC das Domésticas, as cotas raciais e o casamento gay, além de outros aspectos, como "a espetacularização do julgamento do Mensalão".

“Tudo isso aconteceu antes de junho de 2013. Dilma era bastante popular, mas perdia apoio entre formadores de opinião, jovens universitários e mais ricos e outros que vinham de movimentos que já se colocavam à direita do governo.”

Para Angela, é equivoca a interpretação que viu um sentido progressista nas manifestações, principalmente pela motivação do Movimento Passe Livre, contra o reajuste de tarifas no transporte público. “O ciclo nunca foi homogêneo, mas com manifestações simultâneas dos três campos que vinham desde o governo Lula.”

Desilusão

“O campo socialista reunia desiludidos com o PT: sindicatos, a CUT e o PCdoB estavam na rua desde o início de junho. O campo autonomista, anti-hierárquico, realizou a Marcha da Maconha, a Marcha das Vadias, com temas muito mais voltados à moralidade do que à redistribuição de renda. O terceiro, o patriota, incluía movimentos contrários à redistribuição, demandavam mais segurança e menos Estado.”

Angela disse que o campo patriota também atuava nos outros dois campos. Para os campos à esquerda, o PT estava mudando muito pouco o país, ao passo que o campo patriota considerava que o PT mudava na direção errada, afirmou

Até 13 de junho, os movimentos levavam poucos à rua, “mas desde o princípio não houve uma convivência pacífica, com estranhamento entre todos e violência praticada por todos”.

O que virou o jogo, disse, foi a violência do Estado no dia 13, com “a grande mídia sendo crucial ao mostrar a violência policial desproporcional, e com isso houve a massificação dos protestos”.  Para ela, foi a repercussão na grande mídia e não a atuação das redes que tornou as mobilizações gigantes.

“O ciclo terminou com um mosaico dos três campos, e cada um com sua agenda. Junho de 2013 não acabou em 2013. A instabilidade continuou e ficou crônica. A oposição logo se organizou assim que saiu o resultado das eleições de 2014. O campo patriota voltou sozinho e maior do que 2013.”

Subcampos

Angela vê três subcampos dos patriotas em 2015: os que defendiam a agenda liberal, com supremacia do mercado; os de matriz mais conservadora, com um estado regulador; e outro “francamente autoritário, pregando um Estado forte e moralizante”.

Os que unia esses subcampos era a oposição ao PT e o tema da corrupção, que “tinha sentido tanto como corrupção privada quanto corrupção política”. De acordo com a socióloga, os protestos de 2013 visavam diferentes lados, mas os de 2015 “eram todos contra a presidente”.

Para Angela, os intelectuais sempre se encantam com protestos, principalmente com os grandes, em busca de movimentos emancipatórios, “mas muitos hipertrofiaram o menor dos campos, o autonomista, dentro dele, um movimento miudinho. Deixaram de notar tanto o campo socialista descontente com o PT quanto o campo patriota”.

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 não foi obra de certa direita, “assim como 2013 não foi de uma esquerda”, disse. “Não me parece que a eleição dele tenha sido acidental. Fui uma tragédia, mas não uma surpresa”, concluiu.

Ao comentar a exposição de Angela, Muniz Sodré disse que ao assistir às primeiras manifestações de 2013 no Rio de Janeiro lhe ocorreu o poema “Gaúcho”, do poeta pernambucano Ascenso Ferreira (1895-1965), que diz no final: “Sai de meus pagos em louca arrancada! / — Para quê? / — Pra nada!”.

Massa

Sodré disse ter visto nas manifestações um cruzamento de diferentes coletivos. “Para mim, foi uma massa, ancorada no antigo mote da corrupção”. Segundo ele, a massa pode crescer nos limites do sistema, ser antissistema, mas não é povo. “Povo é um princípio republicano. A massa é densa, amplifica a rua, mas falta direção.”

Vinicius Mota - 2/12/2021
Vinicius Mota: ''Eleição de Bolsonaro foi um acidente no grande jogo da história''

O titular da cátedra afirmou que junho de 2013 foi um movimento de massa constituído de restos intersticiais, “uma nebulosa opaca sem sentido”.

Angela discordou dessa parte da interpretação de Sodré. Para ela, quem trabalha com sociologia política suspeita sempre da existência da massa: "Se há gente na rua, há liderança”.

Vinicius Mota argumentou que, se a eleição de Bolsonaro não foi um acidente, pois vários grupos estavam se preparando para disputar o poder, como dito por Angela, por outro lado, foi um “acidente no grande jogo da história”, diante das características do país, com má distribuição de renda e oportunidades, com o eleitor com carências tão evidentes. Com esse quadro, "não se pode esperar que uma eleição seja decidida pelas questões dos costumes e da corrupção, é muito fora do eixo”, afirmou.

Angela respondeu que a questão eleitoral central no Brasil sempre foi a redistributiva. “Não há como não falar disso, sobretudo com o voto obrigatório. Se fosse facultativo, os pobres não votariam e essa questão sairia de cena. Mas será que ela é definitiva? Aí entra a questão da mídia. A corrupção como grande problema nacional foi uma construção midiática muito forte, e a grande maioria da imprensa embarcou nisso.”

Think tanks

Guilherme Ary Plonski, lembrou o papel de instituições pré-64, como Instituto Superior de Estudos Brasileiro (Iseb) - "hoje seriam chamadas de think tanks" - e perguntou a Angela se não houve “gente sentada com ar-condicionado com papel importante no que aconteceu em 2013 e depois”.

Angelo concordou e deu como exemplo o Instituto Millenium, que parte significativa do grande empresariado para pensar o país, fazer eventos e publicações, e que resultou em vários spin-offs. “O Kim Katiguiri [deputado federal pelo DEM-SP e um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL)] foi formado pelo Millenium, que tem várias conexões e envia membros para os Estados Unidos”. Ela lembrou declaração de um dos fundadores do Millenium, segundo o qual o objetivo do Instituto não era falar com as massas, mas construir uma torre de marfim e reunir pessoas que tivessem ideias como as dos fundadores e as difundissem.

Fotos: IEA-USP