Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / As transformações promovidas pelas igrejas evangélicas entre os pobres

As transformações promovidas pelas igrejas evangélicas entre os pobres

por Mauro Bellesa - publicado 23/05/2022 10:35 - última modificação 23/05/2022 13:28

O antropólogo digital Juliano Spyer, da UFRJ e colunista da Folha de S.Paulo, foi o conferencista do sexto encontro do Ciclo Anual 2021/22 da Cátedra Otavio Frias de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade, no dia 19 de maio. Seu tema foi "Por Que o Cristianismo Evangélico Melhora a Vida do Pobre Brasileiro – Um Relato de Caso da Bahia" .

Culto evangélico

Trinta e um por cento dos brasileiros são evangélicos. Em dez anos, eles serão o maior percentual da população. O crescimento no número desses fiéis tem desdobramentos significativos na cultura, costumes, política, artes e várias atividades econômicas.

Todavia, os evangélicos ainda são pouco compreendidos e motivo de preconceito por parcelas da sociedade mais bem aquinhoadas em termos econômicos e educacionais e por setores de tendências políticas.

Devido a essa falta de informação e ao preconceito, discutir a realidade evangélica é “como andar num pântano minado e potencializado pelo momento, quando há uma polarização do país, muitas vezes pautada pela questão, devido à participação de evangélicos na política”, segundo o antropólogo digital Juliano Spyer, pesquisador do Centro de Pesquisas em Consumo e Sociedade (Cecons) da UFRJ e colunista do jornal Folha de S.Paulo.

Relacionado

No dia 19 de maio, ele foi o expositor do sexto encontro do Ciclo Anual 2021/2022 da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade. O tema de sua conferência foi Por Que o Cristianismo Evangélico Melhora a Vida do Pobre Brasileiro – Um Relato de Caso da Bahia. A moderação foi do coordenador acadêmico da cátedra, André Chaves de Melo Silva, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Também participou o coordenador executivo da cátedra, Vinícius Mota, secretário de Redação da Folha de S.Paulo, parceira do IEA na cátedra, cujo titular é o sociólogo Muniz Sodré, da UFRJ.

Preconceito

“Quando falamos sobre os evangélicos, dizemos que eles são contra o Estado laico. No entanto, quem defende o Estado laico em espaços públicos faz comentários sobre esses fieis que poderiam ser enquadrados, do ponto de vista jurídico, como ofensa à religião”, afirmou.

Para ele, a visão que a classe média e as elites têm do brasileiro pobre é a de “alguém parecido conosco, só que incompleto, uma visão que tende a ver esse brasileiro como alguém menos capaz ou de alguma forma patologizado”. Essa percepção é estendida aos evangélicos, disse, cujo perfil médio apontado pelo Data Folha em 2020 é de alguém “preto, pobre, periférico e mulher”.

Spyer explicou que não é evangélico nem especialista em religiões e detalhou como chegou ao tema, a partir de sua participação em um grupo de pesquisa liderado pelo University College de Londres e apoiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa. Nesse projeto, ele e mais oito pesquisadores analisaram, durante seis anos, as consequências do uso da internet por pessoas de lugares diferentes daqueles do padrão jovem do sexo masculino, branco, universitário europeu ou americano.

Ele escolheu como lugar de pesquisa um bairro dormitório com 20 mil habitantes do município de Camaçari, ao norte de Salvador, relativamente próximo de 12 resorts no litoral, onde muitos moradores trabalham. Spyer viveu 18 meses no local. A realidade do bairro, disse, é similar a inúmeras periferias de cidades médias e grandes do país, pequenas vilas que cresceram em função do intenso fluxo migratório campo-cidade da segunda metade do século 20. Esse trabalho resultou no seu livro “Mídias Digitais no Brasil Emergente” (2018).

Sua estada no local o levou a conhecer de perto o dia a dia da população evangélica do bairro. Segundo ele, lá há uma igreja católica pequena, oito terreiros de candomblé e mais de 80 igrejas evangélicas. Essa vivência com os evangélicos o levou a escrever o livro “Povo de Deus: Quem São os Evangélicos e Por Que Eles Importam”, lançado em 2021 e finalista do Prêmio Jabuti de ciências humanas. Além de suas constatações, o livro reúne dados das principais pesquisa brasileiras e estrangeiras sobre o tema.

Spyers destacou que o crescimento e influência dos evangélicos é um dos temas mais populares das ciências sociais no momento, mas a literatura acadêmica sobre a questão é pouco conhecida, e mesmo na imprensa o assunto não merece muito espaço, ao contrário de outras pautas sociais. Para ele, o pentecostalismo evangélico é um fenômeno descrito na literatura como moderno e modernizante, “pois tem a capacidade de promover a ascensão dos pobres à classe média”.

Juliano Spyer
O antropólogo Juliano Spyer

Motivações

Três motivos principais o levaram a escrever “Povo de Deus”, disse. Um deles tem a ver com um lado brutal na vida familiar: “Para mim, a violência doméstica era algo abstrato. Lá isso é algo presente nos finais de semana. O marido recebe o salário, gasta parte do dinheiro no bar e quando chega em casa começa uma discussão agressiva que dura horas. Não dá para chamar a polícia ou bater na porta da casa”. No entanto, esse tipo de violência ligada ao álcool deixa de existir entre os evangélicos, que têm de parar de beber e de fumar, não podem ter relacionais extraconjungais e devem usar todo o dinheiro em benefício da família, afirmou.

Outra motivação de Spyer é o papel da leitura, sobretudo da Bíblia, nas igrejas evangélicas. “A maioria dos fiéis estudou até o quarto ano, mas muitos são analfabetos ou analfabetos funcionais. Na igreja, há uma diferença notável na capacidade de ler e escrever, mas a leitura da Bíblia é obrigatória para participar da igreja. Isso faz com que sejam criadas escolas noturnas de alfabetização.”

O bairro tinha três bibliotecas fechadas, uma municipal sem funcionar há 13 anos e duas em escolas de ensino fundamental que receberam acervo do governo, mas empilharam os livros num canto para usar o espaço como sala de aula, disse Spyer. No entanto, o bairro tinha uma livraria evangélica, com Bíblias de todos os tipos e formatos, mas também cerca de 150 outros livros. O interesse pela cultura e pelo conhecimento ecoa mais nos círculos evangélicos do que fora deles, disse o antropólogo.

O terceiro aspecto que o estimulou foi a promoção da dignidade entre os evangélicos. “Certa vez estava com 11 homens num encontro. Quando terminou, o que era mais próximo de mim disse: ‘Todos esses homens que estavam aqui passaram pela prisão’. Nos 18 meses que passei lá, nada deu a entender que eles eram tinham estado na prisão”. Aliás, destacou, a única alternativa aceita pelos grupos criminosos para um de seus integrantes deixá-lo, se sofrer retaliações, é entrar para uma igreja evangélica.

Outra constatação de Spyer no bairro foi quanto as relações das mulheres com outras pessoas. “Sempre que me aproximava de uma mulher adulta para conversar, à luz do dia, percebia uma expressão de inquietação, pois fatalmente a conversa seria motivo de circulação de comentários, de fofoca, como se fosse a indicação de um contato íntimo.” Nas igrejas evangélicas, “apesar da visão estereotipada de que as mulheres evangélicas são submissas”, ele pode se relacionar com elas, “pois o controle é mais suave", havendo inclusive estímulo para que se insiram socialmente, trabalhem com carteira assinada e invistam na própria formação", acrescentou.

Teologia da prosperidade

Ele ressaltou que o chamado neopentecostalismo, apesar de muito criticado em função da ênfase no repasse do dízimo pelos fiéis à igreja, não é uniforme em relação a isso. Se a Igreja Universal defende a teologia da prosperidade (financeira, familiar, de saúde etc.) e enfatiza a questão do dízimo, a Congregação Cristã do Brasil, com número similar de fiéis, “é mais cuidadosa em relação ao dízimo”, além de ser mais horizontalizada em sua estrutura, afirmou. “No entanto, ambas são conservadoras em relação a pautas como o aborto, drogas e homossexualismo.”

Ele destacou a diversidade das igrejas: “Se alguém não está contente com sua igreja, pode abrir outra do lado”. Comentou que dos 62 milhões de evangélicos do país, 15 milhões integram igrejas que a maioria das pessoas nunca ouviu falar e que possuem apenas de um a três templos.

Fotos (a partir do alto): Pixabay e arquivo pessoal de Juliano Spyer