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Censura econômica seleciona livros no século 21, segundo pesquisador

por Vinícius Sayão - publicado 21/08/2017 17:20 - última modificação 21/08/2017 17:22

Para Jean-Yves Mollier, a censura econômica se manifesta na medida que livros publicados por grandes editoras ou que têm autores renomados são mais divulgados e se tornam mais conhecidos e desejados que outros
Jean-Yves Mollier  e Marisa Midori Deaecto
Quem tem medo dos livros? foi apresentado pelo historiador Jean-Yves Mollier, com coordenação de Marisa Midori Deaecto

A censura, que através da história aconteceu por diversos motivos – político, religioso, moral –, atingiu no século 21 um aspecto econômico, afirmou Jean-Yves Mollier. Professor emérito da Universidade de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, França, ele apresentou a conferência Quem tem medo dos livros?, no último dia 18 de agosto, coordenada por Marisa Midori Deaecto, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e integrante do Programa Ano Sabático do IEA. O “medo” será o mote de diversos eventos feitos pelos institutos de estudos avançados integrantes da rede internacional Ubias (University-Based Institutes for Advanced Study), que o escolheu como tema do ano. A ideia é produzir discussão dos aspectos políticos, sociológicos, psicossociais, neurológicos, biológicos e culturais do medo.

Mollier dedicou a carreira à história do livro, da edição e das práticas de leitura na França, explicou que em um primeiro momento a censura econômica, no Brasil ou na França, podem parecer inexistentes, já que nesses países é possível publicar qualquer livro, desde que alguma editora aceite fazê-lo. Mas, segundo ele, a censura econômica se manifesta na medida que livros publicados por grandes editoras ou que têm autores renomados são mais divulgados e, claro, se tornam mais conhecidos e desejados que outros. O pesquisador exemplificou sua teoria utilizando a própria França, onde estima-se existir cerca de 700 mil títulos, quantidade que inviabiliza a exibição de todas as obras nas prateleiras, por falta de espaço.

Mas como as livrarias escolhem quais serão exibidos? Não é pela beleza e esteticidade da capa. E nem por escolha do livreiro, que não conseguiria ler 700 mil livros. O critério, segundo Mollier, é que elas vão seguir o conselho e a opinião de quem faz a divulgação, e quem possui a maior capacidade de divulgação são as grandes editoras. Somente os maiores grupos conseguem fazer chegar aos livreiros certos títulos. “São agentes econômicos em ação”, afirma.

Ele ressaltou que até a década de 90 as editoras conseguiam conciliar o aspecto econômico com o intelectual. Os editores publicavam os livros que seriam bem vendidos – que não necessariamente eram bons – e também os de maior qualidade literária: “De dez livros publicados pela editora, cinco trariam custos a ela, quatro serviriam para equilibrar as contas e haveria apenas um que seria um sucesso de vendas, que permitiria a editora publicar os outros nove e ainda obter lucro.”

Política e religião

Jean-Yves Mollier
Para Mollier, a censura recuou com programas de alfabetização, mas ainda ocorre em diversas partes do mundo

O pesquisador deixou claro que desde 1945 houve um recuo da censura, de um modo geral. Naquele ano, com grande incentivo da Unesco, todos os países fizeram um acordo para desenvolver programas de alfabetização. Hoje, não há mais nenhum país que a proíba. Apesar do recuo, a censura ainda existe. “Se olharmos de perto, todos os países concordam em alfabetizar os meninos, mas nem todos concordam em alfabetizar as meninas. No Afeganistão matam-se meninas que se atreverem, que tiverem a coragem de frequentar a escola”, exemplificou.

A charia, nome dado ao direito islâmico, ainda proíbe determinados livros. “Vejam o que acontece com escritores do mundo árabe: muitos são assassinados ou vítimas de atentados. Não é tão simples escrever de modo heterodoxo ainda hoje, em pleno século 21”, comentou o historiador. A Igreja Católica, ao contrário, aboliu sua lista de livros proibidos em 1966, quando o papa Paulo VI decidiu confiar na “consciência madura do cristão”.

Outro exemplo da existência da censura ainda nos dias atuais aconteceu com o Mein Kampf, livro escrito por Adolf Hitler, no qual ele propagava suas ideias racistas e antissemitas, e que se tornou domínio público em janeiro de 2016. No Brasil, onde a censura foi abolida na Constituição Federal de 1988, a primeira e única edição crítica comentada em português de Mein Kampf foi proibida por lei de ser comercializada e divulgada. Mollier diz ser a favor das reedições críticas do livro, já que hoje, com a internet, é impossível impedir a circulação desses escritos.

A censura na história

A censura apareceu em Roma durante o período da república, antes mesmo de Júlio César e do império. Ali surgiu o termo “censura”: os cidadãos romanos pagavam um imposto chamado Censo. “Este imposto variava não em função do ganho como no Imposto de Renda do Brasil ou da França, mas sim conforme a categoria a qual se pertence. Se a pessoa pertencesse à nobreza, pagaria mais imposto do que se pertencesse às camadas mais modestas da população”, explicou Mollier. Quem controlava tributo eram chamados de “censores”.

Depois, na Idade Média, a censura assumiu uma forma mais religiosa, sobretudo no momento da Reforma Protestante, quando a cristandade foi atingida pelo aparecimento de reformadores, como Lutero, na Alemanha, e João Calvino, na Suíça. Para lutar contra as reformas, a Igreja Católica criou, em 1559 uma lista de livros proibidos, o Index Librorum Prohibitorum, que era, como descreveu Mollier, “o braço armado da igreja”, tendo sido disseminado pelo mundo inteiro, ao menos onde a igreja católica estava presente. O Index passou por diversas atualizações até ser abolido no século 20, em 1966, pelo Papa Paulo VI, que decidiu “confiar na consciência madura” do cristão, dando a eles, finalmente, a liberdade de escolher o que ler.

Outra forma de censura foi a política. A França criou um registro oficial para coibir o protestantismo, principalmente o Calvinismo. Os censores eram funcionários públicos pagos para examinar manuscritos, em pleno século 18. “Às vésperas da Revolução Francesa, em 1789, havia cerca de 200 censores, mas a monarquia não conseguia controlar os manuscritos porque eram muitos”. Os censores eram letrados, jornalistas, professores, escritores, profissionais da literatura e diziam que sua intenção era possibilitar aos autores a correção de seus manuscritos, adequando-os à linha do partido, para evitar problemas com o poder. Esse registro oficial, que na época era um instrumento de repressão, deu origem à Biblioteca Nacional da França, um dos mais ricos acervos do mundo.

No século 20, na Alemanha de Adolf Hitler, obras de autores antinazistas eram queimados, como fazia a Igreja Católica na Idade Média. Além disso, a mesma Alemanha, quando invadiu a França, proibiu a tradução de Mein Kampf para o francês. “O motivo era que na propaganda nazista, Hitler afirmava que a França seria uma parceira e cooperaria com os alemães, mas no livro constava a real intenção de Hitler para os franceses: torná-los escravos”, explicou Mollier.

O historiador lembra que a censura também ocorreu em outras ditaduras espalhadas pelo mundo: “Na Espanha, no fim da guerra civil, em 1939, o ditador Francisco Franco também queimou livros na Universidade de Madri, sobretudo de filósofos. Brasil e Argentina também praticaram censura nos seus períodos de ditadura, assim como Pinochet no Chile, de 1973 a 1980. Ainda existia o medo dos livros”.

Fotos: Leonor Calasans / IEA-USP