Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Martí Peran: a conscientização sobre a fadiga como elemento emancipador

Martí Peran: a conscientização sobre a fadiga como elemento emancipador

por Mauro Bellesa - publicado 09/10/2014 18:05 - última modificação 03/02/2016 15:40

Crítico e curador espanhol apresentou suas reflexões sobre os imperativos culturais e artísticos da atualidade e sobre a fadiga contemporânea como elemento emancipador.
Martí Peran
O crítico e curador
espanhol Martí Peran

O crítico e curador de arte espanhol Martí Peran está refletindo há seis anos sobre o sentimento de fadiga que perpassa a vida contemporânea, mas seu projeto sobre o tema ainda está numa fase preliminar. Agora, porém, ele terá de articular de forma mais consistente as ideias e argumentos que lhe surgiram durante todo esse tempo, pois organizará uma exposição sobre a fadiga a ser inaugurada em maio de 2015, em Barcelona.

No dia 8 de setembro, Peran esteve no IEA a convite do Grupo de Pesquisa Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público e o Privado para falar sobre o projeto. O título de sua conferência foi "Como Converter a Fadiga numa Exposição de Arte?". A coordenação do encontro foi de Martin Grossmann, diretor do IEA e coordenador do grupo de pesquisa.

Antes de chegar à questão da importância da fadiga na atualidade, Peran traçou um quadro do que ele considera as carências da contemporaneidade, pois “umas das maneiras mais consensuais para definir a contemporaneidade consiste em reconhecer como contemporâneo aquilo que concentra sua atenção nas feridas do nosso tempo”.

Relacionado

DEMÔNIOS

Em conformidade com essa convicção, Peran entende que os assuntos dos quais devem se ocupar a cultura e a arte contemporâneas podem ser identificados, em termos gerais, com três aspectos, “três demônios de nosso tempo”. O primeiro deles é a dissociação da realidade, que "escapou de nossas mãos, foi deslocada em benefício do simulacro, foi camuflada embaixo da aparência de revolução tecnológica, que por certo é a única revolução acreditada, legitimada, com certificação de viabilidade; não simplesmente a tecnológica, mas sim a biotecnológica”.

Para combater esse "demônio", o imperativo que se impõe é tentar habilitar ferramentas para “voltarmos a estar num mundo real, encontrar o real mediante práticas documentais que permitam dirigir o foco para essas zonas de realidade habitualmente negligenciadas, construir dispositivos para que a realidade, que agora está silenciada diante da estridência do discurso midiático, do discurso político convencional, tome a palavra”.

O segundo “demônio” a ser enfrentado é a ausência de expectativas de futuro, sobretudo na Europa, enfatiza Peran. Para ele, vive-se numa ditadura do presente imposta por muitas linhas de força: "Nos comunicaram que as utopias fracassaram e não há modo de tentar outra; e se queremos pensar o futuro, Hollywood nos dá a chave: o futuro só pode ser pensado em termos apocalípticos, porque não há alternativa ao modelo; qualquer futurologia é distópica”.

A presentificação também está relacionada com o consumo, segundo Peran, pois “as próteses tecnológicas” precisam ser atualizadas constantemente, com "a lógica crédito-consumo-obsolescência programada nos condenando a um horizonte de atualização permanente de falsas necessidades”. Isso se reflete também na esfera emocional, "com relações flutuantes, mutantes e flexíveis”.

A exigência de flexibilidade para a busca de constante atualização e adaptação impede "o entendimento da vida como um projeto, algo que foi fundamental para a modernidade, quando era possível sonhar, ter expectativas, aspirar a pontos de chegada”. Dessa forma, o segundo imperativo que se impõe é o de “abrir brechas para sonhar o futuro”.

O terceiro “demônio” da atualidade elencado por Peran é a falta de crítica da vida cotidiana. “É na vida cotidiana que se produz a exploração e, portanto, para pensar modos de emancipação deve-se analisar criticamente onde ela se produz, insistindo-se nessa via aberta pelo marxismo dos anos 60”. De acordo com ele, é nessa análise da vida cotidiana que a fadiga pode ser constatada. "Evidentemente, o que me leva a defender uma reflexão sobre a fadiga é, em primeiro lugar e de um modo natural, sua evidência, sua materialidade: sinto-me cansado. Se examinada a partir dos prismas oferecidos pela análise da vida cotidiana, essa sensação de fadiga torna-se reveladora."

PONTO DE PARTIDA

Peran considera que se deva partir da distinção entre o modus operandi do capitalismo fordista e do capitalismo pós-fordista. "O primeiro gerava valor, mais valia, mediante a mercadoria, mediante a quantidade e qualidade do resultado da linha de montagem; o pós-fordista, por sua vez, é o processo que progressivamente situa a mais valia no valor imaterial, na produção de subjetividade, é um capitalismo que constrói a subjetividade induzida, um capitalismo de tendência, basicamente."

Todavia, o crítico afirma que muitas fontes permitem avaliar que o pós-fordismo foi superado pelo capitalismo “afterpop”, conceito que ele empresta da concepção de "cultura afterpop” do escritor espanhol Eloy Fernández Porta. "O capitalismo 'afterpop'  distingue-se por algo relativamente recente e com crescimento exponencial: a autoexploração, na qual o indivíduo é instado a assumir por si mesmo a produção de subjetividade."

Peran destaca que em países em crise, como sua Espanha natal, essa autoexploração está na ordem do dia, "traduzindo-se na apologia do empreendedorismo: 'Seja um empreendedor, construa-se a si mesmo, tome a iniciativa, invente algo, instale-se no mercado, busque o seu nicho. É sua a responsabilidade. Ponha-se a trabalhar, ponha a vida inteira a trabalhar'". Para ele, essa inquietação gera a mais valia, a exemplo do capital, que só "funciona na medida em que não se detém, para não haver colapso".

No seu entender, essa interpretação é sancionada pelos pensadores mais celebrados por suas análises sobre a contemporaneidade. Um deles é Giorgio Agamben, que usa a expressão “vida nua" para nomear a existência atual: "Ele trata do problema a partir de uma perspectiva política no sentido duro do termo: vivemos num permanente estado de exceção, que leva a uma suspensão crônica de direitos, e uma vida sem direitos é uma vida despojada, nua".

Peran considera mais próximo do seu argumento a expressão "corrosão do caráter", utilizada pelo filósofo Richard Sennett. "Evidentemente que essa fenomenologia do permanente estado de nervos e hiperatividade corrói o caráter. Estamos sempre na defensiva, ainda que falando de processos comunitários."

DESPERTAR

"De qualquer modo, como dizia Antonin Artaud, não há pior crime do que curar a doença", complementa Peran, para quem esse pesamento do poeta e dramaturgo francês guarda certa similitude com a reflexão do filósofo e sociólogo Theodor Adorno de que "se Deus existe, só pode ser um Deus que tenha como função não sarar as feridas, mas sim jogar-lhes sal, garantir que as feridas irão sempre receber suas doses de sal, pois na dor está a possibilidade do despertar da consciência".

O próximo passo na argumentação de Peran é refletir sobre a fadiga como possibilidade do despertar da consciência: "Repensar a fadiga não como aquilo que precisa ser reparado, mas sim, ao contrário, como algo a ser otimizado como possibilidade para o despertar da consciência: transformar a fadiga no que o escritor Peter Handke chamou de 'cansaço capaz'".

EXPOSIÇÃO

Como traduzir essas reflexões sobre a fadiga quando se apresenta a oportunidade de um projeto de exposição artística? E por que realizar essa exposição? À segunda pergunta Peran responde que organizar uma exposição é a possibilidade de amadurecer e formalizar seus pensamentos sobre o tema. Quanto à forma, ele vê três opções. A primeira delas é tentar dizer tudo isso por meio de obras,"algo como tentar ilustrar, no bom sentido do termo, essa reflexão; estou nessa fase, vendo e tropeçando nos inconvenientes".

Uma segunda ação possível, "tão comum como a primeira", é identificar a argumentação em termos artísticos e culturais com "a vasta tradição do artista sem obra, da apologia do branco, do silêncio, da desocupação, da inação, um relato absolutamente vasto e dilatado e relacionado com a modernidade, apelando para essa tradição e fazendo uma exposição do tipo 'preferia não fazê-lo'". No entanto, Peran não julga essa opção satisfatória, "por não fazer justiça aos argumentos e ao potencial político deles". A terceira opção é não fazer a exposição, isto é, uma exposição que consiste em deixar de fazê-la.

Entretanto, ressalva Peran, uma pesquisa elementar no Google permite saber que tudo isso já foi feito, desde a questão da hiperatividade até uma exposição que consiste em deixar de fazer uma exposição. "Ao final, impõe-se o pragmatismo e suponho que a exposição em maio de 2015 será um misto dessas três possíveis narrativas. Será preciso colocar na arena essas três linhas de fuga para ver que partitura elas engendram."

ILUSTRAÇÃO

Abrindo o debate que se seguiu à conferência, Martin Grossmann destacou que há os perigos do ato expositivo a serem considerados. Comentou que uma exposição de Jean Clair em Paris na década passada sobre a melancolia não o tocou em nada, “basicamente por um problema de que sofre a volição expositiva: a ilustração”. A exposição "ilustrava um conceito muito reducionista de melancolia e não levava o questionamento para a discussão da contemporaneidade, ficando apenas na narração histórica do conceito de melancolia, do espírito do tempo”. Além de fazer esse comentário, Grossmann perguntou a Peran por que ele não citou a performance como um dos tipos de trabalho a serem mostrados na exposição.

Peran respondeu que a exposição terá uma natureza performativa indiscutível, assegurada pela participação de um coletivo (Espacio en Blanco) capaz de transformar o evento num local de encontro, discussão e experimentação, pois seus integrantes não são artistas, mas ativistas políticos.

Quanto aos riscos do ato expositivo, Peran disse que, se encontra problemas para converter seus argumentos numa exposição, talvez isso aconteça não só pelas limitações do formato expositivo, mas igualmente pelo empobrecimento das próprias práticas artísticas, "incapazes de falar dos imperativos históricos com os quais deveriam estar comprometidas honestamente".

Em relação à esse compromissoo, ele mencionou um texto de Marina Garcés, da Universidad de Zaragoza, chamado “A Honestidade com o Real”,  no qual ela diz, segundo Peran, que "tratar honestamente o real não é falar sobre o real, não é documentar o real e nem mesmo o suposto ativismo que tenta transformar o real, mas sim sentir-se afetado pelo real até o ponto de poder transformar-se a si mesmo por essa afetação".

Para ele, arte é aquilo que faz o indivíduo repensar constantemente seus valores políticos, éticos e estéticos: "A arte é aquilo que sacode esses valores para que vocês os refunde, os repense a todo momento, para que seu sistema de valores políticos, éticos e estéticos não se acomode em nenhum lugar. Mas será que a arte contemporânea está cumprindo essa função?".

CONFLITOS

Sérgio Franco, doutorando em sociologia, perguntou a opinião de Peran sobre o ato "anti-institucional" do pichador brasileiro Cripta Djean, que jogou tinta em Artur Zmijewski, curador da Bienal de Berlim de 2012, quando este questionou a atitude de Djean e outros pichadores paulistas, que pintaram em local não autorizado da Igreja de Santa Elisabeth, um dos espaços da bienal.

O conferencista respondeu que todos os grandes eventos dos últimos anos têm apresentado conflitos, os quais são repetições com distintos perfis do mesmo conflito, que é o da credibilidade, "da eficácia ou não de converter o evento num espaço de reflexão política no qual as ideias sejam compartilhadas e se produza conhecimento, caso contrário, será apenas um acontecimento que desativa as iniciativas que convoca". O crítico considera que não se deve tencionar tanto os debates nessas direções, que "são becos sem saída".  Para ele, o importante é lembrar que "o capital da arte é sobretudo capital simbólico, inclusive sua força transformadora reside no seu capital simbólico, e é com esse que podemos lutar contra o capital real".

PRESENTE E FUTURO

Julia de Cayses, doutoranda em história e teoria da arte, questionou Peran sobre suas considerações a respeito do presente e do futuro. Para ela, o que foi cancelado foi o presente e não o futuro: "O futuro é uma ideia moderna e é apocalíptico. No entanto, o capital está todo o tempo no futuro, o capital está sempre gerando a mais valia que está no futuro, não no presente. O capital é infinito e os recursos são finitos e nossas horas no mundo são finitas, pois vamos morrer".

Peran contra-argumentou que, "evidentemente o futuro é uma ideia moderna, mas a modernidade era sobretudo uma promessa de futuro, ou seja, não é que o futuro seja estruturalmente moderno, mas sim que a modernidade era futurista, e isso superamos". A modernidade era futurista porque "prometia coisas, um melhor bem-estar material e pessoal, uma liberação do espírito (em termos hegelianos), uma revolução proletária (em termos marxistas)". Quanto à questão de o futuro não ter sido cancelado, por ser infinito como capital cumulativo, Peran concorda, mas adverte que o problema é que todo o espaço do futurável está ocupado por essa lógica da acumulação do capital, "ao mesmo tempo que a ensonhação [o sonhar desperto], uma pulsão vital, foi cancelada, pois somos obrigados a resolver a precariedade em tempo real".

Quanto ao presente, disse estar de acordo com a afirmação de Júlia: "Roubaram-nos o presente? Sim, claro. O fato é que temos tanto presente que ele se torna pobre, com uma pobreza de experiência absoluta, com tantas coisas nessa hiperatividade que ficamos com um excedente deficitário de presente. Tantas experiências e poucas efetivamente densas. Por isso um dos imperativos é reencontrar a realidade, a experiência real, e de forma honesta, ou seja, deixando que ela nos afete".

Foto: Sandra Codo/IEA-USP