Conhecimento em células-tronco pode gerar terapias e novos medicamentos
Considerada uma esperança para o tratamento e até mesmo a cura de doenças, a terapia com células-tronco segue como tema de muitos estudos entre grupos de pesquisa de todo o mundo. Um dos nomes de destaque na área, a docente do Instituto de Biociências da USP, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da USP e pesquisadora do Centro de Terapia Celular (CTC) da USP, Lygia da Veiga Pereira, esteve em Ribeirão Preto no dia 9 de agosto em evento promovido pelo Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da USP para falar sobre os desafios e os avanços nessas pesquisas.
Segundo Lygia, para ser considerada uma célula-tronco, a célula deve ter uma capacidade de auto-renovação ilimitada ou prolongada. “Ou seja, tem que conseguir se multiplicar em células idênticas a ela por um longo período de tempo. Além disso, deve também ser capaz de produzir um descendente altamente diferenciado. Ela recebe um estímulo externo e, de repente, se transforma em uma célula mais especializada”.
A docente explica que existem dois tipos de células-tronco. As adultas são derivadas do indivíduo após o nascimento e ficam localizadas na medula óssea, dentro dos grandes ossos. Mesmo o cordão umbilical de um recém-nascido possui essas células. Já as embrionárias estão presentes apenas em embriões com cinco dias. A grande diferença entre elas é que, ao contrário do que se pensava até há cerca de 20 anos, as células-tronco adultas não têm uma capacidade tão grande de se transformar em células especializadas quanto as embrionárias.
“A grande vocação dessas células embrionárias é se especializar. Esse estado pluripotente delas é muito efêmero, daqui a dois dias elas já vão ter se dividido. Ser pluripotente significa que você consegue se diferenciar em células do ectoderma, mesoderma e endoderma [partes do embrião que vão gerar diferentes órgãos do corpo]. As células-tronco adultas são multipotentes, elas conseguem gerar apenas músculo cardíaco e vaso sanguíneo”, diz.
No início dos anos 2000, resultados em pesquisas com modelos animais sugeriam que células-tronco adultas teriam uma maior versatilidade e conseguiriam produzir células do cérebro, fígado e músculo cardíaco. Por isso, houve um grande investimento do governo federal em laboratórios para produção de células destinadas à terapia celular, entre eles o Centro de Terapia Celular da USP Ribeirão Preto. Segundo Lygia, para produzir células-tronco que possam ser usadas em terapias com seres humanos, é preciso um controle de qualidade e boas práticas de manufatura muito específicos, daí a necessidade de uma estrutura apropriada.
Apesar dos investimentos, as pesquisas descobriram que a versatilidade das células-tronco da medula óssea não era tão grande quanto a das embrionárias. “Na verdade, alguns grupos mostraram que as células injetadas secretavam fatores que recrutavam células do próprio animal e produziam alguma regeneração. A única exceção foi o uso dessas células em doenças autoimunes, como o diabetes. A gente descobriu que há células da medula óssea que, embora não se transformem em células produtoras de insulina, têm a capacidade de suprimir o sistema imunológico, evitando que ele ataque o próprio corpo do paciente. Essas pesquisas foram feitas no CTC-USP pelo professor Júlio Voltarelli e estão em andamento”, conta a docente.
O foco das pesquisas, então, voltou-se para as células-tronco embrionárias. Segundo Lygia, elas necessitam de condições muito específicas para se multiplicar fora do corpo, em ambiente artificial. Para verificar se elas não perdem a capacidade de ser pluripotentes, realiza-se um ensaio injetando essas células em camundongos.
“Quando essas células estão no organismo, elas precisam receber vários estímulos diferentes. Se elas forem, de fato, versáteis e pluripotentes, respondem a esses estímulos e começam um processo caótico e desordenado de diferenciação, dando origem a um tumor chamado teratoma. Quando você faz a histologia desse tumor, encontra nele neurônios, pedaços de intestino, osso, músculo. E isso é a última coisa que eu quero que aconteça no meu paciente”, diz ela.
Por isso, um dos principais desafios para a realização de terapia com células-tronco embrionárias envolve a segurança do procedimento. “Se por um lado, ser pluripotente é uma vantagem, por outro, tenho que ter certeza que, entre a população de células produzidas a partir de células embrionárias, não sobraram algumas indecisas, não diferenciadas, que poderiam formar um tumor no paciente. Por isso, ensaios em seres humanos com células-tronco embrionárias demoraram muito mais tempo para serem feitos que os com células-tronco adultas”.
Um segundo desafio citado pela docente é a compatibilidade entre o paciente e as células utilizadas na terapia. De acordo com ela, existem duas linhas de estudo atuais nesse sentido: uma estratégia de encapsular as células-tronco, para que elas fiquem invisíveis ao sistema imunológico, evitando assim a rejeição, e outra estratégia que utiliza técnicas de clonagem para produzir células-tronco com o mesmo material genético do receptor.
Para Lygia, as pesquisas na área de células-tronco embrionárias vão trazer importantes conhecimentos básicos em biologia humana que poderão ser aplicados em terapias futuras não necessariamente envolvendo esse tipo de células. “Ao entender essa diferenciação, será possível descobrir moléculas que podem induzir uma regeneração do cérebro, por exemplo. Assim, se o paciente tiver um acidente vascular cerebral, não será preciso injetar células-tronco para recuperar o dano, mas apenas dar a ele um medicamento feito a partir dessas moléculas”, explica.
Biblioteca de células-tronco brasileira
Outra possibilidade de uso das células-tronco em pesquisas é na avaliação de toxidade de substâncias testadas pela indústria farmacêutica para a produção de medicamentos. Lygia explica que, embora sejam feitos diversos testes antes da liberação para venda, há uma resposta variável a esses medicamentos de acordo com a genética de cada indivíduo.
“A população brasileira tem uma genética peculiar. Somos uma mistura de africanos, europeus e índios. Mas a maioria dos medicamentos é testada em populações europeias e norte-americanas, e com base nesses resultados são comercializadas a populações com genética diferente. O ideal seria testar em uma população mais ampla, mas a indústria farmacêutica não tem recursos suficientes para isso. Substituir esses testes por ensaios em células de diferentes pessoas seria uma opção”.
Pensando nisso, o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias, do qual Lygia é chefe, criou uma biblioteca brasileira de células-tronco. Por meio de uma parceria com o projeto Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA Brasil), realizado por seis instituições de pesquisa brasileiras, entre elas a USP, foi possível coletar células-tronco de duas mil pessoas em diferentes regiões. “Assim, conseguiremos ter uma população de células-tronco que represente a genética do brasileiro”, explica.