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O jornalismo profissional em tempos de big techs e redes sociais

por Mauro Bellesa - publicado 15/10/2020 13:43 - última modificação 15/10/2020 13:43

Seminário "Imprensa, Tecnologia e o Futuro do Jornalismo", no dia 9 de outubro, inaugurou a Cátedra Oscar Sala, parceria do IEA com o NIC.br resultante de convênio entre a USP e o CGI.br.

Seminário 'Imprensa, Tecnologia e o Futuro do Jornalismo' - 9/10/2020
Os participantes do webinar: faixa no alto, a partir da esquerda: Demi Getschko, Carlos Eduardo Lins e Silva e Caio Túlio Costa; faixa central: Eugênio Bucci, Bianca Santana e Rodrigo Mesquita; faixa embaixo: Ana Estela de Sousa Pinto, Walter Bender e Guilherme Ary Plonski

Parece que as notícias sobre a morte do jornalismo profissional são manifestamente exageradas, poderia dizer alguém parafraseando o famoso comentário de Mark Twain quando soube de rumores sobre a própria morte.

O fato é que várias empresas e veículos jornalísticos já ficaram pelo caminho em consequência da perda de receitas de publicidade, leitores e até profissionais na competição com os serviços digitais de comunicação.

Mas muitos mantêm-se com certa dose de vigor e influentes, apostando em estratégias variadas para obter receita, desde a ampliação de assinaturas online até a comercialização de produtos associados a seu conteúdo. E há também inúmeros serviços jornalísticos já nascidos no mundo digital. Todos enfrentam, porém, uma nova realidade na disseminação de informações: aplicativos e redes sociais.

Se a imprensa foi uma das instituições mais pressionadas a se transformar pela internet, nada mais apropriado que seus desafios atuais fossem o tema de discussão inaugural, no dia 9 de outubro, da Cátedra Oscar Sala, parceria do IEA com o NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), executores de convênio firmado entre a USP e o CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil).

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(por Rodrigo Mesquita)

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O expositor do webinar Imprensa, Tecnologia e o Futuro do Jornalismo foi o jornalista Rodrigo Mesquita, acionista do Grupo Estado, onde desempenhou diversas funções na redação do "Jornal da Tarde", inclusive de editor-chefe, e dirigiu a Agência Estado, transformando-a num veículo de informações para várias áreas de negócios. Depois de deixar a agência, Mesquita atuou por mais de uma década na criação de sistemas de informação para setores empresariais, entidades e órgãos governamentais.

O encontro teve também uma exposição complementar do especialista em publicação digital e tecnologia de aprendizagem Walter Bender, ex-diretor executivo do MIT Media Lab (EUA), laboratório do qual Mesquita participou por 14 anos.

Os comentadores foram: o engenheiro Demi Getschko, integrante do CGI.br desde sua criação em 1995 e diretor-presidente do NIC.br; a professora e escritora Bianca Santana, integrante da Uneafro e do Instituto Peregum; o jornalista Caio Túlio Costa, primeiro diretor do portal Universo Online (UOL) e cofundador da Torabit, empresa de monitoramento digital; e a jornalista Ana Estela de Sousa Pinto, correspondente do jornal "Folha de S.Paulo" em Bruxelas (Bélgica), de onde cobre a União Europeia.

O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, consultor em Comunicação da Fapesp e professor do Insper, foi o moderador. A abertura foi feita pelo diretor do IEA, Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica (EP) e da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), ambas da USP, e pelo coordenador acadêmico da Cátedra Oscar Sala, o jornalista Eugênio Bucci, professor da  Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que também comentou as exposições.

Infraestrutura

Para Rodrigo Mesquita, a internet não é um meio, mas uma nova infraestrutura que afeta todos os processos sociais e cria outra realidade cognitiva. "Em relação à mídia, promoveu a junção da editoração, impressão, televisionamento, computação, radiodifusão e telecomunicações" e anulou a ideia de que "o meio é a mensagem" de Marshall McLuhan; "a narrativa é a mensagem", afirmou.

Ele considera que as big techs - gigantes das tecnologias digitais como Amazon, Alphabet (controladora do Google), Facebook, Apple e Microsoft - estão se tornando utilitários da democracia, concentrando o poder econômico, social e político, "e a imprensa parece ignorar isso".

Segundo Mesquita, 70% das pessoas que chegam às edições online dos jornais o fazem em função das discussões que participam ou acompanham nas redes sociais. E o WhatsApp detém o maior índice de leitura dos meios digitais. "A redes e aplicativos criam narrativas de enorme impacto."

"Nessa crise, vimos as redações diminuindo e a pauta reduzida a Brasília. A imprensa tem de reagir. Se não fizer isso, ninguém sabe o que vai ser", disse.

Curadoria

Ele defende que os jornais assumam um papel de curadoria sobre os assuntos em discussão nas redes sociais, criando páginas temáticas sobre as principais preocupações da sociedade, trazendo o público para discutir e os jornalistas analisando tudo.

"Devem ser usadas ferramentas para montar estruturas ligadas aos sistemas de edição e com isso gerar produtos, como relatórios temáticos, para grupos e entidades e insumos para as redações. Os jornais devem abraçar a tecnologia, entendê-la melhor, transformarem-se em parceiros de informação e divulgação de marcas, ONGs, grupos, empresas etc. e atuar nas redes."

Origens

Para Walter Bender, as fake news, fenômeno que corrompe o ambiente virtual de informação pública, possuem uma história longa: "Há 200 anos já tínhamos fake news nos Estados Unidos. Na disputa entre Thomas Jefferson e John Adams pela Presidência, numa campanha muito agressiva, os dois usaram a imprensa para publicar fakes news e atacar um ao outro."

A origem do futuro da imprensa e da notícia ela situa há 40 anos, época em que Nicolas Negroponte, fundador do MIT Media Lab, apresentou seu modelo de convergência de mídias. "As pessoas sentiam que havia um curso de colisão e isso se transformou no digital, mudando como nos informamos e criamos comunidades."

Bender elencou alguns dos principais avanços tecnológicos na edição e transmissão digital a partir do início dos anos 90, como agregadores de notícias, o surgimento do CSS (linguagem de folhas de estilos) e a transformação de vídeo em imagem estática.

Novas formas

Assim como Mesquita, que propõe a criação de páginas temáticas com informações coletadas nas redes sociais e analisadas por jornalistas, Bender propõe a elaboração de novas formas de contar uma história, para que o leitor possa entendê-la melhor e de maneira mais fácil. "Se estou lendo sobre o Brasil e moro em Boston, poderia fazer conexões entre o que sei sobre o Brasil e o que sei sobre Boston. Entendo as palavras, mas não sei bem o que significa em tamanho uma inundação no Brasil. Poderia ver isso representado num mapa de Boston."

Uma das coisas que faltam na mídia social é a noção de que há realmente um papel para o editor, da discussão entre ele e o autor do material a ser publicada, afirmou. "A relação entre quem escreve e o editor é essencial para o processo jornalístico. O que vai fazer a diferença é modelar esse processo e incluí-lo na mídia social. Falta esse componente para que passemos para uma mídia social que aponte para o futuro. É preciso olhar para o futuro e pensar nas ferramentas necessárias."

Excluídos

Para Bianca Santana, há um aspecto adicional a ser considerado quando se fala da sobrevivência do jornalismo: "De que notícias, público e jornalistas estamos falando? A imprensa negra praticamente desapareceu no meio do século 20. No jornalismo hegemônico, os negros não existem como jornalistas e leitores, mas sim como objeto de notícia, comumente nas páginas policiais. As pessoas negras não são reconhecidas como produtoras de conhecimento e o que produzem não é reconhecido como jornalismo de qualidade. O jornalismo tem feito isso ao longo de sua história no Brasil."

Com a internet e as redes sociais, as mulheres, negros e pessoas LGBT+ têm espaço para se colocar na esfera públicas, mas não são detêm as plataformas, não tomam decisões, não têm recursos, enfatizou. "As big techs, com seus algoritmos, reproduzem discriminação e desigualdades".

Demi Getschko reafirmou seu otimismo ao comentar que é preciso diferenciar o que a internet é como estrutura e o que são construções sobre a internet. "Houve uma entrada maciça de novos usuários na rede, o que é ótimo, mas isso não se deu impunemente. O processo nem sempre é civilizado e organizado. O efeito colateral foi a bagunça que temos hoje em dia."

Para ele, é preciso ter paciência e a desordem não sobrepuja os benefícios que a internet proporciona. "Ela vai melhorar as coisas e o ser humano".  Getschko vê a internet como um espelho da sociedade. "Se quebramos o espelho, não vemos mais nada. O que precisa ser destruído são as bolhar e trazer todo mundo para a discussão."

Regulação

Ana Estela de Sousa Pinto afirmou que a Europa parou de discutir se as big techs são plataformas e passou a entendê-las como uma infraestrutura de comunicação." Segundo ela, essas corporações impõem riscos à democracia e por isso é preciso ocupar os fluxos de informação civilizatórios. "Na base dessa questão está a sobrevivência das atividades jornalísticas".

"O ambiente onde essa infraestrutura opera é o da comunicação pública e não no espaço privado, por isso tem de ser regulado."

Países europeus, como França, Espanha e Alemanha, estão enfrentando o problema na prática, aprovando leis que estabelecem uma remuneração permanente e sustentável a ser paga pelas big techs pelo uso de notícias produzidas pelas empresas jornalísticas, comentou.

"A Europa costuma estabelecer paradigmas mais rígidos e com influência mundial. O poder de consumo europeu é tão elevado que as empresas costumam adotá-lo para o resto do mundo."

Caio Túlio Costa mostrou-se cético quanto à remuneração de empresas jornalísticas pelo conteúdo reproduzido pelas big tech: "O Google e o Facebook ficam com mais de 60% das receitas publicitárias, mas a proposta do Google, por exemplo, é distribuir 1 bilhão de dólares entre os jornais mundo afora que aderirem ao programa, isso é apenas 0,06% de sua receita."

Modelo de negócio

Para ele, o futuro do jornalismo tem de ser embasado num modelo de negócio sustentável e que abrace a tecnologia e as redes sociais. "Mas tudo leva a crer que o jornalismo ainda é dominado por cabeças analógicas. Esso é o grande problema. Há uma disputa geracional em curso. Essa indústria está esperando que nativos digitais assumam a liderança."

"A indústria de comunicação tradicional precisa se reinventar. Não adianta transpor o modelo antigo para o digital. A cadeia de valor é outra. Cada um fica com uma parte do dinheiro e as plataformas ficam com quase tudo. Não deve haver medo em matar uma empresa antiga e começar tudo de novo. É preciso ampliar o leque de serviços proporcionado. Ter serviços com valor adicionado, não apenas receita publicitária."

Foto: Mauro Bellesa/IEA-USP