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As artes visuais no Brasil dos anos 70 e 80

por Mauro Bellesa - publicado 23/11/2017 10:55 - última modificação 20/08/2018 11:25

Frederico Morais e Marcus Lontra foram os expositores do encontro "Exposições 4: 'Do Corpo à Terra', 'Domingos de Criação' e 'Como Vai Você Geração 80?'", realizado no dia 14 de novembro, no IEA
Marcus Lontra e Frederico Morais - 14/11/2017
O críticos e curadores Marcus Lontra (esq.) e Frederico Morais no encontro de 14 de novembro

Três exposições dos anos 70 e 80 tiveram significado especial tanto para a produção artística no Brasil quanto para as relações das artes visuais com o contexto da fase mais dura da ditadura militar, os chamados Anos de Terror, e o período de abertura política.

"Domingos de Criação", de 1970, e "Do Corpo à Terra", de 1971, foram organizadas pelo crítico de arte e curador Frederico Morais. "Como Vai Você, Geração 80?", de 1984, teve o também crítico de arte e curador Marcus Lontra como responsável.

Os dois estiveram no IEA no dia 14 de novembro para falar desses exposições no ciclo “Cultura, Institucionalidade e Gestão", realização da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, parceria do IEA com o Itaú Cultural. O encontro Exposições 4: "Domingos de Criação", "Do Corpo à Terra" e " "Como Vai Você, Geração 80?" teve coordenação de Ricardo Ohtake, titular da cátedra e diretor do Instituto Tomie Ohtake.

Na apresentação dos expositores, Ohtake ressaltou que Morais é o decano dos críticos de arte no Brasil e integrante da geração que "deu as diretrizes para a mudança da arte moderna para a arte contemporânea no país, além de ser o grande mestre da geração seguinte de críticos". Sobre Lontra, comentou que ele faz parte da geração de críticos formada por Morais e responsável por exposições no Brasil e no Exterior "desde o tempo em que não se usava o termo curador, mas apenas organizador".

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Curadoria

Antes de falar sobre das exposições de 70 e 71, Morais tratou da atividade curatorial. Para ele, há uma banalização do termo curadoria. "Antigamente, o curador era quem cuidava da programação de um museu, quase no nível de direção. Falávamos: 'Eu realizei', 'Eu organizei'. Hoje há curadoria de comida, de vinho e, de qualquer coisa."

A banalização e improvisação, "por pessoas não habilitadas", servem mais como estímulo ao mercado do que à produção artística, em sua opinião

Para Morais, a curadoria deve ser vista como uma extensão da crítica de arte: "O curador tem que conhecer história da arte, ser um crítico da arte. Colocar as obras num espaço é como colocar as palavras numa crítica".

A crítica de arte assim se torna "um processo criativo, com o autor indo além do texto, do conhecimento teórico". Ele vê uma relação amorosa, de sedução entre a obra e o crítico, não uma questão apenas de julgamento. "Uma exposição deve ter essa capacidade de sedução."

Participação do público

O curador também deve compreender bem o espaço com que está lidando: "Cada espaço tem uma relação com sua localização e entorno. No caso do MAM [Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro], há muito espaço fora. Está localizado num extremo do Aterro do Flamengo, próximo ao aeroporto. Costumo dizer que o aterro é uma extensão do museu. Na época dos 'Domingos de Criação', as pessoas vinham ao museu por diversos interesses, não apenas para visitar uma exposição."

"Domingos de Criação", MAM-RJ, 1971
"Domingo do Tecido", um dos seis "Domingos de Criação", realizados na área externa do MAM-RJ em 1970

Para o projeto, Morais aproveitou essa vocação do museu para receber pessoas interessadas em seus vários espaços. "Hoje se faz uma leitura muito política daqueles domingos, mas eles nasceram do setor educativo do museu."

O projeto durou seis domingos, sempre o último de cada mês. Cada um ligado a um material e um nome específico: O Domingo por um Fio, O Domingo de Papel, O Tecido do Domingo, Domingo Terra à Terra, O Som do Domingo e O Corpo a Corpo do Domingo. "Os títulos eram uma tentativa de compreender o que era domingo, sua diferença em relação aos dias úteis e como o próprio lazer se tornara algo burocrático."

As atividades foram programadas no espaço externo do museu e o mote era que "todas as pessoas são criativas em algum grau, mas não exercem sua criatividade por estarem impedidas de alguma forma". Para Morais, todos são capazes de produzir obras de arte, mas nem todos viram artistas, "assim como muitos artistas não são tão criativos, mas burocratas que reproduzem o que aprenderam na escola".

O material foi utilizado (tecidos, aparas e restos de bobinas de papel, latas, fios, cordas etc.) foi conseguido em indústrias, jornais e outras empresas. As atividades começavam entre 9 e 10h e prosseguiam ao longo de todo o dia, com a participação de crianças e seus pais. "Os pais começavam ensinando e com o tempo estavam copiando os filhos."

Morais anunciou que em breve será publicado um livro sobre o projeto, com as 150 primeiras páginas com fotografias e 150 páginas restantes com textos.

Manifestação política

O projeto "Do Corpo à Terra" realizado por Morais no ano seguinte, também tinha a proposta de ser algo fora do museu. "Em 70, foi convidado a organizar uma exposição de esculturas no Palácio das Artes no Parque Municipal de Belo Horizonte. Já se discutia muito a questão do objeto. Hélio Oiticica falava muito disso e o Salão de Brasília abrira espaço para o objeto, uma não categoria pois não é escultura, pintura ou coisa do tipo. Em paralelo à exposição de esculturas, resolvi que deveria fazer algo com objetos no parque. As duas atividades constituíram o projeto".

Obra de Cildo Meireles em "Do Corpo à Terra", Belo Horizonte, 1970
"Tiradentes - Tóten-Monumento ao Preso Político", de Cildo Meireles, elaborado na exposição "Do Corpo à Terra", no Parque Municipal de Belo Horizonte, em 1971

Apesar da ditadura e do AI-5, Morais conseguiu o apoio da Hidrominas, uma empresa mista do governo mineiro ligada à promoção do turismo. Cada artista recebeu uma carta autorizando realizar uma obra de arte no parque, passagem de trem e hospedagem num hotel simples. "A atividade no parque foi considerada a primeira exposição 'site specific'. Nenhum trabalho foi levado pronto. Depois da exposição, as obras ficaram lá até se deteriorarem. Não houve vernissage nem catálogo, apenas um texto mimeografado."

Em sua opinião, "Do Corpo à Terra" foi muito mais político do que "Domingos de Criação". Ele citou algumas obras críticas da situação do país na época, entra as quais "Trouxas Ensanguentadas", de Artur Barrio, e "Tiradentes - Tóten-Monumento ao Preso Político", de Cildo Meireles. "Barrio lançou as trouxas no córrego do parque, as pessoas viam e achavam que tinha havido algum crime ou que seria feito algum filme; chamaram até os bombeiros. No Dia de Tiradentes, Meireles amarrou dez galinhas vivas ao tóten-monumento e colocou fogo nelas [uma homenagem aos mortos pela ditadura]."

Abertura

Na segunda metade dos anos 70, o país começa a experimentar um quadro de abertura política. Isso repercutiu na percepção e interesse dos novos artistas, segundo Lontra. "É o momento em que se busca a experimentação nos ateliês, no MAM, no Parque Lage e outros lugares. Em São Paulo, a USP estava mais democrática, não careta como a UFRJ. A ideia era criar coisas de outro jeito."

"Como Vai Você, Geração 80?", Rio de Janeiro, 1984
"Como Vai Você, Geração 80?", Parque Lage, Rio de Janeiro, 1984

Em São Paulo, o interesse era pela pintura e outras técnicas tradicionais, explicou. No Rio, Thomas Cohn criou uma galeria "de nível muito bom e começou a buscar um tipo de arte diferente, em confronto com o grupo mais conceitual". Uma figura de destaque da galeria foi Leonilson (1957-1993).

"A gente só faz arte quando quer mudar alguma coisa. Eu senti isso quando vi a exposição do Leonilson, em 81, na galeria do Thomas Cohn. Ficamos amigos. Percebi que havia um clima diferente dessa geração que não levou porrada. Ela começou a crescer e perceber que podia trabalhar com uma política pessoal, do corpo. Nossa geração tinha a capacidade de ser afetiva, com uma política não partidária, voltada às questões de gênero, das minorias."

Ao viajar pelo país como representante do Salão Nacional, Lontra começou a perceber que havia muitas coisas desse tipo pelo Brasil, ainda que em menor escala do que acontecia no Rio de Janeiro e em São Paulo.

O nome da exposição surgiu da proposta de reunir esses novos artistas e também numa analogia com as séries de computadores, afirmou.

Na concepção de Lontra, a "Geração 80" devia ser um evento para saudar a diversidade artística brasileira. "O que é bom no país é sua complexidade, não reduzir, não determinar leituras autoritárias. Os trabalhos da época criaram uma reviravolta na arte brasileira, mudaram os conceitos da crítica e da curadoria. Queríamos sair da discussão hermética, queríamos uma discussão no contexto cultural do país à época."

Fotos (a partir do alto): Leonor Calasans/IEA-USP; Raul B. Pedreira Filho/Arquivo de Frederico de Morais; Luiz Alphonsus Guimarães/Acervo de Cildo Meireles; Escola de Artes Visuais do Parque Lage