Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Um projeto para ampliar o entendimento sobre os distúrbios do desenvolvimento sexual

Um projeto para ampliar o entendimento sobre os distúrbios do desenvolvimento sexual

por Mauro Bellesa - publicado 25/04/2017 14:55 - última modificação 28/04/2017 14:46

A pediatra e endocrinologista Berenice Bilharinho de Mendonça, da Faculdade de Medicina da USP, integra o grupo de professores em período sabático no IEA em 2017. Seu projeto é dedicado ao esclarecimento de profissionais da saúde e do público em geral sobre os distúrbios do desenvolvimento sexual (DDS).
Berenice Bilharinho de Mendonça
Berenice Bilharinho de Mendonça

A malformação genital é uma condição congênita que atinge 1 em cada 2.500 indivíduos, de acordo com as estimativas. Atualmente, é chamada de distúrbio do desenvolvimento sexual (DDS). Os distúrbios dessa natureza devem-se a composições cromossômicas diferentes das que determinam os sexos feminino e masculino, a alterações ou inexistência das gônadas (ovários e testículos) e à alteração na produção ou ação dos hormônios masculinos.  Essas  manifestações podem ocorrer isoladas ou associadas a outras doenças congênitas.

A falta de informação sobre os DDS e seu tratamento adequado são fontes de estigmatização social e sofrimento dos pacientes, que na verdade podem ter uma qualidade de vida normal se tiverem a devida assistência e acompanhamento.

Segundo a endocrinologista Berenice Bilharinho de Mendonça, professora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) em ano sabático no IEA, a falta de informação adequada sobre os DDS não é exclusiva do público, atingindo também parte considerável dos profissionais de saúde, o que prejudica o diagnóstico e a investigação das causas da doença, fatores essenciais para o tratamento dos pacientes.

No ano sabático no Instituto, iniciado em março, Berenice se dedicará ao projeto "Desenvolvimento e Divulgação de Material Educacional para aprimoramento do Diagnóstico e Tratamento dos Distúrbios do Desenvolvimento Sexual no Brasil".

Ela se dedica ao estudo dos DDS e ao acompanhamento de pessoas afetadas por eles há 40 anos, período em que a própria denominação popular de seus portadores, especialmente no caso de genitália atípica, passou de termos inadequados e estigmatizantes, como "hermafrodita", à imprecisão da denominação "intersexual", comum há alguns anos. Ela disse que os próprios pacientes rejeitam esses termos e por isso adotou-se a denominação distúrbio do desenvolvimento sexual no chamado Consenso de Chicago, elaborado a partir de congresso médico realizado naquela cidade americana em 2006.

A pesquisadora defende que a criança comece a ser tratada o quanto antes possível, inclusive com cirurgias plásticas reparadoras precisas, quando for o caso, para a definição de seu sexo social. "Isso independe da futura identificação de gênero ou preferência sexual e é fundamental para a criança não se sentir descriminada e estigmatizada."

"Certos setores, como grupos de portadores de DDS, tratam a questão como se houvesse algo como um 'terceiro sexo', quando na verdade as alterações são fruto de uma doença. Admite-se com naturalidade que uma criança possa nascer com malformação do coração a ser corrigida, mas não se consegue ver que o mesmo pode ocorrer com a genitália e que sua alteração não corresponde à uma variação natural'.

Berenice questiona os grupos defensores de que o portador de genitália atípica optem quando adultos pelo determinação do sexo social que desejarem via cirurgia: "Esses grupos geralmente são constituídos por pessoas traumatizadas por cirurgias malfeitas na infância."

Risco de vida

O diagnóstico precoce torna-se um caso de vida ou morte no caso de bebês com DDS associado a uma deficiência congênita de hormônios essenciais a vida produzidos pelas glândulas suprarrenais, a hiperplasia suprarrenal congênita (HSRC), na manifestação da doença em que há perda de sal (60% dos casos).

Na HSRC há produção de hormônio masculino nas meninas, o que ocasiona a virilização da genitália externa. "Mesmo em centros importantes como a cidade de São Paulo, por desconhecimento das equipes médicas, é atribuído o sexo masculino a 55% das meninas com genitália virilizada por causa da HSRC." Mas são os meninos que têm maior risco de vida, pois a HSRC não altera sua genitália e, portanto, não é aventada a hipótese de que sejam portadores da hiperplasia.

Durante sua estada no IEA, Berenice desenvolverá ações para agilização do diagnóstico desse tipo de HSRC, cuja incidência é de 1 em cada 10 mil nascimentos. Como os episódios de perda de sal acontecem nos primeiros 15 dias de vida do bebê, é fundamental que ao ser identificada a possibilidade da doença no teste do pezinho (feito logo após o nascimento) sejam realizados exames bioquímicos confirmatórios em centro especializado. "Só assim será possível começar imediatamente o tratamento com medicamentos para assegurar a sobrevivência da criança, que deverá tomá-los durante toda a vida."

Há DDS que não são evidentes quando do nascimento nem ao longo da primeira infância, de acordo com Berenice. Pode acontecer que na puberdade uma menina não comece a menstruar e acabe sendo identificado que ela não possui ovários, mas testículos disfuncionais internos. "É um caso em que em vez de ter cromossomos sexuais XX, a menina tem cromossomos sexuais XY, definidores do sexo masculino. Essas diferenças cromossômicas acontecem em 2 de cada 50 mil indivíduos em média, ou seja, de cada 25 mil mulheres, uma terá cromossomos sexuais XY em vez de cromossomos sexuais XX,  o mesmo acontecendo em cada 25 mil homens, quando um terá cromossomos sexuais XX e não XY."

Essa alteração cromossômica foi o que aconteceu com a top model belga Hanna Gaby Odiele, que já desfilou para várias grifes de alta costura (atualmente é a "face" da francesa Balanciaga). Ela possui cromossomos XY associados com a síndrome de insensibilidade completa aos andrógenos, decorrente de uma mutuação no gene que codifica o receptor androgênico localizado no cromossomo X. Aos 10 anos ela teve os testículos internos removidos e aos 18 anos passou por cirurgia para a adequação do tamanho da vagina.

Divulgação

O objetivo do projeto de Berenice no IEA é desenvolver e divulgar protocolos de atendimento para os profissionais da saúde e material didático esclarecedor sobre o diagnóstico clínico, laboratorial e molecular para pais, familiares e professores de crianças com DDS. A intenção é colaborar com o diagnóstico e tratamento adequado dessas crianças no Brasil.

A primeira atividade de Berenice será o desenvolvimento de uma proposta de registro nacional de pacientes com genitália atípica. Eles seriam registrados após seu consentimento e/ou dos pais, sendo assegurado o sigilo absoluto da identidade. Outra preocupação é divulgar o uso do cartão de emergência médica para alertar sobre o risco de crises de perda de sal em pacientes com HSRC com essa implicação.

Ela também disponibilizará estudos para a definição das causas moleculares do DDS no laboratório multiusuário de Sequenciamento em Larga Escala (Sela) da FMUSP. Isso será feito quando o estudo molecular for importante para atribuir o sexo social do paciente.

Um dos livros a serem produzidos será elaborado na forma de perguntas e respostas e voltado à orientação de familiares de crianças com genitália atípica. O outro livro será sobre educação sexual de crianças e adolescentes com DDS.

Em paralelo a tudo isso, ela continuará a prestar consultoria online a médicos que atendam crianças com genitália atípica em todo o país. Isso será feito via site da Disciplina de Endocrinologia e Metabologia da FMUSP (www.endocrinologiausp.com.br) e por meios de outros recursos da internet, como o YouTube e o Skype, este no caso de ser preciso avaliar as características observáveis da criança.

Além disso, desenvolverá material didático a ser disponibilizado online e dará aulas presenciais a profissionais da saúde (enfermeiros, assistentes sociais, médicos e biologistas) em centros universitários de outros estados. Nessas aulas, divulgará protocolos clínicos para atendimento de crianças com genitália atípica e informará pais e familiares dessas crianças sobre a questão.

No campo terapêutico, Berenice pretende fazer esforços para que a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo desenvolva ações para disponibilizar as medicações hidrocortisona e fludrocortisona para o tratamento da HSRC perdedora de sal no Brasil.

Ela disse que o atendimento dessa demanda se enquadra nos princípios da Lei nº 12.401 de 2011, que trata da assistência terapêutica e da incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). "O importante é que esses medicamentos estejam disponíveis, seja por meio de produção de laboratórios públicos, seja pela compra de fornecedores privados nacionais ou estrangeiros."

Berenice quer atuar também na Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e na Secretaria da Saúde do Estado de Paulo para a redução do tempo de convocação das crianças rastreadas para HSRC por meio do teste do pezinho, para que seja reduzido o número de desidratações e internações das crianças afetas. Segundo ela, atualmente 65% das crianças submetidas a exames confirmatórios no Hospital das Clínicas da FMUSP apresentam desidratação. “Isso indica que o rastreamento neonatal ainda não evita que a criança chegue a esse estado, devido à demora no seu encaminhamento para exames específicos."

Ao final do projeto, Berenice escreverá artigo científico em que relatará os resultados das ações realizadas durante o ano sabático no IEA.

Foto: Leonor Calasans/IEA-USP