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O regime democrático sob o enfoque das relações de gênero

por Flávia Dourado - publicado 07/03/2014 11:20 - última modificação 27/10/2015 09:41

As causas e possíveis soluções para o déficit de participação das mulheres na política foram debatidas no seminário Gênero, Poder e Democracia, que o IEA realizou no dia 25 de fevereiro.
Mino  Vianello
Mino Vianello: "A democracia trata como se fosse um acidente histórico as mulheres serem excluídas do poder"
Teresa Sacchet
Teresa Sacchet: "Acredito na estratégia de ganhar espaço na estrutura política e construir uma sociedade mais igualitária e generosa"

Não importa as diferenças de cultura, religião, regime político, nível de desenvolvimento e modelo econômico dos países, as mulheres estão sempre em posições inferiores na hierarquia de poder, o que resulta num déficit de participação feminina na política. Esse é o ponto de partida do sociólogo italiano Mino Vianello para desenvolver sua teoria sobre o papel determinante das relações de gênero nas estruturas hierárquicas e na qualidade da democracia.

Professor emérito de sociologia econômica da Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, Itália, Vianello dedica-se há mais de 40 anos ao estudo da atuação das mulheres na vida pública. Suas ideias, baseadas no pressuposto da existência de uma cultura masculina dominante e opressora, foram apresentadas no seminário Gênero, Poder e Democracia, realizado no dia 25 de fevereiro pelo Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia do IEA.

A debatedora do encontro foi a cientista política Teresa Sacchet, assessora do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e integrante do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas (NUPPs) da USP. A mediação ficou a cargo de José Álvaro Moisés, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, diretor científico do NUPPs e coordenador do Grupo de Pesquisa.

GÊNERO E PSIQUE

Na introdução de sua fala, Vianello destacou que, após muitos anos estudando as relações de gênero e poder a partir de teorias e métodos clássicos da ciência social, resolveu incluir em suas investigações escolas teóricas que geralmente são deixadas de lado nesse tipo de pesquisa, como a psicanálise e a neurociência. É com base nesse arcabouço que ele explica a baixa penetração das mulheres nas esferas do poder.

O argumento central do sociólogo consiste em que a psique masculina e a feminina são divergentes e, de certa forma, opostas. A masculina, dominante na cultura, seria marcada pela mentalidade psicotécnica, na qual predomina o pensamento concreto, pragmático e racional. Já a feminina seria caraterizada pela tendência à solidariedade, pela capacidade de abstração e pela empatia.

"Estamos todos dominados pela concepção platônica de razão instrumental, associada à psique dos homens. A própria democracia liberal é vista como uma forma de racionalidade", explicou, acrescentando que a estrutura do poder, de matriz marcadamente masculina, impõe uma barreira cultural para a ascensão das mulheres.

DEMOCRACIA LIMITADA

De acordo com Vianello, o déficit de participação das mulheres na vida pública, decorrente dessa barreira, coloca em evidência uma grave falha do regime democrático, uma vez que este pressupõe a igualdade de direitos e oportunidades.

"A democracia trata como se fosse um acidente histórico as mulheres serem excluídas do poder. Esse enfoque é o objeto da minha crítica", disse, ressaltando que, ao longo da trajetória da humanidade, o poder tem sido monopólio dos homens, condição que se manteria graças a uma sustentação ideológica duradoura, disseminada pelas mais diversas filosofias: a sobreposição da cultura masculina sobre todos valores da sociedade.

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O sociólogo advertiu que o monopólio dos homens é exercido mesmo quando as mulheres chegam aos patamares mais altos da hierarquia, uma vez que elas seriam escolhidas através de um sistema controlado pelos homens e atuariam dentro dos parâmetros determinados por eles. Dessa forma, só seriam alçadas as mulheres que incorporassem a cultura masculina e que se dispusessem a serem incorporadas na estrutura política convencional. Por isso, garantiu, ter muitas mulheres no poder não quer dizer nada: "Elas são escolhidas por homens, segundo a lógica masculina, de modo que o poder permanece nas mãos dos homens e continua a ser exercido com base numa concepção instrumental".

TRANSFORMAÇÃO

Após esboçar o panorama de uma estrutura de poder intrinsecamente patriarcal e permeável somente a mulheres alinhadas à cultura masculina, Vianello questionou: "Como mudar a condição de supremacia da cultura masculina, quando se sabe que todas as esferas são dominadas pelos homens — religião, filosofia, política, arte, ciência?".

De acordo com ele, para serem efetivas e terem impacto, as mudanças devem ser promovidas a partir das bases, por meio da construção de espaços alternativos na sociedade civil, o que seria possível com o auxílio das redes de comunicação viabilizadas pela Internet.

"Somente com mudanças dessa natureza poderemos passar de uma sociedade patriarcal para uma sociedade empática, preocupada com a qualidade de vida e com o estado de bem-estar social", afirmou. Para o sociólogo, isso pressupõe a prevalência da psique feminina e, por conseguinte, a formação de uma mentalidade mais tolerante e aberta às diferenças sociais e religiosas. "A participação das mulheres pode mudar o mundo", avaliou.

DIVERGÊNCIAS

Ao debater as ideias de Vianello, Sacchet concordou com muitos dos argumentos apresentados pelo sociólogo. Para ela, a sociedade, o estado moderno e as leis de fato foram construídos e funcionam segundo a lógica masculina.

Mas a cientista política destacou que discorda de Vianello no que se refere à solução proposta por ele: uma ação política independente por parte das comunidades de mulheres, voltadas para a criação de uma cultura mais feminina — logo, mais inclusiva —, capaz de fazer frente ao domínio dos homens.

A debatedora se opôs especificamente ao que definiu como uma valorização excessiva do "poder determinista da estrutura" por parte de Vianello. Para ele — esclareceu Sacchet — a via alternativa seria a única estratégia eficaz porque apenas mulheres cooptadas pelo machismo conseguiram ascender ao poder e entrar na política pelos meios convencionais.

Diferentemente de Vianello, Sacchet considera que as estruturas tradicionais da política são permeáveis às mulheres e podem ser transformadas desde dentro. Como exemplo, citou a Lei Maria da Penha e o Bolsa Família, cujo valor é pago diretamente às mães. "Várias políticas públicas em favor das mulheres foram criadas a partir da ação feminina dentro das estruturas de poder que existem hoje. Eu, como membro do MDS, atuante no campo das políticas de gênero, vejo como fundamental a participação das mulheres na esfera pública", ressaltou.

Para reforçar sua posição contrária ao "determinismo da estrutura", disse não acreditar que a cultura seja monolítica e que as estruturas de poder, rígidas a ponto de serem refratárias à atuação feminina. "Existem contraculturas. Ainda que haja uma cultura patriarcal dominante, como Vianello coloca, as mulheres podem implementar mudanças através da ação social e da mobilização na sociedade civil", frisou.

ESPAÇOS ALTERNATIVOS

Embora tenha reconhecido a importância das comunidades de mulheres como espaços de participação, Sacchet relativizou o potencial de transformação social das ações alternativas, sobretudo daquelas que fazem uso da Internet. "Entendo a premissa da globalização e da liberdade de expressão, mas o próprio acesso à rede é limitado. E até que ponto o que é dito nas redes é usado na construção de uma cultura da empatia, como fala Vianello?", questionou.

A cientista política se definiu como uma cética em relação à eficácia de se viabilizar uma transformação social profunda apenas via espaços alternativos. "Acredito na estratégia de ganhar espaço na estrutura política e construir uma sociedade mais igualitária e generosa em termos de raça, gênero e classe desde dentro da sociedade civil", pontuou.

DIFERENÇAS DE GÊNERO

Ao concluir sua crítica ao pensamento de Vianello, Sacchet disse que vê com ressalvas a estratégia de enfrentar a dominação da cultura masculina trazendo à tona as diferenças de gênero. "Fico com as feministas pós-estruturalistas, segundo as quais centrar o debate nas diferenças inerentes entre homens e mulheres contribui para cristalização dessas diferenças e para a criação de modelos que mais atrapalham que viabilizam mudanças".

Para ela, o problema não deve ser discutido com base na existência de um ethos feminino, envolto na ideia de que as mulheres são mais solidárias, empáticas e emotivas. "Esse mesmo discurso foi utilizado para justificar a inaptidão das mulheres para atuar na esfera pública", advertiu.

Além disso, afirmou, a questão das diferenças de gênero é influenciada por outros fatores, como classe, raça e deficiência. "Nesta questão, importa não só as diferenças entre homens e mulheres, mas também as diferenças entre as próprias mulheres", finalizou.

 

Fotos: Sandra Codo/IEA-USP