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Desconstrução dos direitos humanos no Brasil e as perspectivas para o próximo governo federal

por Beatriz Herminio - publicado 04/07/2022 17:30 - última modificação 04/07/2022 17:29

O evento "A Importância da Reconstrução das Políticas de Direitos Humanos no Brasil" refletiu sobre o desmonte de tais políticas no país

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips no Amazonas correu o mundo no mês de junho. No Mato Grosso do Sul, a notícia foi da morte de um indígena Guarani Kaiowá durante operação policial. Em Sergipe, um homem morreu em "câmara de gás" montada no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Esses são apenas alguns dos diversos exemplos de vítimas de crimes que ameaçam a democracia e os direitos humanos no Brasil diariamente.

No evento "A Importância da Reconstrução das Políticas de Direitos Humanos no Brasil", realizado no dia 30 de junho, os conferencistas debateram o futuro da temática a partir da próxima eleição presidencial. Para Eleonora Menicucci, ministra-chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres de 2012 a 2016, defender direitos humanos é uma das maiores resistências desse momento no país.

O tema contextualizou a apresentação dos cadernos Cedec 133 e 134, que reúnem textos de ciclo de eventos realizado em 2021 pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH-IEA). Os expositores também homenagearam o embaixador José Augusto Lindgren Alves e o jurista Antônio Augusto Cançado Trindade, que morreram em 2022.

(Re)construção dos direitos humanos no Brasil

Paulo Vannuchi - 30/06/2022
Paulo Vannuchi diz que processo de reconstrução não será rápido
"A reconstrução não é mais um desafio intelectual, é também uma atitude política concreta." Paulo de Tarso Vannuchi, ministro de Estado da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República de 2006 a 2011, iniciou o debate abordando o papel das próximas eleições presidenciais na reconstrução das políticas de direitos humanos no país. Todo o processo da reconstrução tem três datas imediatas: duas em outubro e outra em janeiro, e não será um processo rápido com resultado em anos próximos, afirmou.

Para Jacqueline Pitanguy, presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher de 1986 a 1989, as eleições de outubro serão cruciais na definição dos limites e possibilidade de colocar um freio no desmonte e afirmar a prevalência dos direitos humanos na elaboração e implementação de políticas públicas.

A desconstrução ocasionada pelo governo de Jair Bolsonaro se tornou possível porque já vinha avançando desde o momento em que se questionou os resultados eleitorais da eleição da presidente Dilma Rousseff. Não é algo que surgiu no dia 1 de janeiro de 2019, pontuou Vannuchi.

Atualmente, os órgãos encarregados da implementação de políticas públicas que garantem o exercício dos direitos no país trabalham contra a agenda para os quais foram criados – é o caso do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comentou Pitanguy.

A expositora afirmou ter assistido a uma audiência pública do Ministério da Saúde que exemplifica a disputa de narrativas com efeitos nos direitos humanos. Na ocasião, foi apresentada uma cartilha voltada ao atendimento a vitimas de violência sexual que afirmava que, em um primeiro momento, todo aborto é crime e que cabe ao profissional de saúde e à vítima delatar casos de estrupro à policia.

Jacqueline Pitanguy - 30/06/2022
Jacqueline Pintaguy: ''As políticas públicas para as mulheres nunca foram tão ameaçadas a nível federal''
Para ela, essa posição representa uma flagrante violação dos direitos humanos. Com base no Código Penal de 1940, o abortamento em caso de estupro e risco de vida para a mãe não é punido. Além disso, o código de ética médica determina o sigilo e a privacidade na relação entre médico e paciente, e há uma dificuldade entre as mulheres para delatar casos de assédio.

Uma das caracteristicas do movimento feminista brasileiro é sua capacidade de ativismo e advocacy por meio de leis e políticas públicas. Ao longo das últimas décadas, encontramos uma conexão imediata entre o ativismo feminista e mudancas em legislações discriminatórias, proposição de novas leis, implementação de políticas públicas e, sobretudo, de resistência ao retrocesso.

De 1985 a 1988, o processo de advocacy conhecido como lobby do batom levou à inscrição na constituição de cerca de 80% das demandas das mulheres relativas a diversas dimensões da vida. Por exemplo, a igualdade na família e no casamento e o reconhecimento do Estado na coibição da violência doméstica.

Ultimamente, o cenário tem sido outro, mostrou Pitanguy. Em reunião do conselho de Direitos Humanos da ONU em 2020, o Brasil se posicionou contra a inclusão de parágrafos inteiros que recomendavam o acesso ao aborto legal, a informações e métodos contraceptivos, a direitos e a saúde sexual livre de coerção e discriminação, e contra textos relativos a prevenção e tratamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). A delegação do Brasil ainda se colocou contra a inclusão da educação sexual nas escolas.

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"As políticas públicas para as mulheres nunca foram tão ameaçadas a nível federal, com graves efeitos nos estados e municípios”, declarou. O atual Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos, por exemplo, impõe uma perspectiva religiosa, ideológica, familista e patriarcal em seus programas.

Eleonora Menicucci - 30/06/2022
Eleonora Menicucci defende a existência de um ministério ou secretaria de políticas para as mulheres
Os três documentos históricos de Direitos Humanos – a independência dos EUA, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração Universal dos Direitos Humanos – não abordam as mulheres enquanto sujeitos de direitos. Menicucci acredita que, do ponto de vista organizacional, não é possível ficar “sob o manto dos direitos humanos”; é fundamental a existência de uma secretaria ou ministério de política para as mulheres, afirmou.

Ela lembrou do caso do estupro de uma menina de 11 anos noticiado em junho deste ano. "Essa menina foi violentada duas vezes: pela juíza e pelo agressor", comentou. Na ocasião, uma juíza de Santa Catarina impediu que a vítima realizasse o procedimento de aborto, mas a mobilização social em torno do caso viabilizou que ele ocorresse em condições adequadas.

Paulo Sérgio Pinheiro, secretário Nacional dos Direitos Humanos de 2001 a 2003, apontou previsões para o futuro do país. No tema das eleições, acredita que, na medida em que alcancemos uma situação em que o presidente da república não seja eleito novamente, a sociedade civil não vai ser mais inimiga do governo como ocorre atualmente.

Para ele, será importante reeditar o programa nacional de Direitos Humanos (PNDH) 3, que foi comandado pelo Ministro Paulo Vanucchi. O programa deve revisar os retrocessos nas frentes do racismo, concentração de renda e desigualdade.

José Augusto Lindgren Alves e Antônio Augusto Cançado Trindade

Gilberto Vergne Saboia, secretário Nacional dos Direitos Humanos de 2000 a 2001, prestou homenagem ao embaixador José Augusto Lindgren Alves e ao jurista Antônio Augusto Cançado Trindade. Segundo Saboia, as duas personalidades, "cuja ausência se fará sentir no momento delicado da vida brasileira e da conjuntura mundial", chegaram ao auge de suas potencialidades sobretudo pelo conteúdo científico e ético de suas contribuições.

"Em ambos vibrava a paixão pela justiça e o anseio pela criação e fortalecimento de normas e instituições livres, democráticas e capazes de reduzir, senão eliminar, as flagrantes desigualdades entre pessoas e grupos”, declarou.


Cadernos Cedec 133 e 134

Apresentados por Wânia Pasinato e Andrei Koerner, do GPDH, os Cadernos Cedec 133134 contêm a transcrição e textos dos eventos "Construção e Desmonte dos Direitos Humanos e Políticas para Mulheres no Brasil", de maio, e "Construção e Desmonte das Políticas Nacionais de Direitos Humanos no Brasil", de outubro de 2021, respectivamente.

"Publicar este caderno é como não só fechar um ciclo em cada um dos eventos que organizamos, mas é também deixar uma contribuição para o futuro, tornando mais acessíveis as memórias que foram ali compartilhadas", afirmou Wânia.

O caderno 133 traz textos que juntos formam uma sólida linha do tempo sobre as lutas travadas para o avanço dos direitos das mulheres no brasil e sua institucionalização. Também traz um texto de manifesto, "O direito das mulheres são conquistas diárias", redigido pelas presidentas e ministras presentes em maio. Já o caderno 134 contém o texto do manifesto pela reconstrução das políticas de estado e direitos humanos no Brasil subscritos por todos os ministros e ministras e lançado naquele evento.

A abertura do evento foi feita por Paulo Endo, coordenador do GPDH, Bernardo Ricupero, diretor-presidente do Cedec e Guilherme Ary Plonski, diretor do IEA.