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Dignidade humana em teoria e prática na 2ª Intercontinental Academia

por Fernanda Rezende - publicado 06/04/2016 10:55 - última modificação 12/04/2016 15:37

Relato feito pela participante Akemi Kamimura, indicada pelo IEA para a 2ª edição do projeto, que aconteceu em Israel em março deste ano.

Por Akemi Kamimura
Participante brasileira indicada pelo IEA para a 2ª edição da Intercontinental Academia

Cartaz ICA JerusalémPode alguém ser torturado para salvar a vida de centenas de pessoas em risco iminente? Você aceitaria que alguém fosse torturado para salvar seus filhos em perigo? A tortura pode ser justificada para proteção da segurança nacional? Quem tem dignidade? O que significa “dignidade humana”? Seria um conceito absoluto ou relativo? A religião favorece ou dificulta a dignidade humana? A dignidade seria um valor ou um direito? Todas as pessoas têm dignidade?

Essas e outras questões sobre o tema “dignidade humana” foram debatidas durante a primeira fase da segunda edição da Intercontinental Academia on Human Dignity, ocorrida no Israel Institute for Advanced Studies (IIAS), da The Hebrew University of Jerusalem, de 6 a 18 de março em Israel.

Organizada pelo IIAS e pelo Center for Interdisciplinary Research, da Bielefeld University (ZiF), em Bielefeld, Alemanha, a segunda edição da UBIAS Intercontinental Academia teve como tema central a dignidade humana.

Os 18 jovens pesquisadores se reuniram durante as duas semanas de aulas magnas, debates acadêmicos e outras atividades relacionadas ao tema da dignidade humana. Em agosto, a Alemanha será a anfitriã desse grupo para mais aulas, debates e discussões, na expectativa de construção de um projeto coletivo e interdisciplinar sobre o tema. A programação da primeira fase está disponível em: http://www.as.huji.ac.il/ias/public/121/intercontinentalAca201586/program.pdf

O grupo é formado por jovens pesquisadores de diversos países (Israel, Alemanha, Estados Unidos, Itália, Romênia, África do Sul/Nigéria, Canadá, Finlândia, Holanda, Brasil) e diferentes formações (direito, filosofia, teologia, ciência política, antropologia, planejamento espacial, história, linguística).

A primeira edição da Intercontinental Academia, tendo o tempo como tema, foi organizada pelo IEA/USP e Universidade de Nagoya, Japão, realizada em abril de 2015 e março deste ano.

Experiência

Talvez por ter trabalhado em projetos e programas com abordagem multi/interdisciplinar na defesa de direitos humanos, a proposta da Second UBIAS Intercontinental Academia on Human Dignity de “promoção de um diálogo interdisciplinar sem precedentes e de iniciar uma cooperação entre participantes com diferentes formações científicas e culturais” tenha me inspirado a sonhar com a construção de um projeto interdisciplinar sobre dignidade humana com pesquisadores de diferentes formações acadêmicas ao redor do mundo.

Participantes trabalhando na II Edição ICA Jerusalém
2ª edição da ICA: 18 jovens participantes estudaram o tema dignidade humana em Jerusalém

Promover a dignidade humana, aliviar o sofrimento humano e combater violações de direitos humanos, além de fortalecer uma cultura de dignidade humana no Brasil e no mundo. Conhecer diferentes pessoas e realidades, contribuir para a construção de um projeto coletivo e interdisciplinar de dignidade humana, e quiçá colaborar para a promoção de dignidade humana em uma academia intercontinental. Com tudo isso em mente, fui a Israel, disposta a aprender e debater sobre o tema.

Mas o caminho a percorrer para uma academia intercontinental e uma cultura de dignidade humana é mais longo e complexo, e certamente não depende somente de debates acadêmicos e conferências. Teoria e prática precisam interagir e dialogar com coerência, especialmente por se tratar de dignidade humana.

Uma das primeiras atividades foi uma rodada introdutória de apresentação e uma breve discussão sobre o entendimento de cada participante sobre o conceito de dignidade humana. Seria a dignidade humana um conceito aberto em que caberia todo e qualquer valor ou ideal a ser protegido? Seria uma ferramenta para transformação social? Haveria um “núcleo essencial” da dignidade humana? A dignidade humana consagra uma concepção individual ou coletiva? A dignidade humana inclui uma noção de autonomia? Qual significado de dignidade humana? Quem tem dignidade?

A dignidade humana como tema de pesquisa reuniu jovens acadêmicos, com diferentes formações científicas, bagagens culturais e sociais; mas o tema comum de investigação não significa, por si só, uma compreensão compartilhada sobre a dignidade. Isso ficou evidenciado na breve discussão sobre o entendimento de cada participante e do grupo sobre o conceito de dignidade humana. A dignidade humana parecia ter contornos, cores e formas diversas para cada participante.

Uma somatória de diferentes opiniões e concepções não necessariamente reflete um consenso sobre o termo e uma construção coletiva — o que demanda tempo, dedicação, percalços e esforços conjuntos. Mas ainda nos conhecíamos, e um conceito comum sobre dignidade humana e um projeto coletivo interdisciplinar poderiam ser desenvolvidos no decorrer das duas semanas em Jerusalém, ou ainda na segunda fase em Bielefeld.

A falta de um conceito comum do grupo sobre dignidade humana foi ainda mais evidenciado na segunda semana, em discussões sobre dignidade humana no final da vida (o que traz à tona a dignidade no decorrer da vida) e sobre dignidade humana e defesa da segurança nacional, tomando por base a experiência israelense na jurisprudência e relativa aceitação social (e por vezes institucional) de tortura como método de investigação em situação ou cenário de “bomba-relógio”.

Em Israel, a tortura por vezes é utilizada como método de investigação, em determinados casos de “necessidade” de defesa da segurança nacional em “cenário de bomba-relógio”. E com relativo aval das instituições estatais, inclusive da Corte Suprema. A proteção da segurança nacional estaria acima da dignidade humana?…

Para alguns a prática de tortura poderia ser justificada para “salvar vidas” num cenário de bomba-relógio. Assim, não se questionaria a violação da dignidade humana, se a tortura fosse praticada para salvar “outras vidas”… Seria a “vida” o bem mais supremo da dignidade humana? Uma vida humana valeria mais que outra? Tortura seria aceitável num cenário de bomba-relógio? Tortura pode ser aceitável?

Parecia cada vez mais fundamental termos maior clareza sobre o que o grupo entende por dignidade humana, para podermos elaborar um projeto coletivo interdisciplinar, um produto final dessa jornada. Como construir um projeto comum, coletivo e interdisciplinar sobre dignidade humana, se ainda não temos sequer um denominador comum mínimo sobre o tema? Como debater dignidade humana se alguns podem ter mais dignidade que outros?

Mas talvez apenas quando cada pessoa conseguir se imaginar em outros papéis e conseguir se materializar na pele e na posição do “inimigo” sob tortura, ou de seus familiares, a dignidade humana passe a prevalecer sempre, em teoria e prática, sem margens ou janelas para a prática de tortura, sob nenhuma circunstância.

Se uma abordagem interdisciplinar convida cada disciplina a uma abertura a dúvidas e questionamentos para uma construção coletiva, após essa primeira fase da Intercontinental Academia on Human Dignity em Jerusalém, fica mais evidente que para um projeto comum sobre dignidade humana, é preciso ter uma base sólida, conceitos e alicerces definidos e comuns, construídos interdisciplinarmente. Mas antes disso parece ser ainda necessário passar por certas reflexões pessoais, ter humildade, abertura e maturidade para questionamentos e diálogos, para possibilitar um entendimento comum e coletivo sobre dignidade humana, para então podermos caminhar em direção a uma construção coletiva e interdisciplinar.

Debater sobre dignidade humana em uma academia intercontinental parece exigir que cada participante faça um constante exercício de alteridade e questionamento, não apenas discutir conceitos acadêmicos de uma ou outra disciplina, ou as práticas cotidianas de instituições e sociedades. É preciso que o outro seja visto e considerado como semelhante, o outro com igual dignidade humana.

Na lógica de guerra, o outro é visto como inimigo. Num passado autoritário, o outro deveria ser vigiado e punido, quando não “suprimido”. Uma história escravocrata, o outro como objeto. No cotidiano, cabe questionar se o outro é merecedor de dignidade? Quem decide quem pode (ou deve) viver ou morrer? Quem tem dignidade humana? Isso é intrínseco ou conquistado? Dignidade é absoluta ou pode ser relativizada? Como fomentar uma cultura de dignidade de humana? Qual o papel da academia?

Mas mesmo esses questionamentos também parecem ter sido cuidadosamente preparados pela organização e coordenação. Além das aulas magnas e palestras com especialistas e importantes figuras do cenário israelense (vide material em: http://www.as.huji.ac.il/HM-brochure), as visitas e atividades sociais possibilitaram um mergulho na realidade social, cultural e religiosa de Israel, além de promover maior interação e coletividade entre os próprios participantes. Nas conversas durante as refeições e passeios pudemos nos conhecer melhor, debater situações e questões que contribuíram para uma sensação de confiança mútua e coletividade que favorecem um projeto comum e uma construção coletiva.

Mesmo diante das diferenças o diálogo, reflexão e discussão prevaleceram entre os participantes. Opiniões foram respeitosamente escutadas e debatidas. Os limites da atuação e dos argumentos começaram a ser delineados e refletidos. No decorrer das duas semanas, aos poucos fomos nos tateando e nos conhecendo, com respeito e consideração, com carinho e cuidado.

Participantes II Edição ICA - Jerusalém
Participantes da 2ª edição da ICA

Atividades e visitas possibilitaram o grupo a conhecer e mergulhar, aos poucos, em Israel. Da memória do holocausto em Yad Vashem à promessa e proposta de renascimento, reconstrução e retorno e reunião dos judeus na terra prometida, nas obras do Museu de Israel. Da atuação da Corte Suprema de Israel e proposta de integração social do atual governo, aos relatos da prática institucional de segurança nacional, passando por representações em documentários sobre o conflito Israel-Palestina. Atentados e noticiários do terror, reações de temor e insegurança, ou relativa naturalidade da vida cotidiana: “just another day…

E provavelmente o questionamento individual também faça parte de uma construção coletiva interdisciplinar sobre dignidade humana. Sair da zona de conforto proporcionada pela formação e disciplina acadêmica para debater possibilidades e projetos comuns, coletivos. Ainda que não tenhamos voltado de Jerusalém com uma ideia cristalina dos contornos desse projeto coletivo e interdisciplinar, nossas discussões e conversas sempre conduziram para uma proposta de uma terceira fase, ainda a ser definida: uma publicação, um workshop, ou algum outro formato para contribuir com o debate sobre dignidade humana, e quiçá para sua concretização e realização.

Mas para isso talvez ainda seja necessário que cada participante retorne para suas atividades diárias, que as intensas reflexões e discussões decantem um pouco para podermos então impulsionar um projeto coletivo e interdisciplinar sobre dignidade humana, com uma base sólida comum e alicerçada em diálogos interdisciplinares, a ser concretizado talvez em Bielefeld, ou numa terceira fase, onde quer que seja.