Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Direito de acesso aos espaços urbanos em debate no IEA

Direito de acesso aos espaços urbanos em debate no IEA

por Victor Matioli - publicado 11/04/2018 17:15 - última modificação 17/12/2018 18:03

O acesso à cidade e seus espaços, bem como a outras prerrogativas fundamentais, tem tomado contornos diferentes nos últimos anos. A necessidade de reafirmar direitos, barrar ataques que os ameacem e ampliar as conquistas nessa área incentivou o surgimento de diversos grupos urbanos organizados.

Tarifa Zero
Manifestação contra o aumento da tarifa do transporte público organizada pelo Movimento Passe Livre em 2013

O acesso à cidade e seus espaços, bem como a outras prerrogativas fundamentais, tem tomado contornos diferentes nos últimos anos. A necessidade de reafirmar direitos, barrar ataques que os ameacem e ampliar as conquistas nessa área incentivou o surgimento de diversos grupos urbanos organizados. Uma das iniciativas que mais ganhou destaque foi o Movimento Passe Livre (MPL), que liderou boa parte das manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público em 2013.

Para relatar sua experiência como militantes do movimento, Anna Carolina da Silva e Geovanna de Andrade participaram da mesa de debate Movimentos e Grupos Urbanos Recentes: Vozes da Cidade, que aconteceu no dia 6 de abril no IEA. Também estiveram presentes o Padre Júlio Lancelotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, e Welita Caetano, coordenadora da Frente de Luta por Moradia (FLM). A mediação foi de Ricardo Alvarez, editor do blog Controvérsia.

O encontro pretendia dar voz, ouvir e compreender a posição de segmentos sociais subalternos, vulneráveis ou em luta pelo espaço urbano que têm ganhado visibilidade pública nos últimos cinco anos. A organização foi do Grupo de Estudos Teoria Urbana Crítica, coordenado pela professora Ana Fani Alessandri Carlos, do departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Transporte como inclusão

O MPL é um movimento social independente, horizontal e apartidário que luta por transporte, mobilidade urbana e direito à cidade. Apesar de ter ganhado força nas manifestações de 2013, o movimento foi fundado em 2005, durante o Fórum Social Mundial, e foi resultado de iniciativas anteriores, como a Revolta do Buzu (Salvador, 2003) e a Revolta da Catraca (Florianópolis, 2004).

As ações e debates promovidos pelo movimento questionam, atualmente, a mercantilização de um serviço que se pretende público, gratuito e irrestrito. Para Geovanna, o sistema de licitações públicas que rege a mobilidade na cidade de São Paulo impede que o transporte de pessoas se desvencilhe de seu potencial de lucratividade. Desta forma, o MPL defende que os cidadãos têm seu direito de acesso à cidade suprimido pelos interesses econômicos das empresas concessionárias.

Relacionado

Vídeo | Fotos

Se o transporte público não for assegurado, outros direitos básicos ficam inacessíveis para grande parte da população. “O acesso à educação pública de uma criança, por exemplo, só é garantido se ela puder chegar à escola através do transporte escolar gratuito”, defende Geovanna. A mesma lógica se estende a outras áreas fundamentais, como o direito à saúde, à moradia e à cidade.

O MPL acredita que deve ser implantado um sistema de tarifa zero na cidade de São Paulo. Para tanto, um fundo deveria ser criado através da taxação progressiva de grandes empresas. Apesar da dificuldade de execução do plano, Anna Carolina não o considera inviável: “O projeto não é utópico. Existem casos concretos de tarifa zero no Brasil, como Porto Real, no Rio de Janeiro, e Agudos, aqui em São Paulo”.

Anna Carolina e Geovanna garantem que a luta pela popularização do transporte público é histórica no Brasil. Segundo elas, as primeiras manifestações contra o aumento de tarifas datam do final do século 19. Na época, cariocas se manifestaram contra o aumento nas tarifas de bonde, em um levante que ficou conhecido como Revolta do Vintém.

Welita Caetano
Welita Caetano: “A grande maioria das pessoas que atendemos sequer sabe que tem direito à moradia”

Luta por moradia

A FLM é um movimento organizado que luta por moradia para famílias trabalhadoras de baixa renda. São incluídas nesta faixa as que recebem, mensalmente, até três salários mínimos. O movimento atuava inicialmente em regiões periféricas, mas avançou, posteriormente, para o centro da cidade a fim de aproximar os trabalhadores de seus locais de trabalho. A primeira “onda de ocupações” aconteceu em 1997 e conquistou sete prédios da cidade, sendo que três deles permanecem ocupados pela Frente até hoje.

Apesar de trazer como principal bandeira a luta por moradia digna, a FLM também milita pela garantia de outros direitos humanos, como saúde, educação e transporte. A entidade se organiza através de comitês que tem uma característica marcante: são preferencialmente comandados por mulheres que cresceram no próprio movimento.

A frente atua, segundo Welita, “garantindo que a lei de finalidade social dos imóveis seja cumprida”. Para isso, o grupo ocupa prédios abandonados, possibilitando que famílias trabalhadoras tenham acesso a moradia digna e ressignifiquem espaços vazios.

“A grande maioria das pessoas que atendemos sequer sabe que tem direito à moradia”, conta a coordenadora da FLM.  Sobre o perfil destas pessoas, ela afirma que são majoritariamente mulheres negras, chefes de família, geralmente abandonadas pelos companheiros e, não raro, vítimas de violência doméstica.

Welita defende um método de conscientização que chama de “formação em ação”. Para ela, é fundamental que os militantes e as famílias atendidas lutem e cresçam juntos. A FLM aplica, também, uma definição própria de democracia participativa: “Não estou me referindo à democracia que vivemos na sociedade. Mas ao conceito de que, na Frente, todos decidem, todos participam e todos executam”, explica.

Pe. Júlio Lancelotti
Pe. Júlio Lancelotti: “A população de rua deveria receber o status de refugiada"

Vozes da rua

Júlio Lancelotti provocou os presentes com uma reflexão sobre o tema do evento: “Que vozes? Temos diversas vozes na cidade e algumas extremamente silenciadas”. Ele enxerga os grandes centros urbanos como espaços de conflito onde uma parcela da população é simplesmente esquecida. O padre lembrou de Rafael Braga, a única pessoa a ser condenada e presa após as manifestações de 2013. Rafael era também, não curiosamente, um morador de rua.

Na visão dele, a contemporaneidade significa, para os moradores de rua, a completa falta de escolhas. “A população pobre não escolhe que horas vai deitar ou levantar, o que vai comer e o que vai vestir. Vive num regime semi-aberto de prisão.” Nas grandes cidades, estas pessoas têm sua sexualidade, afetividade e liberdade negadas.

Mas a negação não se resume à subjetividade. O padre acredita que os espaços da cidade também são recusados a essas pessoas. Quando passam pelas regiões nobres da capital, elas são obrigadas a encarar um universo de espaços que não podem acessar. Ele defende ainda que as únicas vozes ouvidas são as dos poderosos, dos que pretendem acalmar ou suprimir as revoltas que nascem na cidade.

Dado o contexto de exclusão completa que rege a vida da população que vive nas ruas da cidade, Lancelotti defende que ela deveria receber o status de refugiada. Pessoas que são indesejadas em todos os espaços e tratadas constantemente como uma ameaça pelas forças de segurança não poderiam receber outro título: “Eles são refugiados, mas dentro do espaço urbano”.

Todos os participantes da mesa concordam que inexiste um espaço que possibilite a união entre as mais diversas mobilizações populares. Para eles, as lutas pelos direitos dos moradores de rua, dos sem teto e dos que precisam do transporte público, gratuito e irrestrito carecem de um espaço comum de debate para que ações conjuntas e contundentes possam ser tomadas.