Ecos da escravidão na ética do trabalho
O sociólogo Adalberto Cardoso fala sobre as origens e mudanças da ética do trabalho no Brasil |
As diferenças entre as visões de mundo do carioca e do paulistano foram o ponto de partida do sociólogo Adalberto Cardoso para falar sobre Modernidades Múltiplas e as Metamorfoses da Ética do Trabalho no Brasil, tema do terceiro encontro do ciclo de conferências Tardes Cariocas: A USP Ouve o Rio de Janeiro. Organizado pelo IEA e coordenado pelo filósofo Renato Janine, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa O Futuro nos Interpela, o ciclo visa a intensificar o diálogo entre pensadores das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo no debate de questões sociais e vinculadas às relações humanas.
Com base em sua experiência como pesquisador na capital paulista, onde fez graduação, mestrado e doutorado pela USP, e na capital fluminense, onde é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Cardoso começou sua fala explorando os vínculos entre a proposta do ciclo e a temática da conferência, realizada no dia 4 de agosto.
De acordo com o sociólogo, as distinções entre os pontos de vista dos cariocas e dos paulistanos – as quais estariam por trás do escasso intercâmbio de ideias entre eles – ressoam na escolha dos objetos e na construção dos problemas de pesquisa investigados nas duas principais metrópoles do país. Enquanto o Rio de Janeiro estaria interessado em entender a dinâmica cultural do Brasil e em transformar a realidade social da cidade, São Paulo se concentraria nos grandes movimentos sociais, ligados à estrutura socioeconômica, sem compromisso com o engajamento.
Ao longo de sua trajetória acadêmica, Cardoso – que é também pesquisador associado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Warwick Institute for Employment Research – pôde observar como esses diferentes olhares repercutem na formação da ética do trabalho.
No início de suas pesquisas, desenvolvidas em São Paulo, dedicou-se a estudar a classe operária – "um objeto formal e estável", que refletiria as relações trabalhistas em uma cidade fundada numa hierarquia social rígida e na era da indústria. Ao mudar para o Rio de Janeiro, se deparou com uma tradição de pesquisa bem diversa, voltada para a informalidade, a pobreza e o universo das favelas. A partir dali, o foco de suas investigações passou do trabalho industrial padrão, consolidado na Era Vargas, para o trabalho informal e a estratificação social, entendidas como legado da escravidão.
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HERANÇA ESCRAVISTA
Segundo Cardoso, o principal elemento da composição de uma ética do trabalho no país foi a escravidão – prática que ordenou a sociedade brasileira durante séculos e cujos traços estruturais permaneceram arraigados na mentalidade nacional após a abolição. Para ele, o passado escravista deixou marcas profundas nas relações sociais posteriores, fortemente influenciadas pela questão da raça, e “determinou o ethos das relações de trabalho no Brasil”.
Essa herança, marcada pela imagem depreciativa do negro e do próprio trabalhador brasileiro, cristalizou uma ética de desvalorização do trabalho manual, visto como indigno, impuro e denegrido. E um dos ecos dessa visão elitista e preconceituosa – destacou o sociólogo – foi a exclusão dos ex-escravos nas atividades produtivas que despontavam nos primórdios da ordem capitalista no Brasil.
Considerados indivíduos inferiores, inaptos e incapazes de evolução, os negros libertos foram, portanto, deixados à margem do processo de modernização do país na passagem do século 19 para o 20. Conforme sublinhou Cardoso, isso ocorreu porque predominava a ideia de que os escravos só trabalhavam sob o julgo da chibata e, uma vez livres, não o fariam mais. "Daí a importância dada à força de trabalho estrangeira", ressaltou.
MÃO DE OBRA IMIGRANTE
"Em São Paulo, aprendi que o problema da falta de mão de obra surgiu com o fim da escravidão, mas ela vinha acabando há tempos", afirmou o sociólogo, explicando que o processo de abolição foi lento e teve início já em 1830. De acordo com ele, quando a Lei Áurea foi assinada, em 1888, vários estados já tinham eliminado o regime escravista – o qual se mantinha com força apenas em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e no sul da Bahia – e a população de libertos era muito grande, de modo que a força de trabalho não era mais majoritariamente escrava.
Para Cardoso, a carência de mão de obra ocasionada pela abolição foi um pretexto criado pela elite de São Paulo – mais especificamente, pelos plantadores de café – para justificar a importação de trabalhadores. "Os paulistas acreditavam que os brasileiros, ex-escravos e filhos de escravos, não foram talhados para o trabalho e que a solução era trazer gente de fora para o país", comentou.
Dessa forma, o uso da mão de obra imigrante europeia não teria sido uma injunção, mas uma escolha, que revelava uma visão altamente preconceituosa dos paulistas em relação ao Brasil e ao povo brasileiro. Segundo o sociólogo, tratava-se do "desejo de civilizar, enriquecer e embranquecer o país e, assim, estabelecer uma pequena Europa num ambiente selvagem" por parte de um grupo que produzia para exportar, com foco no consumidor estrangeiro e sem compromisso com a nação.
"A ideia das relações capitalistas de trabalho e de modernização do país foi construída em São Paulo e, nesse processo, os ex-escravos foram incorporados de forma excludente", completou, destacando que a opção pelos imigrantes com o objetivo de purificar a força de trabalho teve grande impacto na construção do Brasil moderno.
ERA VARGAS
Uma nova ética do trabalho começa a ser esboçada a partir de 1930, quando Getúlio Vargas assume o poder, cria o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e dá início ao seu projeto de valorização integral do homem brasileiro, o qual culminou na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Segundo Cardoso, o objetivo era sanear, civilizar e educar o povo, pois acreditava-se que a oferta de boas condições de vida – como segurança do trabalho, previdência social e financiamento da casa própria – aumentaria o preparo dos brasileiros para construir uma nação.
Baseado na ampliação dos direitos trabalhistas e assentando no capitalismo corporativo, o projeto varguista previa a ampliação do trabalho formal e o desenvolvimento do operário padrão: um profissional capacitado, casado e com filhos, devotado à família e ao emprego, com todos os documentos em dia – incluindo a carteira de trabalho. Determinava, ainda, que as indústrias deveriam ter no mínimo 2/3 de trabalhadores brasileiros, "a fim de combater o viés de seleção da elite paulista pelo elemento estrangeiro", observou o sociólogo.
Para viabilizar o projeto, o governo Vargas estabelece uma parceria com a indústria e cria uma série de medidas, entre as quais a fundação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) – instituição voltada para a formação de uma força de trabalho capacitada.
"Vargas descobriu que, diferentemente do que pensava a elite paulista, os brasileiros estavam disponíveis para trabalhar. Muitos não possuíam Registro Civil ou RG, mas tinham carteira de trabalho, na esperança de conseguirem um emprego formal", ponderou Cardoso, lembrando que os varguistas criam estar enfrentando, pela primeira vez, a herança da escravidão no Brasil.
ÉTICA DA PROTEÇÃO
Ancorada na ideia de proteção do trabalhador, a ética do trabalho forjada no governo Vargas buscava resgatar, valorizar e purificar o trabalho manual através da mediação e regulamentação do Estado. Distinguia-se, portanto, da protestante – uma ética sintonizada com o espírito capitalista e alicerçada na ideia de vocação e predestinação pessoal em nome de Deus, que defendia a meritocracia, o individualismo e o empreendedorismo, conforme destacou Cardoso. "Vargas substitui Deus pelo Estado, entendido como um projeto de nação e espelho do povo, algo que também condizia com o desenvolvimento do capitalismo", afirmou.
Da mesma forma – acrescentou –, a ética varguista distinguia-se da socialista, uma vez que esta baseava-se na igualdade construída pela solidariedade e inspirava-se no mote “a cada um segundo suas necessidades, de cada um segundo suas possibilidades”. Fundada no trabalho organizado em sociedades de apoio mútuo e, mais tarde, em sindicatos e partidos políticos, essa ética voltava-se para a construção da identidade coletiva de classe.
Apesar dessas diferenças, Vargas procurou alinhar seu discurso com os ideais sindicalistas. "Isso porque, sem os sindicatos, os direitos trabalhistas não teriam validade e o projeto varguista não iria para frente", esclareceu Cardoso, lembrando que, ao discursar para operários, em 1943, o então presidente disse: "os sindicatos são sua fortaleza e nenhum governo poderá governar sem vocês".
O sociólogo observou, ainda, que o projeto abrangia outras promessas associadas à inclusão dos trabalhadores, como reforma agrária; fixação do homem no campo para conter o êxodo rural; e criação de um mercado de consumo interno.
O filósofo Renato Janine mediou o debate |
LULA X VARGAS
Para Cardoso, o ex-presidente Lula é a expressão cabal do varguismo. "Quando surgiu como liderança, batalhou por um sindicato livre para lutar pela efetividade dos direitos do trabalho", disse, ressaltando que – orientado pelo sonho da inclusão social – ele foi capaz de estender suas políticas à massa de pessoas que viviam na informalidade e haviam ficado de fora do projeto de Vargas.
"Ele conseguiu fazer algo que Vargas planejou, mas não realizou, que foi construir um mercado interno, criar uma dinâmica de inclusão pelo consumo: dar casa, roupa e bem-estar através do mercado, enfim, dar autonomia para as pessoas comprarem", completou.
No debate que sucedeu à exposição de Cardoso, Janine voltou às similaridades entre os dois ex-presidentes ao traçar um paralelo entre a rejeição a ambos em São Paulo. De acordo com o filósofo, a aversão à Lula – e ao PT como um todo – no estado retoma a recusa dos paulistas da década de 1930 a um governo voltado para a inclusão dos trabalhadores. "Qual a explicação para essa aversão? Por que a classe média paulista é contra o PT?", indagou.
Trata-se – segundo o expositor – da relutância da sociedade em aceitar o projeto estatizante, visão que seria compartilhada tanto por Lula quanto por Vargas. "São Paulo sempre foi a fortaleza de resistência ao varguismo e, hoje, se constitui também um polo de resistência ao lulismo, que é uma reencarnação do varguismo", reforçou. "O mundo que Vargas estruturou foi o da indústria, da classe média de São Paulo, que foi anti-varguista e hoje é anti-lulista. Ironicamente, a classe média estruturada por Vargas se volta contra essa estruturação", completou.
O sociólogo observou que o estado de São Paulo foi o berço do PT e do PSDB – duas grandes forças políticas brasileiras, que representariam, respectivamente, o operariado e a intelectualidade da classe média. "O PSBD sempre expressou bem as aspirações e a ideologia de uma grande parcela do país; o PT, por outro lado, tem apoio garantido de aproximadamente 30% do eleitorado", afirmou, enfatizando que a chamada nova classe média continua com o Partido dos Trabalhadores e se sente recompensada pelas políticas sociais implementadas nos últimos 12 anos.
"Mas a recusa ao PT, hoje, não é apenas ideológica, mas moral", advertiu Cardoso, para quem a oposição conseguiu construir, a partir da dinâmica política, a ideia de que o partido é "o único corrupto, o mais corrupto, o que inventou a corrupção".
Foto: Sandra Codo/IEA-USP