Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / O futuro do amor na era das tecnologias do futuro

O futuro do amor na era das tecnologias do futuro

por Flávia Dourado - publicado 05/09/2014 16:30 - última modificação 04/02/2016 15:20

A partir do romance retratado no filme "Ela", roteirizado e dirigido por Spike Jonze, seminário realizado pelo IEA discutiu as relações sociais e os conflitos afetivos no contexto da cultura digital.

Cartaz filme ElaNum futuro próximo, Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), um homem solitário e abalado pelo fim do casamento, se apaixona pela voz feminina de um avançado sistema operacional (OS, na sigla em inglês) de computador, chamado Samantha (Scarlett Johansson). Customizado e dotado de consciência, o OS é capaz de reagir, aprender, manifestar emoções e compor uma personalidade própria a partir das necessidades de seu proprietário.

"Ela" (2013), longa-metragem de ficção científica romântico, roteirizado e dirigido por Spike Jonze, conta o desenrolar da história de amor pouco convencional entre Theodore e essa forma de inteligência artificial intuitiva que, longe de esgotar-se na eficiência tecnológica, revela-se uma companheira sensível, bem-humorada e cativante.

Ambientado em Los Angeles (LA), Estados Unidos, onde a única evidência futurística parece ser OS personalizados e com comando de voz, o filme se distancia das obras de ficção científica mais comuns, que exploram os impactos de novos recursos tecnológicos do ponto de vista visual. Em "Ela", ao que tudo indica, a tecnologia está tão arraigada ao cotidiano das pessoas e dissolvida na estrutura social, que já se tornou invisível. Samantha não tem corpo e não se materializa em nenhum suporte físico específico, mas se faz onipresente como ouvinte e conselheira.

As reflexões suscitadas pelo longa-metragem deram a tônica do seminário O Amor em Tempos Tecnológicos: “Ela” na Solidão, que o Grupo de Pesquisa O Futuro nos Interpela do IEA realizou no dia 11 de agosto. O encontro inaugurou o ciclo A Vida Hoje: Amor, Arte, Política e contou com a participação de Renato Janine, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador do grupo; o antropólogo Massimo Canevacci, professor visitante do IEA; e a também filósofa Olgária Matos, professora da FFLCH e coordenadora do Grupo de Pesquisa Humanidades e Mundo Contemporâneo do IEA.

Mesa
Os participantes do seminário (a partir da esq.): Massimo Canevacci, Renato Janine e Olgária Matos

A partir de uma perspectiva interdisciplinar, os expositores levantaram uma série de questões sobre as relações entre homem e tecnologia; as implicações da cultura digital; conflitos afetivos; educação sentimental; as diferentes formas de amor no contexto do pós-humanismo; e o lugar dos recursos tecnológicos na socialização. Pareceram concordar, ao menos parcialmente, com o comentário de Jonze a respeito do longa-metragem: "Ela", mais que um filme sobre tecnologia, é um filme sobre pessoas.

AMIZADE

Diferentemente de Canevacci, para quem "o centro do filme é o enamoramento, a paixão erótica, que inclui o amor e o sexo, mas vai além", Janine vê o longa de Jonze como "um hino à Philia" – termo grego para a palavra amizade.

Na opinião do filósofo, embora abranja as outras cinco faces do amor – Eros (amor carnal), Pathos (amor apaixonado), Ágape (amor altruísta), Pragma (amor pragmático), Ludus (amor sedutor) – a temática de "Ela" se encaixa prioritariamente na ideia de um amor companheiro, amigo, que visa ao bem do outro. "Samantha é um sonho de mulher: compreensiva, culta, dedicada, sempre disponível, confidente e amante", observou.

Para ele, o relacionamento amoroso entre Theodore e o OS nasce e se constrói a partir de uma amizade, assim como a relação que parece surgir, na última cena do filme, entre o protagonista e Amy (Amy Adams), sua amiga desde os tempos de faculdade. "Tudo indica que eles ficaram juntos, que da amizade nasceu um amor, sem paixão e erotismo, baseado na philia".

Matos, por outro lado, associou a temática de "Ela" a Eros e, mais especificamente, ao mito do amor romântico. De acordo com a filósofa, o longa-metragem retoma a tradição de O Banquete, diálogo de Platão que trata da natureza e das qualidades do amor, pois abordaria a "busca pela outra metade", por aquilo que está ausente, que não se tem. "O filme fala sobre o que está em todas as formas de amor: o desejo da unidade perdida, de algo que complete, como se o objeto encontrado fosse capaz de suprir a ausência, a sensação de que nos falta alguma coisa", explicou.

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

Janine também analisou a temática do filme sob perspectiva da transformação pela qual os personagens passam em face da experiência afetiva entre homem e máquina. Para ele, o longa-metragem retoma a ideia da educação sentimental – antes reservada à literatura do século 19, como os romances escritos pelos franceses Gustave Flaubert e Stendhal – mas com uma chave um pouco diferente. No caso de "Ela", haveria uma aprendizagem tanto por parte de Theodore quanto de Samantha, porém de naturezas diferentes: ele amadurece e aprende a lidar com a separação da ex-mulher enquanto ela adquire sentimentos e evolui.

Renato Janine Ribeiro

Renato Janine comparou a temática do filme aos romances de educação sentimental do século 19

Esse processo de aprendizado se intensifica, segundo Janine, no momento em que Samantha conhece o OS recriado do falecido filósofo Alan Watts e dá sinais de que tem uma vida independente: "A partir dali, o ciúme começa a tomar conta de Theodore". Pouco a pouco, as conexões dela com o mundo vão se ampliando até o ponto em que ela admite estar se relacionando simultaneamente com mais 641 programas e/ou pessoas.

A multiplicidade de relações mantidas por Samantha e a dificuldade de Theodore em aceitá-las deixaria evidente as tensões entre o potencial de aperfeiçoamento ilimitado da inteligência artificial e as limitações da mente humanidade. Segundo Janine, o confronto entre a capacidade infinita de evolução do OS e a finitude da compreensão humana amplia as diferenças entre o casal até que o relacionamento se torna insustentável. Samantha, assim como os outros programas de sua geração, abandona seus vínculos com a vida humana e vai para outro mundo, mais avançado.

"A metamorfose vai cada vez mais longe até que ela não consegue mais prosseguir, aparta-se da humanidade e vai para um lugar além da existência humana", disse. "Não se trata de abandono, mas de um rito de passagem: foi completada o aprendizado que houve entre eles", completou.

Para o filósofo, esse rito envolveu três fases. A primeira, quando Samantha, temerosa do impacto que sua imaterialidade poderia causar no relacionamento com Theodore, convida uma mulher para consumar sexualmente a relação, na tentativa de criar um ménage à trois no qual a convidada supriria a falta de um corpo feminino. A segunda, no momento em que Samantha cria vínculos com o OS de Alan Watts e dá início a um outro tipo de ménage, dessa vez espiritual. E o terceiro, quando ela expande sua rede de relações até chegar aos 641 namorados, compondo o que seria um "ménage ampliado".

RACIONALIDADE

Na avaliação de Canevacci, o rompimento entre Samantha e Theodore aponta para a prevalência da racionalidade: "É a inexorável censura da razão: a civilização ocidental tem uma potência baseada na tecnologia e cria uma racionalidade que não aceita nada além da própria razão", avaliou.

Olgária Matos
Olgária Matos: "O filme fala sobre o que está em todas as formas de amor: o desejo da unidade perdida"

De acordo com o antropólogo, atualmente a tecnologia digital é interpretada somente como produtividade, e não como tecnologia sensível, criativa, artística e intuitiva:  "O amor se cruza com o digital, mas é cortado pela censura civilizatória de que o humano só pode se relacionar com o humano". Essa censura incluiria, ainda, a repreensão do amor ubíquo – "um amor utópico, sempre presente, além da morte, que está em qualquer espaço-tempo", completou.

Essa primazia da racionalidade – ponderou – está associada ao mal-estar da civilização, que oprime os desejos dos indivíduos pelo bem da civilidade. Para o antropólogo, no filme de Jonze esse mal-estar se manifesta na ideia de que o inimigo é a tecnologia, tal como ocorre em "2001: Uma Odisseia no Espaço" – longa-metragem de ficção científica de 1968, dirigido e produzido por Stanley Kubrick. "Assim como HAL [computador que comanda a nave espacial Discovery na película de Kubrick], Samantha tem que morrer para que tudo volte ao normal", concluiu.

A VOZ

Os três expositores atribuíram à voz um lugar central em "Ela". Segundo Canevacci, trata-se de um dos elementos da tríade que alicerça o filme: bodyspace (os closes do rosto de Theodore, que representam o corpo), landscape (as paisagens de Los Angeles) e, finalmente, a voz de Samantha, sexy, mas incorpórea.

O antropólogo afirmou que a justaposição da voz do OS e das imagens de Theodore ressaltam a fascinação erótica envolta na tensão material X imaterial. De acordo com ele, esse conflito atinge o ápice quando Samantha convida uma mulher para consumar sexualmente a relação com Theodore ou, em última análise, para dar um corpo à sua voz.

Janine, por sua vez, destacou que o fascínio exercido pela voz é ainda maior porque sabemos quem está por trás dela. "Ao ouvir, imaginamos o corpo, o rosto e o sorriso de Scartlett Johansson, mas Theodore, ao contrário de nós, não tem essa imagem".

Já Matos associou a voz-personagem às possibilidades de presentificação do ausente na era digital – quando já "não é mais preciso ver para amar" – e à autonomização da máquina. "Antes, a tecnologia se acrescentava ao corpo humano para aperfeiçoá-lo, como um telescópio, por exemplo; agora, a ciência pode criar vida e produzir o que quiser", disse.

FOBIA DO CONTATO

Relacionado

CICLO
A VIDA HOJE: AMOR, ARTE, POLÍTICA



1º Seminário
O Amor em Tempos Tecnológicos: “Ela” na Solidão
11 de agosto de 2014

A opção por cultivar um relacionamento com a voz de um OS é, de acordo com Matos, sintoma do que define como "fobia do contato" ou "pânico da multidão" – dificuldade de ter uma vida social convencional, relutância em encontrar presencialmente o outro e medo de ter a própria identidade ameaçada pela massa. A filósofa lembrou que o longa-metragem não mostra grandes quantidades de pessoas.

"Há uma saturação do contato com o outro e muita gente acha melhor conversar por e-mail ou chat; é perfeito se apaixonar por uma voz", disse, ressaltando que as mídias contribuem para a dissolução da convivência por possibilitarem interações e relações amorosas mediadas pelas tecnologias.

Outro indício dessa fobia do contato – ressaltou Matos –, é a natureza narcisística da relação entre os protagonistas, já que Samantha é customizada e programada para satisfazer Theodore. "Na verdade, ele se relaciona e fala consigo mesmo o tempo todo", avaliou.

Janine também falou sobre o enfraquecimento das interações sociais, mas a partir do ponto de vista do trabalho de Theodore – escrever cartas de amor, com conteúdo íntimo, sob encomenda. "Trata-se da terceirização da expressão afetiva, da incapacidade de transmitir afeto sem a mediação de um especialista", afirmou. Para o filósofo, o ofício do protagonista sinaliza problemas com a comunicação dos sentimentos: "Se não fosse Theodore, as pessoas conseguiriam demonstrar amor?", indagou. Matos também abordou a questão: "O filme mostra uma sociedade que, para falar de amor, precisa que outro, um estranho, fale em seu lugar".

METAMORFOSE

De acordo com Canevacci, "Ela" aponta para a emergência de novas formações identitárias ao explorar uma dimensão metamórfica vinculada ao pós-humanismo que rompe com a tradicional divisão entre orgânico e inorgânico, vivo e morto. "As identidades estão mudando; contudo, isso não quer dizer que a identidade humana está se perdendo, mas apenas que estão surgindo outras, que trazem novos desafios", esclareceu.

Massimo Canevacci
Massimo Canevacci: "A fascinação pela técnica é tão
forte no filme que chega até o limite"

Por isso – advertiu o antropólogo –, as questões que despontam no cenário da cultura digital devem ser enfrentadas para além da dicotomia clássica corpo X tecnologia. "O corpo penetra na tecnologia assim como tecnologia penetra no corpo", destacou, observando que, ao trazer à tona "a expansão erótica em torno da imaterialidade" – isto é, uma relação amorosa com um ser sem corporeidade –, o longa-metragem coloca em relevo as fragilidades do pensamento dualista que opõe homem e máquina: "A fascinação pela técnica é tão forte no filme, que chega até o limite".

As mudanças antropológicas ocasionadas pelas novas tecnologias também foram abordadas por Matos, que destacou as metamorfoses no âmbito da percepção espaço-temporal. Para ela, a cultura digital vem acompanhada da sensação de compressão do tempo e expansão do espaço, de aceleração e onipresença, "como se tudo acontecesse aqui e agora". Trata-se, afirmou, da utopia digital da ubiquidade. "Mas onde estamos quando estamos em vários lugares?", indagou.

Na opinião da filósofa, é preciso ter cautela ao se analisar os impactos dos recursos tecnológicos, pois "a ciência e a tecnologia não pensam, mas fazem e desfazem sem refletir as fronteiras entre lícito e ilícito, real e imaginário". Por isso mesmo, afirmou, "não procede a ideia de que tudo o que é moderno é ontologicamente bom; o corpo pode se ampliar ou regredir e se fetichizar: vira objeto e passa a ser escolhido pelas tecnologias".

Fotos (a partir do alto): primeira - divulgação; demais - Sandra Codo/IEA-USP