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Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, assume a Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência

por Mauro Bellesa - publicado 28/03/2018 14:10 - última modificação 05/04/2018 09:20

Cerimônia na Sala do Conselho Universitário no dia 27 de março deu posse a Eliana Sousa Silva como titular em 2018 da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência.
Eliana Sousa Silva - 27/3/2018
Eliana Sousa Silva: "Considero fundamental pensar minha inserção nesse espaço da USP a partir do reconhecimento da potência que as periferias e favelas trazem como essência"

"Juntos tornaremos essa experiência na USP uma oportunidade que possibilitará contribuir para que a universidade seja mais aberta, mais democrática, mais negra e periférica." Assim a educadora e ativista social Eliane Sousa Silva, fundadora e diretora da Redes da Maré, encerrou seu discurso de posse como titular em 2018 da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, em cerimônia na Sala do Conselho Universitário da USP no dia 27 de março. A cátedra é sediada no IEA e é resultado de uma parceria entre o Instituto e o Itaú Cultural.

Durante sua fala, Eliana não conteve as lágrimas ao lembrar do assassinato, no dia 14 de março, da vereadora Marielle Franco, sua amiga, companheira de lutas e, assim como ela, crescida no complexo de favelas da Maré. Ela agradeceu à coordenação da cátedra pela oportunidade de contribuir com "a luta para que muitas outras Marielles surjam e possam viver com plenitude, alegria e liberdade".

Marielle foi uma liderança "forjada" a partir do trabalho iniciado na Maré por Eliana e companheiros nas "lutas mais básicas por direitos" [ela foi aluna do curso pré-vestibular criado na favela em 1997 pelo grupo de ativistas integrado por Eliana].

"Ela foi, como muitas jovens da Maré e de tantas periferias, alguém que ousou assumir bandeiras de lutas que enfrentassem as desigualdades que nos caracterizam. O caminho escolhido por ela foi a via parlamentar e em apenas um ano mostrou a sua força e convicções. Temos de nos engajar como sociedade para que esse crime seja esclarecido e os culpados responsabilizados."

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Inserção acadêmica

Eliana disse que o convite feito no final de 2017 para que assumisse a cátedra a surpreendeu e veio justo no ano em que se aposentou na UFRJ, após 30 anos de trabalho na instituição. "Minhas duas últimas atividades são as que mais sintetizaram o sentido maior da minha inserção num espaço acadêmico: a criação de uma área, dentro da Pró-Reitoria de Extensão, denominada Divisão de Integração Universidade-Comunidade e a coordenação de um curso de especialização na área de segurança pública voltado para profissionais do aparato das polícias."

Essas atividades lhe permitiram "elucidar o papel político-pedagógico que a universidade pode cumprir no seu engajamento com as demandas reais da sociedade brasileira". Isso a levou a considerar que o trabalho na cátedra pode ser uma oportunidade de pensar "a relação de proximidade que deve existir entre o que é produzido na USP e as demandas da sociedade, em particular das favelas e periferias".

Afirmou que as periferias trazem em sua essência "a capacidade de inventividade e resiliência, sendo urgente irmos além das representações tradicionais a respeito dessas populações, as quais estão focadas, de maneira recorrente, na ideia de carência e ausência".

Eixos para a cidadania

Antes da fala de Eliana, a crítica de dança e pesquisadora Helena Katz, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, fez o discurso de saudação à nova titular da cátedra.

Helena discorreu sobre a trajetória de vida e militância de Eliana e destacou os cinco eixos necessários para a cidadania plena formulados pela catedrática ao longo dos vários anos de trabalho na Maré:

  • educação, "componente fundamental para a autonomia, já presente naquele primeiro curso pré-vestibular";
  • arte e cultura, "no qual destaco o Centro de Artes da Maré, local criado em parceria com a coreógrafa Lia Rodrigues, que lá desenvolve, com um sucesso cada vez mais palpável, as formas de autonomia que a dança pode promover em comunidades como aquela";
  • comunicação, "como, por exemplo, a produção do jornal 'Maré de Notícias', distribuído de porta em porta, gratuitamente";
  • desenvolvimento territorial: "direito a um endereço e a um CEP, com a produção de um 'Guia de Ruas', trazendo a possibilidade do morador da Maré poder, por exemplo, comprar uma geladeira e tê-la entregue na sua casa";
  • segurança pública: "um tema tabu em um lugar onde todos têm medo da polícia e do Estado".

 

Vahan Agopyan, Eliana Sousa Silva e Maria Alice Setubal - 27/3/2018
O reitor Vahan Agopyan e a filha do patrono da cátedra, Maria Alice Setubal (à dir.), prestigiaram a posse da nova catedrática

A posse de Eliana foi prestigiada pela educadora Maria Alice Setubal, filha do patrono da cátedra e presidente da Fundação Tide Setubal. Nos tempos atuais, é preciso estar aberto à comunidade, afirmou: "Eliana é uma pessoa capaz de se posicionar firmemente e construir pontes para que façamos as coisas juntos, para mostrar as potências das periferias".

O coordenador geral da cátedra, Martin Grossmann, ex-diretor do IEA, disse que a presença da Eliane faz a USP se aproximar da Maré, "para aprender com quem tem a experiência do viver numa área de conflito permanente". Para ele, apesar de a universidade ter um outro tempo de trabalho, em função das necessidades da pesquisa e da análise, "ela não pode mais estar em defasagem com as demandas da sociedade".

Novas lideranças

Grossmann ressaltou a preocupação da cátedra em apoiar novas lideranças, objetivo presente também em outra atividade da iniciativa: o apoio a jovens pesquisadores, como no caso do suporte do Itaú Cultural, patrocinador da cátedra, à realização da primeira Intercontinental Academia, em 2015/2016, projeto desenvolvido no âmbito da rede Ubias, que reúne IEAs vinculados a universidades de todos os continentes.

O diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron, afirmou que a escolha de Eliana para ocupar a cátedra este ano adquire um aspecto simbólico especial pelo fato de 2018 marcar os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, "onde, pela primeira vez, a cultura é considerada um direito, ao lado da saúde, da educação e de outras áreas".

Para ele, uma das características mais marcantes do trabalho cultural de Eliana é o diálogo entre a produção e interesses internos à Maré com a produção artística externa. "A democratização de acesso é importante, mas o mais relevante é essa troca, na qual a ida de repertórios externos importa mais que o próprio fazer artístico."

A posse de Eliana também marcou o encerramento da titularidade do arquiteto e designer gráfico Ricardo Ohtake, presente na cerimônia. Ele disse que o trabalho que a nova titular ajudou a desenvolver na Maré possibilitou "a ascensão cultural da periferia e adquiriu contornos políticos, por isso o acontecido com Marielle Franco".

Ele fez um curto relato do ciclo de seminários e curso para gestores culturais que coordenou ao longo de 2017. O foco das duas atividades foi o processo de criação de instituições culturais, sobretudo em São Paulo, a partir do pós-guerra, a atuação de destacados gestores culturais do período e exposições marcantes para a renovação artística do país. Ele adiantou que o trabalho terá como conclusão o lançamento de um livro sobre os seminários até o final de 2018.

O processo de escolha de quem ocuparia a cátedra em 2018 não foi fácil, segundo o diretor do IEA, Paulo Saldiva. "Ao pensar sobre o rumo que daríamos à cátedra, procuramos pensar em alguma contribuição que nos proporcionasse ser melhores, nos desse musculatura para estimular mudanças na sociedade." A presença de Eliane contagiará os jovens, em sua opinião.

No encerramento da cerimônia, o reitor da USP, Vahan Agopyan, disse que a geração de Eliana tem como conseguir avanços maiores do que as melhorias para o país obtidas pela geração anterior e manifestou ser "uma honra para a USP ter como parceira uma pessoa com sua capacidade e convicção".

"Agora, com a presença de Eliana, vamos ver a arte e a cultura sendo disseminadas por todo o tecido urbano, mostrando que isso é possível e que através da arte e da cultura podemos melhorar o país", afirmou. Também destacou o fato de Eliana considerar a educação e a arte e cultura dois dos eixos prioritários para a plena cidadania: "Enquanto não tiver essas prioridades, o país não será o que queremos".

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP