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Da Vinci e Cildo Meireles, dois “artistas cientistas”

por Nelson Niero Neto - publicado 23/08/2019 12:10 - última modificação 07/10/2019 13:03

A relação entre a ciência e a arte em suas obras foi o tema do terceiro e quarto encontros de jornada

Mesa de 15/08/2019
Martin Grossmann, Francisco Rômulo Monte Ferreira, Ildeu de Castro Moreira e Luciano Migliaccio, durante o debate sobre a obra de Leonardo da Vinci
É possível que a arte e a ciência, com suas particularidades e diferenças, se complementem? Para os participantes do terceiro e quarto encontros da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral, ainda que essa interação nem sempre ocorra na frequência e intensidade desejada, não há dúvidas de que sim, ela pode e deve acontecer.

Batizada de Relações do Conhecimento em Dois Artistas Cientistas, a atividade realizada nos dias 15 e 16 de agosto debateu esse intercâmbio com base na análise do trabalho de dois “artistas cientistas”: o polímata italiano Leonardo da Vinci e o artista plástico brasileiro Cildo Meireles.

Como o debate proposto tratava da mescla entre arte e ciência, a lembrança a Leonardo não poderia ser mais adequada. Um autêntico polímata – ou seja, um indivíduo com conhecimentos profundos em diferentes áreas –, Da Vinci aventurou-se na pintura, escultura, música, poesia, matemática, física, química, botânica, anatomia, engenharia e arquitetura.

Participantes

O primeiro dia, dedicado ao gênio do Renascentismo, teve a presença de Francisco Rômulo Monte Ferreira, professor de História e Filosofia da Ciência na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Ildeu de Castro Moreira, físico e professor da UFRJ; e Luciano Migliaccio, professor da FAU-USP e historiador da arte. A moderação ficou por conta de Martin Grossmann, professor da ECA-USP e coordenador acadêmico da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, que organizada a jornada em parceria com o Itaú Cultural.

A análise do trabalho de Cildo Meireles foi o tema do segundo dia. Os convidados foram Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada; Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP; e o próprio Cildo. O crítico, curador e historiador de arte Paulo Herkenhoff foi o moderador. Ele e a biomédica Helena Nader, professora da Unifesp e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), são os titulares da Cátedra Olavo Setubal em 2019 e foram responsáveis pela formulação do programa da jornada.

Sua lista de interesses demonstra como arte e ciência estavam indissociadas em seu pensamento. “Leonardo da Vinci dedica boa parte de sua vida ao estudo dos mecanismos do olhar e da luz sobre o olhar humano na pintura”, disse o professor da FAU-USP e historiador da arte Luciano Migliaccio. A maneira como Da Vinci conduzia esse estudo, explicou, exemplifica o uso da ciência como complemento da arte. “Ele tinha um método particular ao desenhar, que dava relevo às figuras. Com isso, percebia os mecanismos do olho humano e os reproduzia na pintura. O tridimensional, típico da escultura, fica então presente no bidimensional”. Migliaccio reforça que o método, hoje difundido, foi uma das novidades que Leonardo idealizou.

Marcelo Viana
O matemático Marcelo Viana, durante a discussão do segundo dia
Outro exemplo de cooperação é o da aplicação da matemática no processo de criação artística, pontuou o diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, Marcelo Viana. A simetria, por exemplo, é um dos princípios presentes. “Na arquitetura, temos o exemplo do Taj Mahal, com sua simetria perfeita. Na música, é possível observá-la nas partituras de Johann Bach. E na pintura, temos Leonardo, provavelmente o mais matemático de todos os artistas. Com o quadro ‘A última ceia’, ele usou uma composição simétrica para representar a solidão de Jesus Cristo”, disse.

Para Viana, o que aproxima a arte e a matemática na obra de Leonardo é o fato de que ele estava tentando descobrir e entender o mundo — e as duas são instrumentos para isso.

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Nem sempre, porém, essa interação ocorre com facilidade. “O Renascimento separou estes dois campos, e, por várias razões, em poucos momentos este contato voltou a acontecer”, disse o professor da ECA-USP e coordenador acadêmico da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, Martin Grossmann. Segundo o físico e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Ildeu de Castro Moreira, alguns cientistas até afastaram a arte da ciência, em uma “atitude corporativista”. “Eu gosto de fazer a comparação entre o Leonardo e o Albert Einstein, pois ambos são ícones do mundo contemporâneo”, disse Ildeu, ao mostrar que os dois nomes estão entre os mais buscados na internet e muitas vezes são tomados como sinônimos para a palavra “gênio”. “E ao comparar, tento entender como o físico via Leonardo”, disse.

Einstein foi muito influenciado por Galileu Galilei e Isaac Newton, modelos, para ele, da imagem do cientista. Mas, aos seus olhos, esse não era o caso de Da Vinci. “Einstein considerava Leonardo muito inteligente e sagaz, mas tinha uma preocupação em não interpretar como ciência suas elucubrações vagas e caminhos tortuosos”, disse. “Elas, obviamente, eram absolutamente brilhantes na arte, mas do ponto de vista científico não caracterizavam o que Einstein identificava como o pensamento de um cientista”.

Ildeu lembra, entretanto, que o alemão não teve acesso a muitos escritos de Leonardo, descobertos posteriormente, os quais apresentavam ideias relacionadas ao pensamento científico. E que, mesmo com 400 anos de diferença, algumas similaridades entre eles são marcantes, como a inquietude para a investigação da natureza. “Salta muito aos olhos a curiosidade dos dois pelo mundo. Ambos queriam explorá-lo e entendê-lo”.

“Cosa mentale”

Alfredo Bosi
O professor Alfredo Bosi foi homenageado, no primeiro dia, pelo coordenador da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, Martin Grossmann. Professor emérito de literatura brasileira na FFLCH-USP, crítico literário, ensaísta e integrante da Academia Brasileira de Letras, Bosi também foi diretor do IEA entre 1998 e 2001 e editor da revista “Estudos Avançados” de 1989 a 2019. Em abril deste ano, ele lançou o livro “Arte e Conhecimento em Leonardo da Vinci”, em que analisa as pinturas e a filosofia do mestre italiano. Grossmann destacou, a partir da leitura de trechos do livro, como era íntima a relação entre a obra de Leonardo e a natureza.

Leonardo da Vinci definia a arte como “cosa mentale”. “O desenho, como uma forma de tradução da experiência visual, é o que vejo como a ‘cosa mentale’ de Leonardo”, disse Luciano Migliaccio. “Na passagem entre o cérebro e a mão, exige-se uma organização, um planejamento do pensamento”.

Mas a “cosa mentale”, completa, também é o desenho possuindo eficácia psicológica. “Da Vinci usa o desenho como instrumento, para causar determinados sentimentos. Ele queria impressionar o espectador, mesmo se fosse com imagens desagradáveis ou horrendas”, diz.

Para a titular da cátedra Helena Nader, que acompanhou o debate na plateia, Leonardo da Vinci é um marco não só da arte, mas também da ciência. “Ele começa o que hoje chamamos de ciência como questionamento. E não sei por que se costuma atribuir a ‘cosa mentale’ só à arte. Afinal, a ciência também não é?”, questionou.

Os cientistas sempre usaram experimentos mentais como parte de suas investigações, lembrou o professor de História e Filosofia da Ciência da UFRJ Francisco Rômulo Monte Ferreira. A Lei da Inércia, por exemplo, proposta por Galileu e posteriormente corroborada por Newton, não é passível de experimentação prática, mas nem por isso deixa de ter validade científica. “Não é possível colocar uma esfera em um plano liso, infinito e sem atrito para verificar seu movimento. Mas mentalmente isso pode ser validado”, explicou.

Esse raciocínio é o que Rômulo chama de “provar o real pelo absurdo”. Absurdo não em um sentido ruim ou grotesco, mas como algo que não pode ser experimentado. “Os experimentos chegam perto da ideia, mas não são efetivamente iguais. Isso sempre esteve presente na ciência, mas é parte de um pacote que inclui a observação e a prática”.

Cildo Meireles
O artista plástico Cildo Meireles, que falou sobre sua trajetória e obra

Migliaccio reforçou que parte das preocupações de Leonardo era representar o que não pode ser representado, como, por exemplo, ideias abstratas ou as forças da natureza, como o relâmpago. “Ele mostra o que nenhum pintor pode mostrar. A imagem que não poderia ser realizada. Essa talvez seja uma boa maneira de descrevê-lo como personagem”.

Cildo Meireles

Essa tentativa de representar artisticamente o que não pode ser representado é uma preocupação também presente na obra de Cildo Meireles, apontou o crítico, curador e historiador de arte Paulo Herkenhoff na abertura do segundo dia de debate, quando relembrou a observação de Migliaccio. “E por que escolhemos Cildo? Na nossa avaliação, ele é um paradigma de artista plástico e sua relação com ciência, natureza e cultura”, disse Herkenhoff. “Cildo expandiu o campo da arte, para contaminá-lo com o pensamento científico. Ao mesmo tempo, ele conduziu a ciência a instâncias que o racionalismo não alcançaria”.

A instalação “Fontes”, de 1992, é um exemplo dessa tentativa de representar algo, a princípio, não-representável. Os cerca de mil relógios nas paredes da sala que abriga a obra têm seus números e ponteiros embaralhados, desordenados e alguns até espalhados pelo chão. “Foi uma tentativa de materializar essa coisa tão abstrata que é o momento”, disse o artista.

“Eureka/Blindhotland”, instalação trabalhada entre 1970 e 1975, também abordava um conceito não-visual: o peso. Em um espaço quadrado, com alguns metros de largura, Cildo espalhou pelo chão cerca de 200 esferas pretas, do mesmo tamanho, um pouco menores que uma bolinha de tênis. O público era convidado a interagir com a obra e percebia, então, que as aparências às vezes enganam: cada uma das bolinhas tinha seu próprio peso, pois Cildo alterou a densidade de cada uma delas adicionando diferentes quantidades de chumbo em seu interior.

A arte e o artista

Maria Arminda do Nascimento Arruda
Maria Arminda do Nascimento Arruda discutiu conceitos de arte pela ótica da sociologia
Cildo costuma dizer que a arte é uma “inutilidade indispensável”. A inquietação de atribuir sentidos, explicações e compreensões ao fazer artístico afligiu artistas de todas as épocas — mesmo que, para alguns, a resposta fosse que a arte não precisa de significados ou definições precisas.

A sociologia, mostrou a professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP Maria Arminda do Nascimento Arruda, é um dos caminhos para tentar entender o papel do artista e as razões de sua atuação. “Todo ato humano é coletivamente construído”, disse. “Desde cozer um alimento até as representações artísticas, literárias, de pensamento. E a figura do artista deriva de um processo muito semelhante. Ele adquire certas disposições para se tornar artista plástico, escritor, cientista. São momentos e experiências da vida, como a relação com a família, a educação artística e formal, entre outros, que o modelam dessa maneira”.

Parte dessa coletividade e do processo de construção artístico passa pela interação com a ciência. Para Herkenhoff, a arte brasileira precisa do olhar dos cientistas, que podem contribuir com seus conhecimentos. “Vocês fazem falta à arte brasileira. Minha recomendação é que estejam mais próximos.”

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP