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Quando a privacidade da família chega à Justiça

por Flávia Dourado - publicado 07/05/2014 18:50 - última modificação 04/02/2016 11:50

No encontro A Vida Não É Justa, a juíza Andrea Pachá falou sobre os desafios do direito da família diante de casos que envolvem amor, afeto e desamparo.
Andréa Maciel Pachá
A juíza Andréa Pachá

Divorciado há dois anos, um jovem casal recorre à Justiça para solucionar um problema corriqueiro, parte do cotidiano de muitos pais: decidir em que escola a filha de 9 anos será matriculada. Embora compartilhem a guarda da criança, os dois adultos são incapazes de conversar e chegar a um consenso sobre uma questão simples ligada à educação da garota.

Conflitos familiares como esse, que resultam da dificuldade de dialogar e entrar num acordo, fazem parte do cotidiano profissional de Andréa Pachá, juíza com mais de 20 anos de magistratura na Vara da Família. De acordo com ela, trata-se do sintoma de uma sociedade infantilizada que, sem preparo para lidar com frustrações emocionais, terceirizam para o Estado a responsabilidade de solucionar impasses da intimidade da vida privada.

Pachá falou sobre o tema em A Vida Não É Justa, primeiro encontro do ciclo de conferências Tardes Cariocas: A USP Ouve o Rio de Janeiro, realizado pelo IEA no dia 28 de abril. Coordenado por Renato Janine, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e conselheiro do Instituto, o ciclo se estenderá ao longo do ano e trará a São Paulo pensadores e pesquisadores da capital fluminense para discutir questões sociais e vinculados às relações humanas, com o objetivo de intensificar o intercâmbio de ideias entre as duas principais cidades do país.

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Mediada por Janine, a exposição de Pachá dialogou com o livro "A Vida Não É Justa", de sua autoria, no qual conta, através de crônicas ficcionais sobre relacionamentos, amores e filiações, casos triviais e inusitados que intermediou ao longo de sua carreira, como a história que abre esta reportagem. Na crônica, escrita em primeira pessoa, a juíza reproduz a mesma postura que adotou no exercício profissional: julga o caso improcedente.

"Decidir a escola havia se tornado uma questão de honra para os pais, de modo que ganhar o processo parecia mais urgente que garantir o bem-estar da criança. A Justiça não podia interferir. Os pais precisavam assumir a responsabilidade da vida adulta: fazer escolhas e lidar com a frustração. Quem pariu Mateus que o embale", analisou Pachá, resumindo o final da história.

TRANSFORMAÇÕES

Segundo Pachá, a partir do momento em que é promulgada a Constituição de 1988, a Justiça, antes restrita à proteção dos interesses das elites, é ampliada e passa a abranger um extenso leque de direitos individuais e coletivos. "A ditadura chegava ao fim com a mensagem de que os cidadãos tinham direito à tudo: à saúde, à educação e até à felicidade. Para efetivar esses direitos, o Poder Judiciário foi trazido como protagonista e o juiz passou a ser chamado para resolver toda a sorte de conflitos", contextualizou.

Ao mesmo tempo, as relações familiares começavam a se transformar. A família se tornava um círculo mais democrático, no qual era possível compactuar múltiplos direitos. "Antes as relações eram hipócritas; imperava um silêncio imposto pelo arbítrio: os homens mantinham amantes que não tinham direito a nada e cujos filhos não eram reconhecidos. Até 1988, o que se protegiam não eram os direitos das pessoas, mas o sagrado matrimônio", lembrou a juíza.

Aos poucos, o ambiente familiar foi se tornando mais humano e mais aberto ao diálogo. Conforme observou Pachá, teve início uma revolução dos direitos individuais, e pautas da vida privada ganharam visibilidade pública, como o casamento gay, a adoção de crianças por homossexuais e o reconhecimento de filhos afetivos.

Contudo — ressalvou a juíza —, se de um lado a Constituição trazia à tona os valores fundamentais da solidariedade, do afeto e da ética, de outro a sociedade do consumo e do espetáculo difundia a lógica do ter sobre o ser, da aparência sobre o conteúdo. A reivindicação por múltiplos direitos foi influenciada, assim, pela busca incessante da satisfação, do prazer e da felicidade.

EXPECTATIVA DA FELICIDADE

Ao falar sobre sua experiência profissional, Pachá afirmou que sua maior angústia ao longo dos 20 anos de magistratura foi testemunhar a dificuldade dos casais em lidar com o fim do amor. "Tudo vira um problema sem solução quando as pessoas não conseguem aceitar que o amor acabou."

De acordo com a juíza, essa dificuldade deve-se, em grande medida, às expectativas dos indivíduos em torno dos relacionamentos, do amor, do afeto, enfim, de uma felicidade exposta constantemente na mídia e nas redes sociais, mas que é incompatível com a própria condição humana, a qual implica perdas, dor e desilusões. Janine acrescentou que essas expectativas têm uma forte relação com o romantismo, que coloca o encontro de duas almas como o ápice da felicidade.

A esse ideal romântico, originalmente marcado pelo despojamento material, soma-se a influência do consumismo. Para Pachá, cada vez mais os parceiros veem o outro não como sujeito com individualidade e autonomia para fazer escolhas, mas como um bem de consumo. "No casal, um enxerga o outro como objeto de satisfação dos seus desejos, o que torna a separação mais difícil", avaliou.

Mas como o amor possível nem sempre é o amor idealizado, vem a frustração. E, com a frustração, a necessidade de ser reparado pelo sofrimento. "Espera-se que a justiça resolva o sentimento de desamparo em questões que envolvem o afeto, e isso não existe. Não há poder no mundo que restabeleça a dor de um amor", ponderou Pachá, ressaltando que, ao levarem os casos para o Judiciário, os indivíduos desejam não só ser justiçados, como também verbalizar a frustração e viver o luto do fim do amor. "Mas há limites para a atuação do Estado. Juiz não é terapeuta", observou.

TERCEIRIZAÇÃO

Como exemplo da tendência de terceirizar para o Estado a responsabilidade de resolver conflitos da esfera familiar, que envolvem a intimidade dos indivíduos, Pachá mencionou um acontecimento recente envolvendo pais e filhos da classe alta da cidade do Rio de Janeiro.

O impasse em questão teve início quando os alunos do ensino médio de um colégio da elite carioca organizaram uma festa de formatura, cuja principal atração era uma briga na espuma entre anões. Os pais, constrangidos, não concordavam com o show, mas acabaram pagando as despesas da festa, que custou em torno de R$ 1 milhão. Contudo, apelaram para a justiça a fim de barrar o evento, com o argumento de que menores de idade iriam consumir bebida alcoólica.

Segundo Pachá, trata-se de um entre muitos casos nos quais a sociedade delega para o Estado a responsabilidade de fazer escolhas íntimas e pessoais. A juíza afirmou que é comum os pais procurarem a Justiça para baixar portarias proibindo a entrada de menores em casas noturnas como forma de restringir o acesso dos filhos. "Essa fuga tem acontecido com frequência no direito da família. Diante da dificuldade de dizer não, de dialogar e encontrar uma solução, os pais terceirizam para a Justiça o papel de impor limites."

No entanto, advertiu, os mesmos indivíduos que recorrem à Justiça para solucionar problemas pessoais e expõem a intimidade familiar num processo repudiam a interferência do Estado em outras esferas da vida privada, como quando são chamados a soprar o bafômetro. "Querem a presença do Estado apenas quando lhes convém", destacou.

Mas transferir para a Justiça a autoridade para estabelecer regras e a responsabilidade por fazer escolhas não é exclusividade de pais que se esquivam do papel de educador. Conforme questão levantada pelo público e corroborada por Pachá, a política também vem passando por um processo de terceirização.

"Por que a justiça decide sobre casamento gay? Porque o Congresso não legislou sobre o tema. O judiciário está julgando questões que deveriam ter sido deliberadas pelo Legislativo e Executivo", explicou, acrescentando que vem daí a frustração representativa da sociedade. "Quem vem decidindo sobre matérias importantes para a sociedade não são os membros do Legislatigo, escolhidos por voto, mas o juiz, que não foi eleito pelo povo", arrematou.

ABORDAGEM PSICANALÍTICA

Janine chamou atenção para o conteúdo psicológico e psicanalítico presente tanto na fala quanto no livro de Pachá. De acordo com ele, a influência dessas linhas de pensamento fica evidente em dois aspectos principais: na postura de escuta da juíza, na medida em que procura entender o que está por trás dos conflitos; e no esforço de responsabilização, isto é, de mostrar aos envolvidos que eles são responsáveis por suas escolhas e que, por isso, não podem terceirizá-las.

"Assim como faz o psicanalista, a Andréa precisa frustrar e dizer: o que você espera de mim — a solução, a felicidade, o fim do desamparo — eu não posso dar. Você é responsável por suas escolhas", comparou o mediador, acrescentando que a juíza também assume o papel de lembrar que ninguém tem a obrigação de ser feliz e que a frustração e o sofrimento fazem parte da vida.

Segundo Pachá, essa influência vem de suas leituras e de sua própria experiência no divã, uma vez que se submete à psicanálise há muitos anos. "É preciso lembrar as partes de que o mais importante não é a felicidade, mas a maneira como enxergamos a banalidade de nossa condição humana. Nossa precariedade nos faz ainda melhores", frisou.

Além disso, destacou que, ao longo de sua carreira como juíza, teve a oportunidade de "assistir à exposição das vísceras da sociedade e observar as transformações sociais de um lugar privilegiado".

De acordo com ela, no direito da família os conflitos são continuados e se mantêm, a não ser que as pessoas assumam a responsabilidade e participem da solução. Por isso, a postura do juiz deve ser a de mediar acordos e insistir na busca de consensos. "Em 20 anos, julguei menos de 1% dos casos que passaram por mim. Quando houve julgamento, o impasse não acabou e o processo foi desdobrado em outros processos. Não há sentença de um juiz de família que resolva o conflito", concluiu.

Foto: Sandra Codo/IEA-USP