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Pesquisadora do IEA acompanha o processo de elaboração da nova Constituição chilena

por Beatriz Herminio - publicado 10/03/2022 13:40 - última modificação 10/03/2022 16:44

Pesquisadora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP visitou o Chile durante 15 dias em uma viagem acadêmica para observar os processos sociais envolvidos nas mudanças constitucionais

Por Mariana Marques, para o Jornal da USP

Especialista em História do Constitucionalismo, a professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, Ester Gammardella Rizzi, viajou durante as duas primeiras semanas de fevereiro para Santiago. Durante a visita à capital chilena, a pesquisadora pôde acompanhar de perto o trabalho da Convenção Constituinte do país, que nos próximos meses possui a tarefa de redigir uma nova Constituição.

A missão acadêmica faz parte de um projeto envolvendo o grupo de pesquisa do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), ligado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e o grupo de estudos Neoliberalismo, Subjetivação e Resistências, do Instituto de Estudos Avançados (IEA), ambos da USP. De acordo com a professora, a viagem foi uma grande oportunidade de observar de perto processos sociais importantes relacionados ao rompimento do ultraliberalismo, mudanças constitucionais e crise da democracia.

Ester Rizzi e María Elisa Quinteros
Ester Rizzi (à esquerda) e María Elisa Quinteros, presidente da Convenção Constituinte (Foto: Arquivo pessoal)
“O neoliberalismo é um dos nossos objetos de estudo e ver esse processo de insurreição no Chile, de resistência em um país em que se tinha uma narrativa neoliberal favorável. Todo mundo falava: ‘Mas o Chile dá certo. Mas o Chile é um país tão bom, não é?’. Havia uma narrativa laudatória que elogiava o Chile por conta do seu liberalismo. Assim, talvez a sociedade não esteja tão satisfeita”, destaca Ester. “Ver esse processo de insurreição, de revolta popular no Chile com o Estallido Social de 2019 nos chamou a atenção e juntou com meu objeto de estudo que é mudança constitucional. A ideia dessa viagem nasceu nesse grupo de estudos e no grupo de pesquisa sobre direitos da cidadania.”

Não são por 30 pesos, são por 30 anos

De acordo com a pesquisadora, a atual Convenção Constituinte é uma consequência direta do Estallido Social, um período marcado por uma série de protestos nas principais cidades chilenas em outubro de 2019. As manifestações chegaram a reunir 1,2 milhão de pessoas, que reivindicavam mudanças estruturais em setores como saúde, educação e previdência social.

O estopim da onda de protestos foi o aumento do preço do metrô na capital, o que gerou um movimento, principalmente entre os estudantes, que incentivava as pessoas a pularem as catracas como forma de protesto. Com isso, as estações de metrô foram fechadas no dia 18 de outubro. “Os trabalhadores começaram a sair dos empregos numa sexta-feira à noite sem metrô e começaram a caminhar para suas casas. Em vez de ficarem bravos com os manifestantes, que poderia ser uma reação, toda essa insatisfação social, esse mal-estar social, de repente falou ‘eles estão certos’”, explica a professora.

Mas a indignação dos chilenos não estava relacionada apenas com o alto custo do transporte público. A frase de ordem “Não são por 30 pesos, são por 30 anos”, vista muitas vezes durante a série de protestos, era uma clara referência ao tempo decorrido desde a redemocratização do país no final da década de 80.

“Diferentemente do Brasil, que resolve fazer uma nova Constituição para instituir um Estado Democrático de Direito, eles reformam a Constituição de 80. Então tem um incômodo aí: o Chile está em 2022 com uma Constituição feita no auge da ditadura. O apelido dessa Constituição de 80 é ‘Constituição do Pinochet’ “, afirma Ester se referindo ao ditador chileno Augusto Pinochet, que governou o país de 1973 a 1990.

Além de carregar na Constituição heranças do período obscuro que envolveu a ditadura de Pinochet, a atual Constituição carrega o que Ester chama de “desenho institucional travado”. Hoje, para realizar alterações na carta magna chilena, é preciso da aprovação de pelo menos dois terços do Congresso. Na prática, mesmo os governos mais progressistas do país foram incapazes de promover mudanças constitucionais efetivas.

“Outra característica, que foi citada em várias entrevistas que eu fiz, é que o Tribunal Constitucional, o equivalente ao nosso Supremo Tribunal Federal (STF), pode fazer controle prévio. Então antes da lei ser aprovada no Poder Legislativo deles, ela pode ser controlada, ela pode ser declarada incondicional no tribunal. Várias tentativas de mudança nessa ordem foram feitas e barradas pelo quórum de dois terços e pelo tribunal.”

Desejo do que a sociedade quer ser

Convenção Constitucional no Chile
Convenção Constitucional no Chile em fevereiro de 2022 (Foto: Ester Rizzi)
Na atualidade, as Constituições (também chamadas de cartas magnas) são um importante componente dos Estados-nação. Isso porque o papel da carta magna é organizar o aparato estatal, como a separação dos poderes, as funções e limites de atuação das instituições que compõem o Estado nacional.

Mas, de acordo com a professora, os papéis da Constituição vão além de estruturar e regulamentar instituições. “De alguma forma, esse documento também guarda em si um desejo de futuro. Uma Constituição nunca diz o que (a sociedade) é, porque ela também diz o que a sociedade quer ser.” Ela exemplifica seu ponto de vista citando o que a Constituição brasileira de 1988 prevê quanto ao direito à educação:  “Garante-se o direito à educação de qualidade e a valorização dos professores para todos, não é? O artigo 205 tem todo um hall de princípios do direito à educação. Isso está na realidade? Não. Mas ela, a Constituição, também guarda em si um desejo do que a sociedade quer ser”, completa Ester.

A professora também enfatiza que a Constituição chilena vigente não garante questões consideradas básicas em outros países como direitos. “Essa Constituição de 80 está ligada à ideia de Estado subsidiário. E essa ideia de Estado subsidiário impacta saúde, educação e sobretudo as aposentadorias. Mas também impacta muito a regulação do trabalho, eles têm uma regulação totalmente não protetiva, que não protege os trabalhadores, que desorganiza os sindicatos.”

Esse Estado subsidiário, na prática, exime o Estado da responsabilidade de garantir condições mínimas de vida aos seus habitantes. A consequência disso é um alto índice de desigualdade social, que pode ser confirmado através do coeficiente de Gini (2017) de 0,45. Embora seja o país com a maior renda per capita da América Latina, a desigualdade social chilena é semelhante a de outros países da região.

Chile 2022: uma nova Constituição?

Para Ester, o resultado das votações para os convencionales (membros da Convenção Constitucional) parece ter refletido um anseio da população chilena por mais representatividade. A formação do fórum procurou respeitar a paridade de gênero, garantir a representação indígena e pessoas sem vínculo político partidário também puderam compor a convenção sem precisar enfrentar grandes formalidades para se candidatar.

Em sua análise, a pesquisadora avalia que os convencionales enfrentam grandes desafios em sua missão. A necessidade de aprovação por ampla maioria (103 votos de 155) e o curto prazo de 90 dias são grandes empecilhos a serem superados, mas não os únicos. “Eles também estão sofrendo ataques de fake news e campanhas de difamação contra-convenção junto à sociedade e os meios de comunicação.”

Apesar disso, Ester se mantém otimista quanto ao processo. “Eu acho que tem todo um contexto político difícil, mas eu vi uma convenção muito comprometida em representar o seu período histórico e ser um espelho neste momento político do Chile, das suas insatisfações e, ao mesmo tempo, dos seus desejos.”