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A consolidação da história das mentalidades ao longo do século 20

por Mauro Bellesa - publicado 21/06/2017 11:55 - última modificação 26/06/2017 18:17

O historiador Carlos Guilherme Mota, primeiro diretor e professor honorário do IEA, fez a conferência "Pensar a História das Mentalidades – Em Busca de Nossa Contemporaneidade Perdida" no dia 12 de junho.
Carlos Guilherme Mota - 12/6/2017
Carlos Guilherme Mota: "As ciências sociais precisam voltar aos conceitos básicos"

Todo pesquisador (ou simples leitor com razoável formação) interessado em compreender alguma fase histórica de uma sociedade ocidental conta, já há várias décadas, não só com a narrativa de eventos marcantes e da ação de seus protagonistas, mas também com um panorama detalhado das ideias motoras das transformações políticas, econômicas, sociais e culturais.

Isso é possível devido à consolidação da história das mentalidades ao longo do século 20 como umas das principais correntes de estudos históricos. Foi para falar do processo constitutivo da disciplina e de seu futuro que o historiador Carlos Guilherme Mota fez no dia 12 de junho a conferência Pensar a História das Mentalidades – Em Busca de Nossa Contemporaneidade Perdida. A exposição ocorreu no evento Formas de Pensamento, Ideologias e Mentalidades, organizado pela professora em ano sabático no IEA Marisa Midori Deaecto, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde lecionou história contemporânea por várias décadas, Mota é também professor titular de história da cultura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ele foi cofundador e primeiro diretor do IEA, no qual é professor honorário. Autor, coautor e organizador de mais de 30 livros, entre os quais "Nordeste, 1817: Estrutura e Argumentos" (1972), "Ideologia da Cultura Brasileira" (1977) e, com Adriana Lopez, em "História do Brasil -  Uma Interpretação" (2008), Mota desenvolveu carreira profundamente voltada à história das mentalidades.

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Em sua exposição, ele traçou a trajetória da disciplina ao longo do século 20, relatou como ela o interessou e o impregnou  ("agora pretendo sistematizar um pouco esse vínculo") e lembrou a presença desse tipo de estudo nos primeiros anos do IEA, quando uma das áreas centrais se chamava História das Ideologias e Mentalidades e era coordenada por ele e pelo professor e crítico literário Alfredo Bosi, integrante do conselho do Instituto à época.

Para exemplificar a importância que a área tinha naquela época, Mota mencionou diversos pesquisadores, intelectuais e artistas convidados a proferir conferências, participar de seminários e tornar-se professor visitante, entre os quais Raymundo Faoro, Manuel Moreno Fraginals, Antonio Candido, Fernando Novaes, Marc Ferro, José Paulo Paes, Jacob Gorender, Hans-Joachin Koellreuter, Michel Vovelle, Octavio Ianni, Michel Debrun e Florestan Fernandes.

Mas qual seria a matriz originária da história das mentalidades? Para Mota, seria possível remontar aos gregos antigos via "Paideia - A Formação do Homem Grego", obra enciclopédica do helenista alemão Werner Jeager publicada em três volume entre 1933 e 1944.

“Estamos inventando conceitos e precisamos saber qual nome os gregos davam a isso que achamos que estamos descobrindo. Basta ler a obra clássica de Jaeger, onde já estão todos os conceitos, se não bem, mais ou menos definidos. É o caso das definições de natureza, história, arte, filosofia, educação, beleza, honra, sociedade, areté, tecné e physis. Esse instrumental vai ser redescoberto por Lucien Fevbre e outros pensadores e nós até hoje operamos com ele."

Capa de "Ideologia da Cultura Brasileira"
Capa da 1ª edição (1977) de "Ideologia da Cultura Brasileira", um dos destaques da produção de Mota

Mas os dois fundadores da disciplina, "por valorizarem as mentalidades, além da economia e a política", foram realmente Lucien Febvre e Marc Bloch, que em 1929 fundaram a École des Annales, que se tornou uma referência mundial. "Fevbre se dedicou à descrença do século 16 e aos quadros mentais e religiosos da época; Bloch estudou em profundidade o sistema feudal."

Na opinião de Mota, os sucessores da École des Annales foram Fernand Braudel, com suas análises dos tempos históricos a partir do estudo do Mar Mediterrâneo e propondo abordagens inter, multi e transdisciplinares, e Ernest Labrousse ("menos comentado que Braudel, porém mais sólido”), que estudou a eclosão das várias revoluções na França a partir da análise da variação dos salários e dos preços de 23 gêneros de primeira necessidade, como o trigo.

Outros expoentes da área citados por Mota são Jacob Burckhardt ("'A Civilização do Renascimento na Itália', especialmente o capítulo 'O Estado como Obra de Arte'”), e mais especialmente Johan Huizinga (“Outono da Idade Média”, “Homo Ludens”, “Erasmo”). Como referências mais recentes, mencionou Denis Crouzet, "em seus estudos sobre a história social e as manifestações religiosas", e Michel Vovelle, ápice do desenvolvimento da disciplina com o livro "Ideologias e Mentalidades", publicado em 1982.

[Michel Vovelle  esteve duas vezes no IEA, a primeira em 1987, quando fez a conferência "L'Historiographie de la Révolution Française a la Veille du Bicentenaire" (A Historiografia da Revolução Francesa às Vésperas do Bicentenário), cuja íntegra foi publicada em francês na primeira edição da revista "Estudos Avançados", no final daquele ano. Em setembro de 1989, ele fez a conferência de abertura do Colóquio 1789 - Sombras e Luzes e contribuiu com o artigo "A Revolução Francesa e seu Eco" para a edição nº 6 de "Estudos Avançados".]

No caso brasileiro, Mota disse que é costume citar apenas Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda quando se fala dos principais intelectuais do período, agora chamados de "interpretes do Brasil", mas outros personagens importantes não são lembrados. Entre estes ele destaca o crítico, ensaísta e tradutor Sérgio Milliet, "interlocutor de Mário de Andrade, diretor da Biblioteca Municipal Mário de Andrade durante décadas e depois secretário da USP, universidade que ele ajudou a criar, ao lado de Caio Prado Jr. e Paulo Duarte".

Mota citou uma frase em que Milliet demonstra sua preocupação com a mentalidade de cada momento histórico: “Nada mais útil e eficaz que apreender as passagens (...). No processo de mudança da mentalidade coletiva o que importa é penetrar os momentos de indecisa complexidade” [a respeito do Renascimento, no livro "Quatro Ensaios", de 1966].

"Os dez volumes do 'Diário Crítico' dele são fantásticos, merecem ser visitados. Há textos sobre literatura, história, crítica da cultura, arte moderna. Não entendo até hoje porque ele permanece num ligeiro limbo, com exceção da avaliação de Antonio Candido, que o considerava um 'homem-ponte' entre a sua geração e a dele, Candido, que incluía Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado e outros."

De acordo com Mota, Gilberto Freyre estava em boa sintonia com a École des Annales. No caso de Caio Prado Jr., "se lido com olhos de quem quer entender as mentalidades e ideologias, sobretudo no caso do livro 'Formação do Brasil Contemporâneo', é possível ver o quanto ela já propunha bases para se pensar as mentalidades”. Em Sérgio Buarque de Holanda, ele vê “pura e densa história das mentalidades” na obra “Visões do Paraíso”.

Alberto Luiz da Rocha Barros e Carlos Guilherme Mota no início do IEA
Mota (à frente) e Alberto Luiz da Rocha Barros (1930-1999), dois dos cofundadores do IEA, em foto de 1987 diante do então Edifício da Antiga Reitoria, onde o Instituto foi instalado

Mota coloca como sucessores (e inovadores) dos três “interpretes” Celso Furtado, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e Antonio Candido, "todos com abordagens multi e interdisciplinares".

Ele disse que surgiu com essa geração a cultura de operar com conceitos, e reelaborá-los. “Florestam Fernandes, por exemplo, teve um papel muito importante para definir, no caso do Brasil, o que é estamento, classe e casta numa época em que englobávamos tudo no termo genérico sociedade."

Na perspectiva de um historiador das mentalidades e ideologias, Mota indaga “que significados pode ter refletir sobre história hoje, nesta etapa do processo civilizatório que se assiste em nosso país, quando  nos vemos (ainda que não cultivemos uma visão apocalíptica) diante senão do colapso ao menos da falência de um conjunto de valores científicos, sociais e políticos, valores que fundamentavam até há pouco tempo as produções culturais, as reflexões político-econômicas e os projetos sociais?".

Há conjunturas em que conceitos densos, como os de democracia e sociedade civil, por exemplo, perdem significado, segundo ele. "Reduzem-se a formas ocas e abrem espaço para totalitarismos de todos os tipos, inclusive religiosos, como alertava Hanna Arendt.”

Mota destaca que é preciso identificar que balizas históricas podem orientar a crítica da cultura: "Após tantas ondas de revisão de 'paradigmas' e modas, baseados em quais fundamentos teóricos-filosóficos podemos hoje nos orientar para propormos a instauração de uma nova, ou supostamente nova, crítica historiográfica, disciplina fundamental abandonada no último meio século”.

Segundo ele, os estudos de história e de humanidades foram marcados pelo historicismo positivista, marxismo, liberalismo, funcionalismo, economicismo, quantitativismo, ideologia da globalização, desconstrucionismo, desenvolvimento sustentável, pós-modernidade e outras correntes e modas intelectuais. "Deveríamos lembrar do que dizia Milton Santos aqui no Instituto: 'É preciso não confundir a moda com o modo; voltemos aos clássicos'."

Para Mota, é fundamental que as ciências sociais voltem a trabalhar com conceitos básicos, entre os quais os de tempo (“duração nos diferentes níveis de temporalidade”), estrutura, processo, sistema, historicidade, perspectiva, cultura, civilização e territorialidade.

Foto (a partir do alto): 1) Leonor Calasans/IEA-USP; 2) e 3) Arquivo do IEA-USP