Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / As políticas culturais como pré-requisito para o desenvolvimento da América Latina

As políticas culturais como pré-requisito para o desenvolvimento da América Latina

por Mauro Bellesa - publicado 09/10/2015 10:55 - última modificação 28/01/2016 10:44

O historiador e politólogo uruguaio Gerardo Caetano fez a conferência "As Políticas Culturais com Variável Indispensável do Desenvolvimento", no dia 22 de setembro.
Gerardo Caetano e Teixeira Coelho
O conferencista Gerardo Caetano (à esq.)
e o debatedor José Teixeira Coelho Netto

O historiador e politólogo uruguaio Gerardo Caetano defende transformações que reconheçam a importância da cultura para o desenvolvimento e adoção de um pacto antiprovincianismo. Para ele, todavia, a análise das instituições e políticas culturais na América Latina exige o exame prévio dos impactos da globalização na região.

Caetano apresentou suas idéias na conferência As Políticas Culturais como Variáveis Indispensáveis ao Desenvolvimento, no dia 22 de setembro. O debatedor convidado foi José Teixeira Coelho Netto, professor emérito da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. O diretor do IEA, Martin Grossmann, também participou do debate.

Coordenador do Observatorio Político del Instituto de Ciencia Política da Universidade de La República, Uruguay, Caetano recorreu às concepções de três acadêmicos  latino-americanos para caracterizar os impactos da globalização na região.

O primeiro que mencionou foi o sociólogo brasileiro Renato Ortiz, da Unicamp, que defende uma distinção entre mundialização da cultura e globalização econômica, "com a advertência de que não se deve confundir diversidade com pluralismo".;

No caso do filósofo chileno Martín Hopenhayn, Caetano destacou suas diversas visões sobre a questão, entre elas a de que "a globalização destrói a integração social e regional, além de corresponder a um Big Bang de imagens num mundo que se contrai enquanto o visual explode".

O terceiro autor citado pelo conferencista é o antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini, que questiona a equivalência entre globalização e homogeneização. Canclini também adverte, segundo Caetano, sobre caminhos que julga perigosos, como o “atrincheiramento no fundamentalismo latino-americanista” ou "o limitar-se a exportar o melodrama folclórico”.

PROBLEMAS

Traçado esse cenário, Caetano passou à identificação de temas e posturas presentes na agenda de impactos culturais que se sobrepõe ao pano de fundo da globalização, com reflexos na institucionalidade cultural.

Relacionado

Midiateca

Notícia

Uma dessas questões, segundo ele, é a dificuldade para resgatar a história das políticas culturais. “Um momento de ‘presente contínuo’ exige mais e melhor história, entre outras coisas para qualificar melhor o que é novo e para perseguir melhor as demandas prospectivas”.

Outra necessidade é o exame das redes de conexões que “definem desencontros e afinidades que demarcaram e ainda condicionam a configuração do próprio e do externo, do que é nacional e do que é universal no campo cultural”.

Caetano defende o aprofundamento do debate sobre o papel do Estado como autor e promotor de políticas culturais e a consequente análise da delimitação precisa do alcance dessa ação, das tensões com a lógica do mercado, da reconfiguração das novas dimensões públicas não estatais e do reconhecimento do foco criador das redes comunitárias em suas diversas variantes.

Ele disse que os atores e estudiosos da política cultural demoraram a se dar conta da relevância econômica das atividades culturais e que é preciso repensar esse aspecto em profundidade, dada a importância do setor para a geração de empregos, a criação de empreendimentos empresariais e mesmo a diversificação da pauta de exportações, além de ser preciso considerar as necessidades de financiamento e de subsídio governamental.

Em seu entender, outra questão que merece análise é a da chamada cultura popular. Para ele, “é preciso evitar tanto a tentação populista, sempre presente, quanto as visões elitistas e vanguardistas – no pior sentido da palavra –, assumidas ou encobertas”.

Caetano identifica também um severo problema de comunicação e intercâmbio entre atores da cultura a respeito de conceitos definidores na discussão de políticas culturais, como nos conceitos sobre arte, identidade, povo, nação, imaginário, vanguarda, mundo, tradição, conceito geracional, contemporaneidade, público e até mesmo sobre o próprio conceito de cultura.

Ele vê ainda a necessidade de maior debate sobre o planejamento e iniciativas específicas no terreno das políticas e instituições culturais, com a devida consideração de demandas, propostas, balanços institucionais e tensões entre participação, descentralização e representação, entre outros fatores.

PROPOSTAS

Para Caetano, as políticas culturais continuam sendo – “e talvez o sejam mais do que nunca” – uma variável indispensável de desenvolvimento.  Ele avalia como "muito bom" o fato de se voltar a falar de desenvolvimento na América Latina, “ainda que em contextos desafiadores, mutáveis, de bonanças que rapidamente derivam em condicionamentos recessivos em alguns países e em outros esfriam certas expectativas excessivamente otimistas”.

A retomada desse tema é importante, segundo ele, porque é preciso construir políticas num cenário em que o Estado não pode mais o que podia. “O tema volta a ser que Estado e instituições públicas queremos e necessitamos, como construir uma política moderna e perfeitamente integradora que não seja estadocêntrica.”

“Isso nos leva a repensar a dimensão das políticas culturais em termos de vetores sociais, sobretudo se queremos que elas também compreendam um novo enfoque da cidadania, com uma forte aposta na organização independente."

Caetano relacionou uma série de questões que considera em aberto. Uma delas é a incerteza quanto a possibilidade de pensar sobre os rumos da cultura e das políticas culturais num contexto de globalização sem saber a que regras materiais está submetida a produção cultural.

Outras dúvidas são: como ampliar a promoção das obras culturais sem conhecer as condições efetivas do mercado regional e internacional? como pensar a cultura sem saber o que ela produz em termos de construções econômicas, sociais e simbólicas? como pensar nos problemas dos trabalhadores da cultura se eles não se reconhecem como tais?

PROVINICIANISMO

Como antídoto ao provincianismo, Caetano sugere algumas medidas. A primeira delas e acabar com a visão de que as sociedades latino-americanas são superdiagnosticadas e que precisam de propostas, não de novos diagnósticos. “No campo da cultura e das políticas culturais há muito o que pesquisar, em alguns casos, pela primeira vez.”

Do mesmo modo, deve ser evitado “o atalho perigoso e pernicioso da tabula rasa, dos impulsos refundadores, do começar tudo de novo a partir de um momento estelar da história, visto como revolução ou como reconstrução do vínculo entre o povo e a nação, pois a cultura acumulativa por definição, nunca é um afresco instantâneo, mas algo que, goste-se ou não, é construído de tradições”.

Diante desse quadro, ele sublinha urgência na adoção de "políticas culturais ativas, com empuxos reformadores, com uma forte reivindicação do espaço da política, mas sem cair numa política populista que não elege, não seleciona; precisamos de políticas ativas e de seleção rigorosa".

Caetano disse que as políticas de seleção levantam algumas perguntas: quem define os critérios de seleção numa construção genuinamente democrática? quem define o que se deve subsidiar, por exemplo? como se constrói e se implementa a coleção patrimonial que sempre é imprescindível? Para responder a essas questões, ele julga essencial que se considere um dos princípios teóricos clássicos da democracia: “A democracia nunca pode ser concebida como uma cultura, pois desde suas origens tem sido um pacto de culturas”.

Finalmente, Caetano defendeu a adoção de uma genuína vocação antiprovinciana, com ênfase na flexibilidade, no conhecimento, na inovação, na capacitação de recursos humanos e na profissionalização da gestão. Um exemplo de atitude de outra área destacado por ele como algo que poderia ser adaptado às políticas culturais é o de “alfaiate tecnológico” (“sastre tecnológico”, em espanhol), postura adotada em ciência e tecnologia que consiste em interpretar um problema e construir uma solução específica para quem ela se destina. “Isso deveria valer para o desenho desafiante de novas instituições e políticas culturais genuinamente renovadas, efetivamente distanciadas do problema do provincianismo.”

DEBATE

Ao comentar a exposição de Caetano, José Teixeira Coelho Netto disse que muitos especialistas argumentam que para o desenvolvimento exige não apenas condições básicas estruturais, como recursos minerais, terras agriculturáveis, infraestrutura etc., mas também condições imateriais, entre as quais a cultura.  “Será que o Brasil tem a condição cultural necessária para isso?”, indagou.

Teixeira Coelho acrescentou que o político francês Alain Peyrefitte (1925-1999) disse que não há desenvolvimento se não há confiança (nas instituições, escolas, partidos etc.), “e é bastante provável que ele tinha razão”.

Teixeira Coelho afirmou não estar mais preocupado com a questão da distribuição da cultura, mas sim com a implementação de condições estruturais, “como a confiança e outros elementos que nos possibilitem alcançar o desenvolvimento”. Quis saber do expositor como é possível criar as condições culturais para que o desenvolvimento aconteça.

Caetano respondeu que a América Latina é um exemplo de que não bastam condições estruturais para o desenvolvimento, uma vez que é uma região importante em algumas áreas decisivas, como na de produção de alimentos, na biodiversidade e na de reservas de água doce, além de possuir uma base de produção de energia, renovável e não renovável, e minérios estratégicos, como cobre, ferro e lítio.

Ele lembrou que “os modelos extrativistas de esquerda e de direita” tiveram um grande crescimento nos últimos dez anos, fruto dos preços das commodities e do crescimento da China e da Índia. No entanto, o crescimento é necessário, mas não basta para uma sociedade mais igualitária, em sua opinião: “Faltaram convicções, dimensões culturais nas políticas de desenvolvimento”.

Caetano também concordou com a necessidade de confiança, lembrando que a América Latina é o continente mais violento de todos.

Martin Grossmann questionou a importância conferida por Caetano à questão do desenvolvimento, sugestão que julga anacrônica, “pois no Brasil, o desenvolvimentismo está associado com os militares, apesar dos vínculos com a era Vargas e o governo de Juscelino Kubitschek”.

Para Caetano, falar de desenvolvimento na América Latina hoje não é anacrônico: “Essa ideia sempre esteve presente no Brasil, ao passo que no Uruguai, Argentina e Chile fazia 30 anos que não se falava de desenvolvimento”.

Teixeira Coelho comentou que a ideia de política cultural surgiu no século 18 para responder a duas questões: a defesa do Estado (por meia da afirmação de uma identidade nacional, por exemplo) e a redução da escassez de bens culturais. “A ideia de o Estado defender a si mesmo não tem mais sentido e não há mais escassez de bens culturais, então, para que serviria a política cultural?”

Caetano argumentou que na América Latina há lugares com um déficit de Estado gigantesco e que “não há risco de voltarmos a políticas culturais dirigistas”.

Foto: Leonor Calazans/IEA-USP