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O esforço para estruturar uma ciência fragmentada

por Flávia Dourado - publicado 19/11/2013 21:35 - última modificação 02/04/2014 14:57

Em entrevista ao IEA, Jerry Hogan fala sobre o movimento de fragmentação da etologia em diversas subáreas e explica a proposta do livro que está escrevendo na sua estada como professor visitante do Instituto.
Jerry Hogan
“Já que meus interesses são muito abrangentes, frequentemente sou confrontado com más interpretações e controvérsias”

Ao longo de sua carreira, Jerry Hogan vem observando um processo de fragmentação da sua área de estudo em diversas subáreas. Pesquisador do comportamento animal há mais de 50 anos, atualmente o professor emérito do Departamento de Psicologia da University of Toronto, Canadá, tem se concentrado em combater o que considera ser um efeito colateral desse movimento de especialização da etologia: a redução da comunicação entre cientistas e o consequente aumento das controvérsias entre grupos de subáreas diferentes.

Segundo o etólogo, fazer frente a esse problema requer uma obra transversal e abrangente, que ofereça um referencial teórico unificado para estudar o comportamento animal e humano. E é esse o objetivo de “The Study of Behavior" ("O Estudo do Comportamento"), livro que Hogan está escrevendo durante sua estada como professor visitante do IEA. A ideia do trabalho é sistematizar conceitos e resultados obtidos pelas diversas especialidades da etologia e, assim, abrir espaço para uma maior interlocução entre pesquisadores e para o surgimento de novos insights na área.

Na entrevista a seguir, concedida à jornalista Flávia Dourado, Hogan faz uma retrospectiva do surgimento da etologia e das origens do movimento de fragmentação da área, fala sobre a importância da comunicação entre as especialidades do estudo do comportamento animal e explica a proposta do livro ao qual vêm se dedicando.

Por que é preciso integrar, a partir de um único enquadramento, conceitos e fatos de várias subáreas da etologia?

No final do século 19 e início do século 20, quando o estudo do comportamento ainda estava começando, foram propostos inúmeros conceitos e ideias para pensar essa nova área do conhecimento. Na psicologia, particularmente na América do Norte, muitas dessas ideias se fundiram em um campo chamado behaviorismo, que estava preocupado com problemas relacionados à aprendizagem. Na biologia, especialmente na Europa, essas ideias se aglutinaram em torno de um campo chamado etologia, que estava interessado no comportamento de animais em seu habitat natural. Para esses primeiros etólogos, o instinto consistia em um dos conceitos mais importantes.

Posteriormente, em meados do século 20, muitos cientistas comportamentais se voltaram para a relação entre aprendizado e instinto, e em 1970 o etologista inglês Robert Hinde publicou o livro “Animal Behavior: A Synthesis of Ethology and Comparative Psychology” ["Comportamento Animal: Uma Síntese da Etologia e Psicologia Comparada" ]. O autor fez um excelente resumo da literatura dos dois campos, mas não chegou a oferecer um enquadramento geral, de modo que psicólogos e etólogos continuaram tendo dificuldades para entenderem uns aos outros.

No final do século 20, muitos psicólogos deixaram de se interessar pelos processos de aprendizagem e começaram a estudar os processos cognitivos ou as questões econômicas. Ao mesmo tempo, os etólogos se tornaram ou mais moleculares [referência à biologia molecular, que se concentra no estudo da fisiologia e dos genes] – levantando questões relativas à neuropsicologia e genética –, ou mais interessados em ecologia e temas relacionados a populações [relativos ao estudo de grupos de animais]. Em ambos os casos, a compreensão do comportamento do animal individual ficou comprometida.

Além disso, os cientistas comportamentais fazem diferentes tipos de indagações sobre o comportamento, referentes a causas e conseqüências ou ao desenvolvimento e à evolução de um comportamento em particular. E muitas das controvérsias correntes na literatura da área surgem porque muitos pesquisadores não percebem que estas questões são complementares, e não excludentes.

Que enquadramento geral seria esse, capaz de fazer frente a uma tal fragmentação?

O enquadramento que estou propondo deriva de um quadro da etologia clássica, mas é bem mais amplo e pode incorporar facilmente conceitos e dados da psicologia experimental, neuropsicologia e biologia evolutiva. Sua principal característica é enfatizar a definição de partes do comportamento — relacionadas a padrões e percepções de comportamento — e a organização dessas partes em torno de um sistema de comportamento. Em outras palavras, o enquadramento começa pela definição da estrutura do comportamento. A partir de uma concepção consistente de estrutura, é possível ver como essas partes do comportamento são ativadas, quais são as conseqüências de sua ativação, como se desenvolveram, além de investigar sua evolução.

Por que a comunicação entre as diversas subáreas da etologia é tão importante? Que problemas decorrem de falhas nessa comunicação?

A comunicação entre subáreas é tão importante porque soluções para problemas que interessam a um grupo de cientistas frequentemente requerem conhecimentos já dominados por outros grupos. Exemplo: que questões seriam levantadas por diferentes especialidades diante do fato de que muitas espécies de pássaros mostram padrões anuais de migração? Os ecologistas indagariam qual é o padrão anual de disponibilidade de comida ou de locais apropriados para fazer ninhos em áreas utilizadas por uma espécie em particular. E as respostas obtidas poderiam explicar por que os pássaros migram em certas épocas do ano e por que escolhem habitats específicos para alimentação e construção de ninhos. Mas, se o interesse fosse entender como os pássaros são capazes de voar por distâncias tão longas, seria necessário investigar a fisiologia das espécies. E se o interesse fosse compreender como os pássaros sabem para onde voar e como reconhecem o habitat apropriado quando chegam, seria preciso buscar informações sobre capacidades sensoriais e habilidades perceptivas das espécies. E essas informações poderiam ser obtidas tanto com etólogos quanto com psicólogos.

O senhor poderia dar um exemplo de um conceito constituído em uma subárea e que vem sendo mal interpretado por outra subárea, de algum caso de controvérsia que tenha sido gerada a partir dessa interpretação incorreta ou de algum episódio em que a falta de comunicação tenha dificultado avanços na área?

As controvérsias surgem quando, por exemplo, um grupo de cientistas afirma que os pássaros migram porque precisam de diferentes habitats para se alimentarem e fazerem ninhos, enquanto outro grupo defende que os pássaros migram porque períodos prolongados de luz estimulam hormônios que lhes dão a energia necessária para vôos longos. Ambas as hipóteses são verdadeiras e necessárias para o entendimento do porquê os pássaros migram. Historicamente, uma das maiores controvérsias na etologia é sobre se um comportamento particular deve ser considerado inato ou aprendido. Muitos etólogos americanos e ingleses sustentavam que todo comportamento requer experiência para se desenvolver, o que enfraqueceu o conceito de instinto no estudo do desenvolvimento. Por outro lado, muitos etólogos da Europa continental insistiam que o conceito de inato era útil e necessário. Nesse caso, a controvérsia surgiu de divergências na definição da palavra “inato” e na escolha dos problemas de pesquisa pelos dois lados.

Qual é a especialidade do senhor no campo da etologia? Porque decidiu desenvolver um trabalho voltado para a integração de todas as áreas?

Minha pesquisa e meus interesses estão voltados para o entendimento da estrutura, da motivação e do desenvolvimento do comportamento. Tenho usado peixe tropical, um tipo de peixe de aquário, e o junglefowl, um ancestral selvagem das galinhas domésticas, como meus primeiros modelos de estudo dessas questões. Optei por uma espécie selvagem porque acreditava-se que seu comportamento seria mais "natural", mas, na verdade, não há muita diferença entre o junglefowl e a maioria das raças domésticas. Com base na observação desses animais, tenho investigado comportamentos agressivos, de alimentação, higiene, sono e medo, incluindo os efeitos dos ritmos circadianos em tais comportamentos. E, já que meus interesses são muito abrangentes, frequentemente sou confrontado com más interpretações e controvérsias como a que mencionei.

De acordo com o seu projeto, o livro não foi pensado como uma obra de revisão da literatura ou um compêndio. Como ele deve ser entendido?

A proposta é apresentar minhas ideias sobre o comportamento. Embora eu venha citando artigos pertinentes que oferecem evidências para essas ideias, o livro não será uma revisão de literatura. Mas, mesmo não sendo um compêndio no sentido estrito, espero que proporcione material para discussão em seminários de graduação e entre cientistas profissionais.

O livro será voltado para especialistas do campo do comportamento ou será acessível também ao público leigo?

O livro deverá ser acessível ao público leigo, mas acho que só despertará o interesse de quem se dedica a refletir sobre os temas discutidos.

Como as contribuições dos estudantes para os quais tem lecionado serão incorporadas ao livro?

Acabei de dar um seminário de graduação sobre o tema do livro e as reações dos estudantes têm sido muito úteis em muitos aspectos. Ficou claro para mim que alguns dos tópicos são mais interessantes para os estudantes do que outros, e também que algumas ideias são particularmente difíceis de entender. Vou usar as reações observadas para melhorar a apresentação desses vários tópicos enquanto escrevo.

 

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