Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Lições de Mariana não foram aplicadas em Brumadinho, dizem especialistas

Lições de Mariana não foram aplicadas em Brumadinho, dizem especialistas

por Victor Matioli - publicado 25/02/2019 16:30 - última modificação 25/02/2019 17:41

No dia 25 de janeiro deste ano, a indústria de mineração causou o segundo desastre ambiental de grandes proporções em um intervalo de menos de quatro anos. No evento "Brumadinho Pós-Mariana: Lições Não Aprendidas" especialistas de diversas áreas do conhecimento se reuniram no IEA para discutir as tragédias e o futuro na mineração no Brasil.
Mesa Brumadinho Pós-Mariana
Da esquerda para a direita: Leandro Luiz Giatti, Pedro Jacobi, Luis Enrique Sánchez, Evangelina Vormittag, Pedro Luiz Côrtes e Alexandre Orlandi Passos

No dia 25 de janeiro deste ano, a indústria de mineração causou o segundo desastre ambiental de grandes proporções em um intervalo de menos de quatro anos. O rompimento da Barragem 1 da empresa Vale, na cidade de Brumadinho (MG), já deixou 179 mortos e outros 131 desaparecidos, de acordo com a Defesa Civil de Minas Gerais. Em novembro de 2015, a Barragem de Fundão, em Mariana (MG), gerida pela mineradora Samarco, também rompeu e causou o maior desastre ambiental da históra do Brasil. Lá, 19 pessoas morreram em decorrência do rompimento.

Três anos, dois meses e 20 dias separam as duas tragédias. A proximidade dos fatos gerou revolta na sociedade, mas especialmente entre pesquisadores e especialistas em mineração. Pedro Roberto Jacobi, professor do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP e coordenador do Grupo de Estudos Meio Ambiente e Sociedade do IEA, acredita que os rompimentos são “desastres anunciados” e precisam ser enxergados pela população como crimes ambientais.

Relacionado

Fotos | Vídeo

Notícia

As lições do desastre ambiental de Mariana

Jacobi foi um dos expositores do evento Brumadinho Pós-Mariana: Lições Não Aprendidas, realizado no IEA no dia 15 de fevereiro para debater o tema sob uma perspectiva interdisciplinar, com apresentações de pesquisadores de diversas áreas. Participaram também Pedro Luiz Côrtes, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Evangelina Vormittag, idealizadora do Instituto Saúde e Sustentabilidade, Bruno Milanez, professor do Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Luis Enrique Sánchez, professor da Escola Politécnica (EP) da USP, Alexandre Orlandi Passos, mestre em Engenharia de Mineração pela EP-USP, e Leandro Luiz Giatti, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e moderador do encontro.

“Vivemos em uma sociedade de riscos; alguns deles incontroláveis, mas outros produzidos pela própria sociedade”, afirmou Jacobi. Para ele, as catástrofes de Mariana e Brumadinho fazem parte deste último grupo, criado pela lógica do sistema capitalista de produção, que constrói relações perversas entre interesses políticos e econômicos, segundo ele. O professor acredita que a receita para o desastre se completa com o desapreço natural dos homens pelos cuidados preventivos: “Somos uma sociedade solidária nas tragédias, mas pouco atenta à prevenção”.

Pedro Roberto Jacobi
Pedro Jacobi: “Vivemos em uma sociedade de riscos; alguns deles incontroláveis, mas outros produzidos pela própria sociedade”

Causas técnicas e políticas

Dados precisos sobre as causas do desastre ainda são escassos. No entanto, os pesquisadores lembraram que os esforços com buscas e cuidados imediatos com as vítimas não fatais são mais importantes no momento e demandam maior atenção das autoridades. De acordo com Bruno Milanez, por ser a Vale uma empresa consideravelmente maior e mais complexa que a Samarco, o acesso a dados e informações sobre suas operações acaba sendo dificultado.

Apesar da ausência de confirmações oficiais, Pedro Luiz Côrtes explicou as causas do rompimento sob o ponto de vista geotécnico. Segundo ele, os rejeitos sofreram um processo físico conhecido como “liquefação”, no qual a movimentação das partículas sólidas permite que a água se desloque e funcione como um lubrificante para outras partículas. Durante o rompimento, os rejeitos, que quando parados se comportam como um corpo sólido, passaram a apresentar o comportamento de um fluido e se deslocaram violentamente.

Côrtes contou ainda que a empresa Tüv Süd, responsável pelo último relatório de segurança apresentado à Vale, em agosto de 2018, registrou um Fator de Segurança (FS) de 1,09 para a Barragem 1. Segundo ele, isso significa que, em alguns pontos, a estrutura apresentava resistência somente 9% superior ao valor limite suportado, o que é extremamente baixo. Apesar disso, o relatório da Tüv Süd concluiu que a Barragem 1 se encontrava “estável quanto à liquefação do rejeito”. “Como eles puderam considerar que as condições de segurança estavam adequadas com um Fator de Segurança tão baixo?”, questionou. “Isso mostra que o desastre de Mariana não gerou nenhum impacto positivo nos procedimentos adotados internamente pela Vale.”

Para Milanez, os reais motivos deste tipo de desastre são políticos. Para justificar sua visão, ele apresentou um estudo, realizado por dois pesquisadores canadenses (Davies e Martin), que constrói uma relação causal entre a variação de preços do minério no mercado internacional com a ocorrência dos rompimentos de barragens.

De acordo com o trabalho, em momentos de elevação dos preços, observa-se também um aumento da urgência dos procedimentos de licenciamento e de execução das obras de infraestrutura, além de um aumento nos custos operacionais. Em momentos de redução dos preços, por outro lado, os pesquisadores observaram maior pressão pela redução dos custos operacionais, que não raramente impulsionavam o corte de gastos em manutenção e segurança. “De modo geral, os pesquisadores concluíram que o risco de rompimento de barragens é superior em momentos de queda de preço do minério”, explicou Milanez.

Segundo ele, a lógica proposta pelos pesquisadores se encaixa perfeitamente no caso do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, que aconteceu justamente após uma forte queda no preço da commodity iniciada em 2005. Outro fato que comprova as raízes políticas e econômicas do desastres, segundo Milanez, é uma alteração na legislação estadual mineira que enfraqueceu e deixou mais permissiva a fiscalização da atividade mineradora. A mudança foi aprovada em 2016, mesmo depois do rompimento da barragem de Mariana.

Tal avaliação dos fatos levam Milanez a citar Erica Schoenberger, engenheira ambiental da Universidade Johns Hopkins, que no artigo Environmentally sustainable mining: The case of tailings storage facilities, de 2016, escreveu: “Embora o design e construção das barragens de rejeitos seja um desafio técnico, a causa básica de suas falhas são políticas, não técnicas”.

Tragédia em Brumadinho 2
Bombeiro buscando sobreviventes em Brumadinho - Foto: Corpo de Bombeiros de Minas Gerais

Lições de Mariana para a saúde de Brumadinho

Com mais de cem desaparecidos e parte da cidade ainda tomada pela lama, já é possível afirmar que o desastre de Brumadinho é o rompimento de barragem que mais fez vítimas no mundo. Além das mortes, há danos para a saúde de quem sobreviveu, que, ao menos em parte, já podem ser previstos. Evangelina Vormittag acredita que alguns dos ensinamentos adquiridos em Mariana podem ajudar a remediar parte dos danos dessa nova tragédia. “Todas as repercussões futuras na saúde da população de Brumadinho podem ser evitadas ou tratadas de uma outra forma”, garantiu.

Ela coordenou, em julho de 2016 — oito meses depois do rompimento da Barragem de Fundão —, um estudo sobre a saúde da população da cidade de Barra Longa, vizinha de Mariana. Com somente seis mil habitantes, Barra Longa foi a única das 40 cidades atingidas que teve seu perímetro urbano invadido pela lama proveniente da barragem. Segundo a pesquisadora, a necessidade de limpeza do centro da cidade e a movimentação da lama fez com que os moradores tivessem um contato muito intenso com componentes tóxicos.

A contaminação se deu por três vias principais: pelo contato físico com a lama; pelas vias aéreas, em constante contato com a poluição do ar; e pela ingestão de alimentos plantados em regiões contaminadas, contou Evangelina. Alergias, problemas respiratórios e transtornos mentais foram os distúrbios mais observados pelo grupo de pesquisa. Perguntados sobre os principais sintomas apresentados, os moradores ressaltaram dor de cabeça, tosse, dor nas pernas, ansiedade, coceira, alergia na pele e abatimento. No total, 35,5% afirmaram que sua saúde piorou desde o desastre e 43,5% afirmaram ter tido algum problema de saúde no período.

Leandro Luiz Giatti
Leandro Giatti: “Existe uma questão elementar de concentração de poder pela forma de se apropriar de ciência e tecnologia”

Pouco menos de um ano depois da primeira pesquisa, em março de 2017, Evangelina conduziu um novo estudo, desta vez analisando a contaminação dos moradores de Barra Longa por metais. Somente 16 amostras foram coletadas, o que, segundo a própria pesquisadora, não é suficiente para comprovar uma contaminação generalizada. Os resultados da análise, entretanto, são sugestivos: os 16 pacientes apresentaram intoxicação por níquel; 13 por arsênio; e 8 por cromo. “Há evidências de intoxicação, sobretudo por níquel, mas o estudo precisa ser ampliado”, afirmou. De acordo com a pesquisadora, todos os pacientes também apresentaram uma deficiência de zinco, que geralmente é associada a problemas de desenvolvimento fetal.

Outro aspecto que compromete sensivelmente o tratamento dos atingidos pela tragédia de 2015 é a falta de amparo por parte da empresa responsável pela barragem. A Fundação Renova, criada para reparar e gerir os danos causados pelo rompimento da barragem de Mariana, só assume os custos dos tratamentos de saúde de pessoas diretamente atingidas pelo desastre. Evangelina ressaltou, entretanto, que os prejuízos à saúde da população foram gerais e acometeram também os cidadãos que não foram atingidos diretamente pela lama. Este grupo de pessoas permanece desamparado pela Fundação “até que se apresente uma relação causal entre os problemas de saúde e o rompimento da barragem”. Evangelina acredita que o ônus dessa comprovação deve ser da empresa, não dos atingidos.

Mesmo com impacto ambiental significativamente menor, a pesquisadora acredita que a saúde mental dos moradores de Brumadinho será largamente mais prejudicada do que a dos de Mariana, por conta do grande número de vítimas da tragédia mais recente.

O moderador do encontro, Leandro Luiz Giatti, argumentou que um dos mais graves problemas enfrentados pelas populações atingidas por este tipo de catástrofe é a exclusão cognitiva. Ele lembrou o economista português Boaventura de Sousa Santos ao afirmar que “não há justiça social global sem que haja também justiça cognitiva”. Segundo Giatti, isto quer dizer que o problema da exclusão social não é somente que aos mais pobres ficam reservados os piores empregos, salários e moradias, mas que o pensamento destas pessoas não tem espaço entre os tomadores de decisões. “Existe uma questão elementar de concentração de poder pela forma de se apropriar de ciência e tecnologia”, disse.

Evangelina Vormittag
Evangelina Vormittag: “Todas as repercussões futuras na saúde da população de Brumadinho podem ser evitadas ou tratadas de uma outra forma”

Impactos ambientais

Morte de animais, proliferação de insetos que causam doenças e rios contaminados são algumas das consequências ambientais de tragédias como as de Mariana e Brumadinho. Segundo o professor Côrtes, a lama, principalmente depois de seca, promove uma forte impermeabilização do solo e mata a camada superficial biologicamente ativa. Como consequência, a germinação e o florescimento de espécies nativas ficam prejudicados e pode haver falta de alimentos para a fauna da região. A ausência de alimento pode causar morte e migração de animais. Há também uma maior proliferação de insetos, inclusive os transmissores de doenças para seres humanos, como o mosquito Aedes aegypti.

A devastação causada pelos rejeitos da mineração também tem um alto potencial de destruição para os recursos hídricos das regiões atingidas. Assoreamento dos cursos d’água, soterramento de nascentes, turbidez dos rios, redução da oxigenação e da quantidade de luz penetrante dos rios, mortandade da flora e fauna em rios e lagos e modificação da morfologia da região e da capacidade de drenagem dos rios são as consequências mais comuns, de acordo com Côrtes.

Como consequência do desastre de Mariana, por exemplo, o Rio Doce — mais importante rio de Minas Gerais — foi contaminado com uma quantidade enorme de químicos nocivos. Pouco depois do rompimento da Barragem de Fundão, o rio foi dado como morto. A comunidade que tinha nas águas do rio uma fonte de sustento, lazer e cultura ficou desamparada e adoecida pela contaminação da lama. As águas claras foram substituídas por outra de tom avermelhado e praticamente todos os peixes morreram.

Tragédia em Brumadinho
Região dominada pela lama proveniente da Barragem 1 em Brumadinho - Foto: Corpo de Bombeiros de Minas Gerais

O futuro e a mineração

Os especialistas presentes no evento foram questionados sobre as lições que foram (ou não) aprendidas com o desastre de Mariana e por que não foram aplicadas em Brumadinho. O professor Luis Enrique Sánchez foi categórico ao dizer que as lições já haviam sido absorvidas antes mesmo do desastre de Mariana; o grande problema, para ele, é que não eram de fato aplicadas. “Há um conjunto de conhecimentos, recomendações e boas práticas codificado em diversas publicações científicas que precisa ser aplicado adequadamente”, criticou.

Segundo o professor, existem agora quatro respostas possíveis para a tragédia do rompimento da barragem de Brumadinho: técnica, buscando a revisão de protocolos e aprimoramento de ferramentas; regulatória, a fim de propor novos requisitos e exigências; legal, atribuindo responsabilidades e proibições; e gerencial, garantindo melhores controles internos e auditorias.

Todos os presentes também se mostraram descrentes com a funcionalidade do modelo de autofiscalização aplicado pelas mineradoras, no qual as próprias empresas escolhem os agentes que fiscalizam suas atividades. “Isso já se mostrou impraticável no Brasil, tem que ser revisto, mas não parece estar sendo discutido”, argumentou Bruno Milanez. “Em 2014 houve um rompimento em uma barragem da empresa Herculano Mineração que meses antes havia sido considerada estável por um auditor; em 2015 aconteceu o mesmo com a barragem da Samarco, que meses antes havia sido considerada estável por auditoria; e agora, mais uma barragem considerada estável pela Vale se rompeu.”

Pedro Luiz Côrtes
Pedro Luiz Côrtes: ''O desastre de Mariana não gerou nenhum impacto positivo nos procedimentos adotados internamente pela Vale''

Milanez ressaltou ainda a necessidade de discutir novas maneiras de explorar, que respeitem e incluam as populações adjacentes, inclusive em seu direito de negar a presença de uma operação de mineração onde quer que seja: “É fundamental garantir que as populações atingidas participem do debate, decidam se elas querem ou não que a mineração aconteça e como ela vai se dar no local”.

Para Alexandre Orlandi Passos, a mineração deve ser atualizada para um modelo que contribua para o desenvolvimento social da região. “Você não constrói isso simplesmente fazendo extrativismo do século 18, como é feito até hoje”, defendeu. Os rejeitos, que hoje são empilhados em barragens “que são como bombas-relógio”, podem ter outras finalidades ambientalmente mais responsáveis, segundo ele. “É possível construir grandes estruturas de gestão hídrica, mas também já existem projetos que transformam os rejeitos em telhas, bloquetes e até madeira artificial para construção de móveis”, explicou. Os destinos alternativos, entretanto, raramente são escolhidos sob a alegação de que a produção de rejeitos é muito superior à capacidade de processamento destes mecanismos.

Mudanças no modelo de governança tanto das empresas quanto do Estado se fazem necessárias para evitar novas tragédias, acredita Pedro Jacobi. Para ele, é necessário haver maior transparência por parte das empresas, maior controle social das atividades de mineração por parte do Estado e forte pressão social por legislação preventiva, muito mais eficiente, rigorosa e punitiva. As medidas são, na opinião do professor, ainda mais necessárias no atual contexto de instalação de um novo governo no Brasil, que “tem uma visão predatória dos avanços ambientais”.

Jacobi ressaltou que a academia também tem uma função importante no processo de conscientização frente ao descaso: “O papel da universidade em momentos como o presente é garantir que corações e mentes se sensibilizem com o fato de que estamos nas mãos de agentes econômicos e governos que desprezam as vidas humanas”.

Fotos: Victor Matioli/IEA-USP