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Grupo lança livro com ensaios críticos e experimentos em direitos humanos

por Mauro Bellesa - publicado 09/04/2024 12:10 - última modificação 09/04/2024 12:08

Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH) do IEA lança livro "Ensaios Críticos e Experimentações em Direitos Humanos, Democracia e Memória" no Portal de Livros Abertos da USP.

Capa do livro "Ensaios Críticos e Experimentações em Direitos Humanos, Democracia e Memória"O campo dos direitos humanos é atravessado por contradições e não se realiza sem o espírito da crítica que deve atravessá-lo, afirmam os pesquisadores que assinam a Introdução do livro "Ensaios Críticos e Experimentações em Direitos Humanos, Democracia e Memória", lançado este em março pelo IEA no Portal de Livros Abertos da USP [clique aqui para baixar o arquivo].

A obra "aponta problemas, caminhos e impasses que merecem dedicação apurada, a fim de corrigir repetições e políticas equivocadas ou sem efeito, travestidas de políticas, planos e/ou ações em direitos humanos", destacam Andrei Koerner, Paulo César Endo e Maria Cristina Gonçalves Vicentin. Os três integram o Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH) do IEA, responsável pela produção do livro.

Os organizadores do volume são Endo, Koerner e Raíssa Wihby Ventura. Endo é o coordenador do GPDH e professor do Instituto de Psicologia da USP; Koerner e Ventura são professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

Os pesquisadores ressaltam que, após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, abriram-se novas perspectivas para a reconstrução das políticas de direitos humanos, "mas em condições bem mais adversas", uma vez que agências e programas de direitos humanos foram paralisados ou extintos, além de terem sido "criadas políticas e firmados compromissos voltados a reforçar os entraves à autonomia dos sujeitos".

"Vivemos em um período de incerteza em que a recuperação das políticas de direitos humanos é prioritária, mas incerta e controversa. Ao mesmo tempo, porém, a experiência acumulada e a combinação de resistência e novas iniciativas nesses anos de desmonte nos deram novas base para pensar e agir", afirmam na Introdução.

Com 364 páginas, o livro contém 17 capítulos escritos por 27 pesquisadores vinculados ao GPDH. São professores e pesquisadores da USP e de outras universidades sediadas em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Frankfurt (Alemanha), além de profissionais de direito, psicologia e assistência social atuantes no Poder Judiciário ou em organizações não governamentais.

Os autores da Introdução afirmam que os capítulos da obra permitem um contato com diferentes perspectivas temáticas e teóricas de trabalho que orientam algumas das pesquisas interdisciplinares dos participantes do GPDH, “cujas experiências, em muitos casos, são atravessadas por significativo ativismo em suas respectivas áreas”. Os textos estão divididos em quatro partes, de acordo com o aspecto predominante em cada um deles. São elas:

  • Parte 1 – Reflexões Teóricas e Críticas a Discursos de Direitos Humanos;
  • Parte 2 – Críticas ao Autoritarismo, a Mecanismos Institucionais e Violações de Direitos Humanos e Direitos de Memória;
  • Parte 3 – Imaginações, Arte e Estéticas pelos Direitos Humanos e Memória
  • Parte 4 – Criações de Espaços e Práticas Coletivas

 

Limites atuais

Os capítulos da Parte 1 - Reflexões Teóricas e Críticas a Discursos de Direitos Humanos discutem os limites de discursos atuais de direitos humanos e os potenciais críticos e analíticos de novas formulações dos problemas. Em “Minimalistas e Insuficientes? As Contribuições de Samuel Moyn para o Campo dos Direitos Humanos”, Carla Somo e Matheus de Carvalho Hernandes analisam as avaliações do professor de direito e história da Universidade de Yale, EUA, sobre a história dos direitos humanos e seus impasses atuais. Os autores discutem a posição de Moyn sobre a afirmação dos direitos humanos nos anos 70. Para ele, isso ocorreu efetivamente, mas num padrão de minimalismo e insuficiência.

Os limites da avaliação apresentada pela Unesco sobre a situação da educação na América Latina e Caribe, em relatório de monitoramento publicado em 2021, são apresentados por Maria José de Rezende no capítulo “Crianças, Direitos Humanos e Educação nos Diagnósticos e Prescrições de Documento da Unesco”. De acordo com Rezende, os diagnósticos apresentados são mais substantivos do que as prescrições do relatório do organismo da ONU. Eles “revelam obstáculos quase insuperáveis em várias regiões da América Latina”, afirma a autora.

Outro tema que afeta diretamente a fruição dos direitos humanos pelos jovens é abordado no texto “Justiça Juvenil Amigável: Tensões e Torções de uma Promessa Incumprida”, de Eduardo Rezende de Melo, que trata da noção de justiça sensível do ponto de vista das relações entre amizade, política, igualdade e democracia. Essa noção está presente em debates atuais sobre como adaptar as formas e práticas judiciais para minimizar seu impacto negativo sobre crianças e adolescentes e aprimorar a garantia de seus direitos, destacam os autores da Introdução do livro.

Em “O Tempo da Vítima e o Tempo do Direito: A Emergência de um Direito ao Tempo”, Ludmila Nogueira Murta e Flávia Schilling baseiam-se na teoria do humanismo realista para propor o direito ao reconhecimento e respeito do tempo subjetivo da vítima de violência. Esse direito é proposto pelas autoras com base na releitura do princípio da dignidade humana a partir da perspectiva da vítima.

Tânia Corghi Veríssimo, em “(In)Cômodos da Casarquivo: A Ditadura Civil-Militar Brasileira como Arquivo do Mal”, parte das reflexões de Jacques Derrida sobre o mal (no sentido de doença) de arquivo para discutir o problema do arquivo do mal. Ela explica que o filósofo francês partiu do radical da palavra grega arkhê para conceber a noção do mal de arquivo, criando uma ambiência à qual ele chama de casarquivo. Esta palavra-valise é usada para “abrir caminhos de análise e de abordagem de um arquivo do mal: a ditadura civil-militar brasileira”.

Continuidades

A Parte 2 – Críticas ao Autoritarismo, a Mecanismos Institucionais e Violações de Direitos Humanos e Direitos de Memória destina-se ao exame das relações entre o presente e o passado recente. Na Introdução do livro, os pesquisadores argumentam que “nossa experiência recente aprofundou a situação desde o pós-ditadura, em que passado e presente se entrelaçam em continuidades, ressurgimentos, espectros”.

O capítulo que abre essa parte é “Políticas no Campo de Direitos Humanos durante o Mandato de Bolsonaro – Uma Análise Político-Constitucional”, de Andrei Koerner e Marrielle Maia. Ao analisar as políticas do governo anterior, eles argumentam que os direitos humanos foram o alvo privilegiado e discutem essa questão a partir de dois pontos de vista: a construção de sujeitos como cidadãos na ordem constitucional de 1988; e as transformações do regime constitucional neoliberal e democrático estabilizadas em 1993-1994.

Paulo Cesar Endo e Márcio Seligmann-Silva examinam em “Educação e Preservação de Sítios de Memória no Brasil” os trabalhos de resgate histórico realizados nos últimos anos, com base no exame dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade e das Comissões Estaduais da Verdade dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná. O texto mostra que os caminhos abertos por essas comissões a partir de 2011 não tiveram continuidade consistente e sofreram ataques à sua criação, consolidação e execução. No entanto, os autores consideram que os relatórios possibilitaram a elaboração de recomendações para a criação de novos sítios de memória.

As dificuldades para reconstrução da memória da ditadura também estão presentes no capítulo “Apropriações e Disputas em torno do Acesso aos Arquivos da Ditadura Militar no Brasil”, de Janaína de Almeida Teles e Pádua Fernandes. Elas comentam as dificuldades para a reconstrução histórica do período ditatorial em razão de problemas como a destruição e reorganização dos arquivos da repressão, as iniciativas parciais e limitadas de reparação e restauração da verdade e o próprio controle dos arquivos pelos militares, em contraponto com os avanços legais e os programas que visaram preservar os documentos e proporcionar amplo acesso público a eles.

“Reconhecimento de Pessoas e as Prisões Injustas: Uma Análise Metapsicológica do Erro Judicial Repetitivo”, de Paulo Kohara, examina a prática da identificação pessoal ou fotográfica como única base para indiciamento e prisão de pessoas. Ele afirma que essa é uma das principais causas de erro judicial em todo o mundo e, no Brasil, “em sua maior parte, nem mesmo respeitam os procedimentos mínimos indicados no Código de Processo Penal para evitar induzir vítimas e testemunhas”. Sob uma perspectiva metapsicológica, o capítulo examina as razões pelas quais a prática de encarceramento revela-se pouco permeável a evidências científicas, comandos legais e jurisprudência dos tribunais superiores.

Cultura e direitos

A Parte 3 – Imaginações, Artes e Estéticas pelos Direitos Humanos e Memória explora as mobilizações coletivas e experimentos performativos adotados para, a partir do protesto e rejeição às violações, promover a expressão pública dos direitos humanos.

A expressão estética de movimentos coletivos é tematizada por Paulo Henrique Fernandes Silveira em “As Canções da Liberdade do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos". Além de entoar canções de diversos compositores populares, a juventude militante estadunidense criou letras políticas para melodias conhecidas do spiritual e do gospel, afirma Silveira. O objetivo do texto é analisar o impacto dessas letras e canções no engajamento dos jovens secundaristas e universitários nas lutas contra a segregação racial.

“Bandeirantes em Chamas: Notas sobre a Memória, o Monumento e o Fogo”, escrito por Álvaro Okura de Almeida e Léa Tosold, parte da materialidade do monumento como um lugar de memória para abordar criticamente a representação da dominação, exploração e violência silenciada no espaço público. Os autores destacam a importância dessa discussão diante da crescente contestação de monumentos em vários países. Para isso, revisitam o episódio no qual um grupo de militantes incendiou, em julho de 2021, a estátua de Borba Gato – um símbolo do bandeirantismo paulista –, e suas implicações no debate público e acadêmico.

Raíssa Wihby Ventura estuda em “O Arquivo como Alvo nas Palavras de Saidiya Hartman” a fabulação crítica como estratégia de expressão da crítica à violência na obra da autora estadunidense. O capítulo reconstrói o arco argumentativo de uma obra que se consolidade nos livros “Scenes of Subjetion” e “Wayward Lives”. Para Ventura, Hartman é autora de um projeto crítico definido como uma “experimentação centrada na construção de imaginários revolucionários conduzidos pela busca, instituição e iniciação de novas maneiras de contar um passado-presente no qual o pós-escravidão continua a definir horizontes e (im)possibilidades”.

Outro capítulo que relaciona literatura com violação de direitos humanos é “O Desafio da Expressão Literária da Experiência da Tortura”, de Bruno Konder Comparato.  Ele reflete sobre a comunicação da singularidade dessa terrível provação. De acordo com os organizadores do livro, “a literatura de testemunho, composta por relatos de vítimas, ilustra o que talvez seja o maior desafio de todo texto: ter que expressar experiências únicas, pois que pessoais, com o sentido de universalidade necessário para tornar qualquer reflexão compreensível por seus interlocutores”.

Projetos práticos

O livro se encerra com textos sobre projetos de intervenção voltados à prática dos direitos humanos. Os quatro capítulos da Parte 4 – Criações de Espaços e Práticas Coletivas tratam de iniciativas em espaços coletivos organizados para acolher e apoiar vítimas de violações e para proporcionar encontros com o potencial de criação de outras formas de subjetividade e relacionamento, explicam os autores da Introdução.

Bel Santos Mayer mostra, em “Os Direitos Humanos na Agenda da Rede de Bibliotecas Comunitárias LiteraSampa”, como esse projeto promove a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), ao traduzi-los para distintas realidades e diferentes públicos. Ela informa que a Rede LiteraSampa, composta de 18 bibliotecas comunitárias instaladas nas periferias de São Paulo, Guarulhos e Mauá, foi criada em 2010 com o objetivo de promover o direito humano a livros, leitura, literatura e bibliotecas. O capítulo dá destaque especial ao envolvimento da juventude com o tema e analisa dados documentais sobre a origem e história das bibliotecas comunitárias.

Outra iniciativa relacionada com literatura objeto de capítulo é a produção de um volume com a história das lutas de familiares de jovens mortos por agentes do Estado, projeto relatado em “A Escrita-Memória no Livro ‘Mães em Luta’: Um Dispositivo Coletivo de Enunciação Testemunhal’”, de Cláudia Cristina Trigo Aguiar, Lucia Filomena Carreiro e Maria Cristina Gonçalvez Vicentin. A obra é um dos projetos do movimento Mães em Luto da Zona Leste, de São Paulo. O trabalho é fruto de parceria entre seis mulheres do movimento com profissionais e pesquisadores de psicologia clínica e da área de literatura.

A experiência de ensino, pesquisa e extensão universitária do projeto Relações de Gênero, Violência e Psicologia: Latinidades Insurgentes, desenvolvido pelo Núcleo de Formação Profissional do curso de Psicologia da PUC-SP, é apresentada por Gabriela Gramkow e Adriana Pádua Borghi no capítulo "Racismo, Gênero e Branquitude: Experimentações de Cuidado e Responsabilização em Cenas de Violências na Interface Psi-Jurídica". De acordo com as autoras, os estudos e intervenções do núcleo "foram desenvolvidos para apoiar pessoas sujeitas a sofrimento sociopolítico/ético-político, além de refletir sobre os ciclos de violência em que vítimas e ofensores são forjados".

"A Experiência dos Centros de Educação em Direitos Humanos da Cidade de São Paulo: Territórios e Vulnerabilidades", de Daniele Kowalewski e Flavia Schilling, é o capítulo que concluiu o livro. Nele, as autoras descrevem pesquisa na qual a memória desses centros de educação é recuperada, enfatizando sua concepção, obliteração e revitalização no período pós-pandemia. O texto dedica-se aos eixos território e vulnerabilidade da pesquisa (o terceiro foi multiculturalismo), com ênfase em vunerabilidade. A discussão é baseada em diversas fontes, entre as quais a Fundação Seade, o Ipea, o Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (Naapa) da Prefeitura de São Paulo e escritos da filósofa estadunidense Judith Butler.