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O projeto de Lina Bo Bardi de tornar a cultura popular referência para o desenvolvimento

por Mauro Bellesa - publicado 14/11/2017 14:25 - última modificação 17/11/2017 12:35

Ana Belluzo foi a expositora do encontro "Exposições 3: 'A Mão do Povo Brasileiro' (Masp, 1969)", no dia 7 de novembro.
Exposição "A Mão do Povo Brasileiro" - 1969
"A Mão do Povo Brasileiro", 1969, exposição temporária inaugural do Masp

Foi no mínimo inusitado expor objetos da cultura popular num museu dedicado à arte erudita do Renascimento ao Impressionismo, mas foi isso que a arquiteta Lina Bo Bardi fez em 1969 com a exposição “A Mão do Povo Brasileiro”, mostra temporária inaugural da sede do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) na avenida Paulista.

A exposição não foi um trabalho isolado sobre o tema na carreira de Lina. Seu interesse sobre o artesanato, utensílios e outras manifestações da cultura popular manifestou-se e resultou em várias realizações no período de 1958 a 1966, quando ela viveu e trabalhou em Salvador, Bahia.

As preocupações e atividades de Lina que resultaram na exposição de 1969 foram apresentados no IEA por Ana Belluzzo, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, no dia 7 de novembro, no encontro Exposições 3: “A Mão do Povo Brasileiro (Masp, 1969), integrante do ciclo “Cultura, Institucionalidade e Gestão.

O ciclo é uma realização da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, parceria do IEA com o Itaú Cultural. A coordenação do ciclo e a moderação dos encontros é de Ricardo Ohtake, titular da cátedra e diretor do Instituto Tomie Ohtake.

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Arquiteta de origem romana, Lina veio para o Brasil aos 31 anos em 1946, quando se casou com Pietro Maria Bardi, parceiro do empresário de comunicação Assis Chateaubriand na criação do Masp em 1947 e dirigente do museu até 1996.

Ana destacou a “formação cuidadosa” de Lina, que antes de vir para o Brasil trabalhou na Itália como arquiteta, pesquisadora, ilustradora e artista gráfica. “Ela atuou na Trienal de Milão e na revista ‘Domus’. Era uma pessoa já inserida no ambiente cultural italiano. Quando chegou aqui era plenamente consciente do processo cultural do fazer artístico. Ela se dedica à arquitetura e projetos de outras áreas e em 1958 vai trabalhar em Salvador."

Uma das facetas de Lina, segundo Ana, era o interesse em elaborar projetos e instituições de longa duração. “Era uma mulher de projeto, não de exposições, que são um triz, algo rápido que se extingue.”

A exposição "A Mão do Povo Brasileiro" não foi uma mostra tradicional. A montagem feita por Lina incluiu suportes e tablados simples. “A intenção era mostrar a colocação dos objetos como se fosse numa feira nordestina."

A intenção de Ana no encontro foi discutir a visão de Lina sobre a cultura popular, em especial a nordestina. “A exposição de 1969 remete ao cerne do projeto desenvolvido por ela no período em que atuou na Bahia.”

"De 1958 a 1969, o Brasil acelerou seu processo de industrialização, mas a industrialização é um processo muito lento. Era preciso fazer projetos de base, de infraestrutura, sempre com o risco de algumas regiões terem crescimento vigoroso e outras, como o Nordeste, não conseguirem acompanhar."

No final dos anos 50 e início dos 60, havia processos intensos de desenvolvimento social, limitados pela ditadura a partir de 1964, segundo Ana. "Com a exposição de 1969, Lina faz um balanço do período que vivera na Bahia, trazendo para o público paulista esse conjunto de referências."

Quando ela realiza a exposição, seu projeto sobre a cultura popular já tinha sido abortado, afirmou Ana.

Mas qual o sentido de uma exposição sobre arte popular num museu de arte erudita internacional? Para Ana, havia uma polifonia de sentidos e intercâmbios na época e isso fez com que a produção popular ocupasse um lugar tão importante quanto a erudita.

“A arte popular se tornou o agente principal para se pensar em práticas culturais ligadas à modernidade quando isso se impôs para um país como o Brasil, de cultura e economia dependentes. Lina propunha como saída a ênfase na cultura autóctone, nas forças vitais do país.”

Se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), criado nos anos 30 e as missões de Mario de Andrade e outros modernistas registravam a produção popular com base no folclore e na etnografia, Lina vai atentar para outra coisa: “A forma de trabalho das pessoas, sua técnica e com fazem para sobreviver em condições precárias, como encontram soluções simples para resolver os problemas do dia a dia”.

Ela acreditava que existia uma intensa força latente no Brasil, “com forma primordial coincidindo com as formas mais privilegiadas do pensamento moderno”. Para ela, essa força genuína deveria ser a base para uma nova ação cultural, segundo Ana.

“Na visão de Lina, o artesanato só existe sobre base histórica.” No seu país de nascimento, a Itália (ela se naturalizou brasileira em 1951), o artesanato era uma forma de produção desde as corporações da Idade Média. “O artesão não era um operário que vendia apenas a execução do trabalho”, comentou Ana.

Por isso ela considerava que no Brasil não existia artesanato, mas sim um pré-artesanato em busca de sobrevivência com recursos mínimos, disse a expositora. Para Lina, o artesão não deve ser apenas um executor de um projeto, mas alguém que participa da concepção, do processo de criação do projeto.

Ana Belluzzo - 7/11/17
Ana Belluzzo

“Ela queria criar um museu vivo de artesanato e arte industrial, complementado por uma escola de artes e ofícios que permitisse a interação entre criadores e executores. Ela pensa em trabalho colaborativo, sem hierárquica, e chama de ‘indústria’ o resultado disso.”

Em mais um movimento para reafirmação da cultura do Nordeste, Lina se aliou à Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e a seu diretor, Martim Gonçalves: “Essa ligação facilitou a composição da cenografia da exposição Bahia, que ela realizou na marquise do Ibirapuera em 1959, simultaneamente à 5ª Bienal Internacional de São Paulo. Foram apresentadas representações de orixás, tapeçarias, música, slides, comida. O cartaz foi feito como as xilogravuras das capas de folhetos de cordel. Houve a colaboração de vários artistas baianos, como Glauber Rocha e Mário Cravo Netto.”

A exposição Bahia não foi um fato isolado. Ana comentou que no mesmo ano o governo federal criou a Operação Nordeste. “Celso Furtado tinha sido convidado por Juscelino Kubistchek para elaborar um plano de desenvolvimento do Nordeste. A preocupação do governo era motivada pelas pressões feitas por governadores do Nordeste, inconformados com o direcionamento das verbas para a construção de Brasília.”

"Celso Furtado tinha visão clara de que a região precisava de um processo próprio de industrialização, de preferência voltado a bens de consumo, de uso diário dos habitantes." A fonte de referência seria o artesanato da região.

A proposta de Lina dialogava com esse projeto e com a ideia de viabilidade comercial das propostas dos artesãos. “Aí ela vai remodelar um antigo solar para transformá-lo no Museu do Unhão, dedicado à arte popular baiana. Nele, ele prepara o projeto Civilização Nordeste, que resultou em uma exposição em 1963.”

Aí ela vai fazer o Museu do Unhão, com a remodelagem de um antigo solar e transformá-lo num museu de arte popular da Bahia. "É lá que ela vai preparar o projeto Civilização Nordeste, que resultou numa exposição em 1963.

Na época, ela criou também um centro de estudos de artefatos e técnicas do Nordeste, sempre pensando que essa produção deveria servir como referência para produtos industriais conectados com a cultura local, segundo Ana.

“Lina tentou levar a exposição do Unhão para Roma em 1965, mas não conseguiu. Os militares achavam que mostrar os objetos da cultura popular era prejudicial à imagem do país.”

Mas em 1967, Lina já considerava que a oportunidade de tornar o artesanato em uma das bases do desenvolvimento regional havia se perdido, com a Bahia se industrializando de outra forma, de acordo com Ana. “Furtado também constatou isso e publicou "Fantasia Desfeita", sobre a ruptura do processo iniciado com a criação da Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste] em função do golpe militar.”

Em 2016, o Masp organizou uma exposição nos moldes de “A Mão do Povo Brasileiro, utilizando dezenas de objetos apresentados em 1969 e uma cenografia baseada nas fotos daquela exposição. Ana considera que a exposição de 1969 foi organizada dentro dos critérios museológicos, “mas Lina não era isso, era outra ação, algo que pudesse fazer emergir a força da cultura popular”.


Fotos (a partir do alto): Hans Gunter Flieg/Acervo do Instituto Moreira Salles; Leonor Calasans/IEA-USP