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Um novo pensamento científico para o contexto da cultura digital

por Flávia Dourado - publicado 25/06/2013 11:45 - última modificação 04/02/2016 14:47

Em entrevista ao IEA, o antropólogo Massimo Canevacci fala sobre transformações ocasionadas pela cultura digital e esclarece alguns dos conceitos de sua autoria, entre eles os ubiquidade, multivíduo e auto-representação.

 

Massimo CanevacciEstudioso da cultura digital, Massimo Canevacci não se contenta em olhar para o novo mundo das tecnologias digitais através de velhas lentes. Para dar conta dessa realidade emergente, o antropólogo italiano propõe novos conceitos — entre eles o de "ubiquidade","multivíduo" e "autorrepresentação" — e procura chamar atenção para a necessidade de construir um pensamento científico mais sintonizado com as transformações em curso.

Professor da Università degli Studi di Roma "La Sapienza", Itália, e professor visitante do IEA desde março, suas pesquisas, de caráter interdisciplinar, mobilizam referenciais da comunicação, antropologia e teoria crítica, com foco na pesquisa empírica.

Na seguinte entrevista à jornalista Flávia Dourado, Canevacci esclarece alguns dos conceitos de sua autoria, questiona a ideia de uma cultura alienante — de um "padrão determinado pela estrutura econômica e política" — e propõe a flexibilização do método científico clássico por meio da "etnografia reflexiva", estratégia metodológica que não se deixa enrijecer pela ruptura entre sujeito e objeto.

Seus trabalhos falam em uma transição da "cidade industrial", centrada na produtividade, nos conflitos de classe e na dialética política, para a "metrópole comunicacional", marcada pelo pluricentrismo e pela modificação da percepção espaço-tempo. É disso que o conceito de "ubiquidade" trata?

A lógica dualista da cidade industrial foi substituída pelo pluricentrismo da metrópole comunicacional, na qual prevalece a flexibilidade característica da cultura digital. Essa transformação está relacionada à dimensão da ubiquidade, que complexifica a percepção do espaço-tempo.

O sujeito que transita na rede e na metrópole comunicacional pode, no mesmo espaço-tempo, se comunicar com pessoas de contextos totalmente diferentes. Essa experiência ubíqua — inexistente e inimaginável na cidade industrial — levanta desafios enormes para a comunicação e a etnografia: que tipo de relação com os outros isso provoca? Como fica a questão da alteridade? Se afirma um sujeito ubíquo conectado (e não coletivo).

Antes, na antropologia, "o outro" era a cultura indígena. Mas, hoje, falo com índios Bororo ou Xavante [povos indígenas estudados por Canevacci], que estão no Mato Grosso, pelo Skype ou pelo site Aldeia Digital. Eles conversam em português, às vezes em espanhol, mas continuam a falar bororo ou xavante, e utilizam a mesma tecnologia digital que eu.

Na metrópole comunicacional, cada pessoa configura um "outro", não na forma de uma alteridade radical, mas de pequenas diferenças. Se, no passado, prevalecia o conceito de homologação, no qual todo mundo seguia um padrão determinado pela estrutura econômica e política, atualmente o grande desafio da comunicação e da etnografia é penetrar em cada uma dessas diferenças — diferenças que configuram tipos específicos de alteridade e, juntas, formam um patchwork, uma dimensão sincrética glocal [global + local] que varia no espaço e no tempo.

É essa possibilidade de transitar em diferentes espaços-tempos que traz à tona o multivíduo?

O formativo da cultura industrial, que consiste em elaborar uma identidade sempre idêntica a si mesma, não funciona mais. Na cultura digital, as identidades não são fixas, mas flutuantes. O conceito de multivíduo modifica o conceito clássico de indivíduo — palavra de origem latina que, por sua vez, traduz a palavra grega atomom, cujo significado é indivisível. O multivíduo é um sujeito divisível, plural, fluido. Ubíquo. Um mesmo sujeito pode ter uma multiplicidade de identidades, de "eus", e assim multividuar a sua subjetividade.

Um dos sintomas disso é a ideia de gênero. O feminino e o masculino já não são mais percebidos como uma divisão definida biologicamente. O gênero é visto como uma construção cultural que não comporta mais uma lógica binária, dualista. Entende-se que é possível ter uma multiplicidade de experiências sensuais eróticas.

A moda é outro exemplo: o multivíduo não se identifica por um estilo de moda específico, único. Ele modifica seus estilos de acordo com os diferentes contextos em que se encontra. Isso impõe grandes desafios para o estudo da moda, que não deve mais ser tomada como algo que manipula, pois cada multivíduo escolhe elementos diferenciados e, a partir disso, cria sua própria performance.

E qual é a relação entre a emergência desse multíviduo e a cultura digital?

A descentralização ubíqua do indivíduo trata-se de um tipo de identidade característica da cultura digital. O desejo de viver uma alteridade interna era compartilhado apenas em momentos específicos, como no carnaval. Atualmente, com a explosão da cultura digital, esse desejo de alteridade, de multivocidade pode ser vivido o tempo todo, em qualquer momento. Basta o sujeito entrar na internet para poder exprimir diferenças coexistentes e heterônomos estilos de escrever, de se representar, de se conectar.

Então, esse sujeito transitivo, caracterizado de flutuantes "eus" multividuais, que estão se afirmando como "outros", tem a vantagem de usufruir das tecnologias digitais, tecnologias que se tornam mais difundidas diante da facilidade de uso, da redução de preços, da aceleração de linguagens, das possibilidades de edição autônoma.

É claro que a cultura digital também traz problemas de segurança, de fraude, que devem ser enfrentados. Porque a cultura digital é parte de um conflito, de uma dialógica, de uma tensão que precisamos resolver.

Então a manifestação do multivíduo está ligada ao surgimento de uma comunicação mais horizontalizada, viabilizada pela cultura digital?

A cultura digital modifica a "divisão comunicacional do trabalho" (expressão inspirada no conceito de divisão social do trabalho, proposto por Marx) entre quem narra e quem é narrado. Surge, daí, a ideia de autorrepresentação: as pessoas querem se representar, e não mais serem representadas. E, de qualquer lugar do mundo, elas tem os meios tecnológicos e as condições culturais para fazer isso, para nunca mais conceder a um terceiro o direito de representá-las. Isso vem do desejo de cada um exprimir, de narrar sua própria história. Entra em cena, assim, a crítica ao status de "quem tem o poder de representar quem".

Caiu a dicotomia entre quem representa, de um lado, e quem é representado, de outro. Trata-se do direito que cada pessoa tem de representar a si mesma politicamente e esteticamente e de representar também quem a representa. Isso significa colocar em crise permanente a visão dualista e dicotômica entre natureza e cultura, masculino e feminino, bem e mal, quem representa e quem é representado. Diante disso, precisamos desenvolver lógicas diferenciadas de pensamento que permitam aproveitar as potencialidades que a cultura digital nos oferece.

O senhor defende a adoção de uma "etnografia reflexiva" nas pesquisas antropológicas. Essa guinada epistemológica surge como efeito do fenômeno da autorrepresentação?

A autorrepresentação altera profundamente a etnografia, que passa a ser mais dialógica e reflexiva: o entrevistador também é entrevistado. Meus amigos bororos ou xavantes fazem pesquisas sobre mim ao mesmo tempo em que são pesquisados e, juntos, construímos uma autorrepresentação na qual colocamos nossas personalidades, experiências, emoções e valores. O envolvimento emocional torna-se parte constitutiva da estratégia etnográfica, porque o pesquisador é parte da pesquisa, não está fora do contexto analisado. Não se insiste, assim, na objetividade em relação ao objeto, de modo que o objeto não é mais objeto: é um sujeito, com toda sua complexidade, que está em diálogo com o investigador.

A autorrepresentação significa que, como antropólogo, não posso mais representar a cultura dos bororos e xavantes ou da periferia de São Paulo, porque tanto os jovens indígenas quanto os paulistanos afirmam seu direito de representarem a si mesmos e de me representar como pesquisador.

Ao abrir mão da diretriz da objetividade e assumir os princípios do dialogismo e da reflexividade, o pesquisador não corre o risco de ser criticado por uma falta de cientificidade? Como fica essa questão no meio acadêmico?

O paradigma que sustenta a dimensão cientifica é, em grande parte, baseado na física e na matemática euclidiana. Mas, a partir da metade do século passado, a visão pós-euclidiana começou a se manifestar também nas ciências ditas exatas. Nos laboratórios do Cern [Centro Europeu de Pesquisa Nuclear], por exemplo, o contexto no qual os experimentos são colocados é parte da avaliação, porque se entende que o contexto modifica o resultado. Subjetividade e objetividade, particularidade e universalidade estão conectados e fazem parte dos resultados.

A objetividade pura era importante no passado. Agora, o que precisamos é aliar a força estética da imaginação e a experiência subjetiva com a exatidão científica por meio do que chamo de "imaginação exata", lógicas pós-euclidianas.

As obras criadas pela arquiteta Zahad Hadid ilustram muito bem a emergência dessa cultura pós-euclidiana. Ela desenvolveu um tipo de elaboração digital capaz de criar fantasias arquitetônicas que não pertencem à nossa experiência geométrica cotidiana. Ela aplica uma multidimensão híbrida autogenerativa em formas arquitetônicas diagonais, que nunca existiram antes e que não são baseadas na geometria clássica, euclidiana, composta por quadrado, círculo etc. Com isso, cria uma experiência metropolitana inovadora, que desafia o nosso olhar acostumado com prédios retangulares e piramidais com forma modernista.

Ainda no âmbito das transformações epistemológicas ligadas à etnografia, o senhor poderia explicar o seu conceito de "estupor metodológico"?

O "estupor metodológico" é um forma inovadora de posicionar o corpo e a mente numa dimensão porosa para encontrar o desconhecido. Trata-se de um treino para abrir a própria corporeidade e prepará-la para o encontro com o estranho, que, justamente por ser estranho, é desejado. O problema desse encontro é fundamental na etnografia. Pode ser um encontro casual, com algo que está muito perto, no Facebook ou na rua, por exemplo. Porque, às vezes, surfando na internet ou caminhando pela rua, a gente encontra elementos que criam um tipo de espanto. E é preciso estar preparado quando esse encontro acontece. É preciso estar treinado para enfrentar na hora o desconhecido, que é ao mesmo tempo sedutor e espantoso. É preciso agarrar o momento, que é único e pode escapar. Para elaborar uma etnografia da juventude paulistana, focalizada sobre o desejo de movimento urbano criativo, é fundamental aplicar seja a autorrepresentação seja o estupor como metodologias ubíquas.

Nos seus estudos sobre cultura digital, o senhor adota autores da teoria crítica, entre eles Kracauer, Adorno e Benjamim. Essa opção parece contraditória se considerarmos que, nas teorias da comunicação, a Escola de Frankfurt aparece associada à ideia da indústria cultural como lugar da manipulação e alienação. Essa contradição existe de fato?

Adorno, Benjamim e Kracauer foram os primeiros a estudar empiricamente a cultura de massas que estava nascendo. Adorno se dedicou à análise do rádio, do cinema, da música, da personalidade autoritária. Era um filósofo que não estava apenas pensando, pois fazia pesquisa empírica. Kracauer, ao estudar o cinema dos anos vinte, já tinha entendido que a autorrepresentação era um novo paradigma que a nova tecnologia reproduzível cinematográfica oferecia.

Tomar a teoria crítica a partir do conceito de homologação é uma leitura superficial. Assim como é superficial entender a indústria cultural como uma forma absoluta de massificação. Em Kracauer e Benjamin, por exemplo, tratava-se da possibilidade de inserir a tecnologia de reprodução em processos de libertação das classes sociais pobres, que poderiam, a partir desse recurso tecnológico, usufruir da cultura estética.

Nos últimos anos, vem nascendo na Alemanha e nos Estados Unidos uma corrente inovadora que faz uma leitura diferente da teoria crítica. O que é a mídia de massa atualmente? O conceito de massa está morto, assim como a ideia de mídia como mediação entre a indústria cultural e o público. Na cultura digital, cada um pode elaborar sua própria narrativa. O problema fundamental, agora, é como fazer uma pesquisa empírica criticamente orientada sobre a cultura digital — uma cultura que está modificando a mídia de massa e prefigurando o conceito de autorrepresentação.

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Foto: Mauro Bellesa/IEA-USP