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Nova York, a metrópole com a água mais pura do planeta

por Sylvia Miguel - publicado 09/09/2016 13:50 - última modificação 03/11/2016 15:31

Pacto entre governos locais, produtores rurais e ONGs vêm garantindo a manutenção dos serviços ambientais nas montanhas de Catskill e bacias vizinhas

Grandes centros urbanos e água de qualidade em quantidades suficientes para todos nem sempre é uma combinação possível, especialmente num planeta em que a escassez hídrica atingiu 35% da população mundial em 2005. Mas na cidade de Nova York – uma das líderes das chamadas “cidades elite”, segundo ranking de 2016 de cidades globais da AT Kerney –, a água que chega às torneiras de 9 milhões de pessoas tem origem em fontes superficiais, dispensa tratamento e recebe apenas cloro e flúor antes de ser distribuída.

Tema fascinante para geógrafos, ambientalistas e gestores públicos, o sistema de abastecimento do estado de Nova York prova que empresas, sociedades e governos podem prosperar ao investir na natureza. A estratégia de conservação dos mananciais economizou ao estado de Nova York valores da ordem de US$ 6 a US$ 8 bilhões e custos operacionais de US$ 300 milhões por ano, totais estimados para a construção e manutenção de uma estação de tratamento no sistema Catskill/Delaware.

A famosa  cadeia de montanhas de Catskill, a oeste das nascentes do Rio Hudson e a 160 quilômetros ao norte da cidade de Nova York, é um reduto preservado que compõe o complexo sistema de abastecimento do estado nova-iorquino. Além da estonteante paisagem que inspira artistas e atrai praticantes de diversas modalidades esportivas, o lugar também guarda uma das mais bem sucedidas histórias de pagamentos por serviços ambientais (PSA).

 

O modelo descentralizado de gestão hídrica ganhou força a partir de 1990, quando a cidade precisou reavaliar sua estratégia de abastecimento público, diante das pressões estaduais e federais por padrões mais rígidos de qualidade de suas águas de abastecimento público.

Em 1989, o comissário Albert Appeton, da Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos, havia desenvolvido um conjunto de regulamentos restringindo o desenvolvimento de atividades agrícolas e de uso e ocupação do solo nas bacias hidrográficas da região, visando à conservação dos mananciais.

Com os mananciais conservados, a cidade de Nova York manteria a liberação de filtração de suas águas superficiais, já que o ecossistema realizaria o trabalho de purificação da água.

 

Narrativa de um conflito hídrico

Mapa de NY Catskill
New Croton Dam 2
Reservatório de New Croton é parte do sistema de abastecimento de NY, que hoje possui 19 represas

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Ao olhar retrospectivamente a história da cidade mais influente do mundo, é provável que sem água abundante, de fonte segura e limpa, Nova York não tivesse alcançado o crescimento fenomenal dos últimos dois séculos.

No início do século 19, os nova-iorquinos passaram por enormes perdas sociais e econômicas após incêndios devastadores e epidemias de cólera, infecção causada pela ingestão de água e alimentos contaminados. A situação impulsionou as lideranças públicas a mergulhar num ambicioso projeto com o objetivo de melhorar o que era uma mistura inadequada de abastecimento público e privado.

Ainda em 1842, sob um Estado marcadamente tecnocrático, a cidade passa a ser abastecida pelo reservatório de Croton, 65 quilômetros ao norte da “Big Apple”. Nas décadas seguintes, gerações de líderes escolheriam obter água pura ao menor custo possível, indo buscar o recurso no extremo norte e oeste da cidade e, finalmente, nas montanhas de Catskill, uma área preservada por leis estaduais.

Durante o século que se seguiu, as grandes obras de engenharia e a expansão do sistema hídrico terminaram por constituir o que alguns estudos como o de Philip Steinberg e George Clark chamaram de narrativa de um conflito hídrico. Algo muito familiar com o que ocorre no Brasil, a “narrativa” descreve as relações sociais de uma região “superior” e “poderosa” que extrai recursos de um lugar “subordinado”, a partir de inundações e barragens.

Os deslocamentos de populações e a destruição de cidades inteiras foram amparados por uma lei de 1905 que, por meio de “domínio eminente”, permitiu à cidade de Nova York assegurar terras privadas fora dos limites municipais e usá-las para a expansão e o desenvolvimento do sistema de abastecimento. A medida foi empreendida por décadas e fomentou um ressentimento entre os moradores do norte e do sul do estado que persistiu até recentemente, informa reportagem do New York Times de 1990, assinada por Allan Gold ("New York's Water Rules Worry Catskills").

No que se refere à impressionante estrutura física, a rede de abastecimento de Nova York é hoje constituída por três lagos controlados e 19 reservatórios distribuídos em mais de 5 mil quilômetros quadrados, que fornecem cerca de 5 bilhões de litros de água por dia para a cidade e condados vizinhos.

 

O  Memorandun of Agreement (MOA) de 1997 representou um marco na gestão hídrica de Nova York. Com a assinatura de centenas de atores sociais, documento estabeleceu um amplo acordo de pagamentos por serviços ambientais, assistência técnica para o manejo seguro das atividades produtivas realizadas na bacia hidrográfica e um programa de compra de terras e de compensações por servidão.

Servicos Ecossistêmicos

Atualmente, o novo grande desafio de Nova York é manter a pureza da água que captou tão longe, satisfazendo aos restritivos padrões exigidos pela legislação federal norte-americana. “O sistema de abastecimento de Nova York é impressionante e muito elogiado, mas não é perfeito. A cidade de Nova York vem obtendo sucessivas licenças que a liberam da filtração. Mas há sempre o risco de contaminação devido aos tipos de uso e ocupação do solo do entorno dos mananciais”, afirma Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

Catskill - 7
Serviços ambientais garantidos em acordo comunitário e nas ações de conscientização sobre o meio ambiente
NY MAP Courtesy of NYC DEP 1997
Sistema de abastecimento da cidade de Nova York

Impedimentos ambientais, políticos e financeiros não permitem mais que a cidade continue a buscar por soluções de engenharia, apenas. Tornou-se necessária uma arena institucional complexa, formada pelo pacto de inúmeros atores sociais e uma diversidade de interesses, na busca de um objetivo comum: água limpa, que depende de mananciais resilientes, que dependem da conservação da natureza.

A ecologia política da gestão das águas urbanas passou por uma mudança de paradigma na década de 1970, em parte devido ao novo marco legal ambiental, inaugurado com a lei federal do Safe Drinking Water Act (SDWA) de 1974.

Emendas de 1986 ao Safe Drinking Water Act (SDWA) e uma nova legislação federal de 1989 para águas superficiais pressionavam a cidade para a necessidade de filtração e desinfecção de suas águas.

Ao mesmo tempo, as regiões do entorno dos mananciais que abastecem grande parte do estado de Nova York passavam por uma expansão populacional a partir da década de 1980, com a consequente intensificação do uso do solo e das atividades produtivas.

Afinal, o Memorandun of Agreement (MOA) de 1997 representou um marco na gestão hídrica do estado. O New York Watershed Agreement reconhece Catskills como uma reserva de água "tremendamente valiosa" e contou com as assinaturas da prefeitura nova-iorquina, outras 73 municipalidades e 30 comunidades do entorno das bacias, além de cinco organizações não governamentais, mostra o artigo de Mark Pires, professor da Long Island University, e também o estudo de Gilles Grolleau e Laura M.J. McCann.

O documento estabeleceu um amplo acordo de pagamentos por serviços ambientais, assistência técnica para o manejo seguro das atividades produtivas realizadas na bacia hidrográfica e um programa de compra de terras e de compensações por servidão. Os fazendeiros foram nomeados “guardiões da água” e passaram a ser remunerados pelos serviços ambientais prestados.

A prefeitura melhorou também o sistema de esgotos instalando pequenas plantas de tratamento para os despejos das atividades agrícolas e pastoris da região. Seu orçamento original para a aquisição de terras passou de cerca de US$ 300 milhões para US$ 580 milhões. O acordo entre os diversos atores foi estimado em US$ 1,4 bilhão, uma economia significativa diante dos custos da construção de uma estação de tratamento, mostram Grolleau e McCann.

Mas um grande problema ainda era a poluição difusa. Os autores explicam que as leis bastante exigentes sobre esse aspecto poderiam minar a autonomia privada sobre a propriedade da terra, o que revoltou muitos agricultores. Para esses estudiosos, a insatisfação sobre o uso da propriedade privada e a diversidade de atores sociais resultou no aumento dos custos de transação do pacto firmado em 1997.

Finalmente, a saída para o conflito veio por meio da aproximação da Prefeitura e do Departamento de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) com os técnicos do Departamento de Agricultura do Estado de Nova York, que tinha um relacionamento de longa data com os produtores rurais. A confiança foi se firmando, alguns mitos e preconceitos foram quebrados e assim o acordo foi estabelecido, discorre Albert Appleton, ex-diretor da agência de águas e esgoto de Nova York e ex-comissário da EPA, em artigo publicado na plataforma interativa Watershed Connect, da Forest Trends.

“Mesmo com a existência de parques e áreas de preservação, ainda há muitos moradores e diversas atividades rurais e turísticas em Catskills e bacias próximas. Contudo, conseguiram fazer um acordo bastante criativo e razoavelmente equitativo que afinal consegue manter a alta qualidade da água de Nova York. Inclusive o esquema de Catskills tem sido modelo para outros sistemas de PSA ao redor do mundo”, afirma Phil Coven, que foi diretor associado e gerente sênior de projetos na ONG Forest Trends, onde atualmente presta consultoria.

Coven cita o programa Cultivando Água Boa, realizado na bacia hidrográfica do Paraná 3 e entorno da represa de Itaipu, como um dos mais bem sucedidos entre as iniciativas de PSA hidrológico do Brasil. “A sociedade está despertando para os benefícios de investir na natureza”, afirma.

O estado de São Paulo inaugurou há pouco mais de um ano o Programa Nascentes, apresentado em matéria sobre PSA publicada recentemente no site do IEA. Mas enquanto os projetos baseados em incentivos econômicos do tipo PSA não deslancham, ainda permanece o paradigma hidráulico dos séculos 19 e 20, baseado em obras de grande impacto ambiental e na busca de fontes cada vez mais distantes. Em entrevista, o secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo, Benedito Braga, falou ao IEA sobre as políticas de abastecimento do governo estadual.

Segundo levantamento da Forest Trends de 2014, governos e empresas ao redor do mundo investiram US$ 12,3 bilhões em iniciativas de conservação visando a provisão de serviços ecossistêmicos relacionados à produção de água.