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Semeando como as cutias: a posse de três mulheres indígenas na Cátedra Olavo Setubal

por Mauro Bellesa - publicado 04/03/2024 16:20 - última modificação 06/03/2024 11:21

As indígenas Arissana Pataxó, Francy Baniwa e Sandra Benites tomaram posse como novas titulares da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciências no dia 1º de março, em cerimônia na Sala do Conselho Universitário.

Posse de indígenas na Cátedra Olavo Setubal - 1º/3/24 - 1
A partir da esq., Francy Baniwa, Arissana Pataxó e Sandra Benites

"Não estaremos sós. Seremos como as cutias fazendo caminhos e plantando sementes, como a da universidade indígena." Assim Arissana Pataxó definiu como será a atuação dela, de Francy Baniwa e Sandra Benites como titulares da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, parceria do IEA com a Fundação Itaú.

As três indígenas tomaram posse na cátedra em cerimônia no dia 1º de março, na Sala do Conselho Universitário, prestigiada por dirigentes da USP, do IEA  e da Fundação Itaú, além de representantes de outras instituições e integrantes de vários povos originários.

Na abertura da solenidade, o coordenador acadêmico da cátedra, Martin Grossmann, celebrou as contribuições da titular anterior, a escritora Conceição Evaristo, que não pode comparecer à cerimônia por questões pessoais. Ele destacou os trabalhos desenvolvidos por Conceição para discussões teóricas sobre o conceito de escrevivência (criado por ela), inclusive na formação e orientação de um grupo de estudos sobre o tema com jovens pesquisadores.

Para ele, "a escrevivência constitui o kernel de uma nova episteme”. Mudanças como essa nos modos de representação “precisam ser expandidas de modo multicultural, e a cátedra se insere nesse processo", afirmou.

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Grossmann destacou o fato de a titular anterior e as novas serem educadoras que têm como referência suas territorialidades, a diversidade e as desigualdades do país. “As especificidades dos contextos, as tradições e cosmogonias importam e muito”, considerou.

Inovação

O diretor do IEA, Guilherme Ary Plonski, disse que estamos num momento em que ocorre um movimento transformador na universidade e na sociedade brasileira. Ele associou a cátedra, os pesquisadores que a ocuparam e as instituições envolvidas a um espírito inovador próprio da juventude.

“A USP, que comemora 90 anos, é jovem no contexto da comunidade universitária global, que se aproxima de seu milênio de existência. A Fundação Itaú foi criada em 2019. A cátedra também é jovem. Sua atividade inaugural em 2015 foi o apoio à criação de uma rede global de jovens pesquisadores numa iniciativa com a Universidade de Nagoya, a Intercontinental Academia, no âmbito da Ubias, rede de institutos de estudos avançados vinculados a universidades nos cinco continentes.”

Para ele, a titularidade de jovens mulheres indígenas constitui-se em mais uma ação que valoriza a potência da juventude, assim como outras iniciativas promovidas por titulares anteriores, que favoreceram a formação de jovens em várias áreas.

Ancestralidades

O presidente da Fundação Itaú, Eduardo Saron, frisou que a cerimônia marcava a transição entre a ancestralidade afro-brasileira, representada pela atuação de Conceição Evaristo, e ancestralidade indígena, com as novas titulares.

Ele destacou o espírito público da parceria entre a fundação e e a USP. “Um espírito público tão necessário e tão ausente de algumas universidades e fundações empresariais. Nunca fomos tratados como patrocinadores. Sempre houve uma troca profunda. Pudemos oxigenar o IEA com uma certa ousadia e sermos oxigenados a cada caminho que a cátedra tomava.”

Maria Alice Setubal, filha de Olavo Setubal, participou da cerimônia representando a família do patrono da cátedra. Neca, como é mais conhecida, manifestou sua satisfação pelo fato de a cátedra abrigar titulares tão diversos ao longo desses seus dez anos de existência, associando isso à personalidade de seu pai, que “gostava de conversar com pessoas que pensassem diferente dele”.

Ao lembrar de titulares anteriores, ela citou o “trabalho incrível" feito por Conceição Evaristo com vários estudantes, dando continuidade ao engajamento de jovens realizado por Eliana Sousa Silva durante sua passagem pela cátedra, em 2018.

“Agora com as três indígenas, a cátedra dá mais um passo na sua articulação com a sociedade brasileira ao reconhecer a importância dos povos originários e a necessidade de salvaguardar a Amazônia e saberes culturais e artísticos.”

Posse de indígenas na Cátedra Olavo Setubal - 1º/3/24 - 2
Participantes da cerimônia (a partir da esq.): Martin Grossmann, Maria Alice Setubal, Maria Arminda do Nascimento Arruda, Guilherme Ary Plonski, Eduardo Saron, Ana Maria Rabelo Gomes e, ao fundo, as três novas catedráticas

Momento especial

Para Ana Maria Rabelo Gomes, da UFMG, paraninfa das novas titulares, a cátedra se encontra em um momento especial e singular de suas atividades, com três pesquisadoras indígenas sucedendo a uma escritora negra. “Mulheres negras e indígenas, silenciosas e silenciadas por tanto tempo, agora alcançam um público cada vez maior e diversificado.”

É recente a busca, em fontes documentais, de informações sobre o papel desempenhado pelas mulheres indígenas, segundo Ana Maria. Ela afirmou que esse papel vai bem além das diversas práticas na vida cotidiana, como na agricultura e nas ações de cura e cuidados com pessoas e animais, ampliando-se hoje com a presença de mulheres indígenas em diferentes posições públicas.

Ana Maria espera que a produção das três titulares venha a integrar o rol de colaborações para a elaboração da proposta de uma universidade indígena, iniciativa “assumida pelo ministro da Educação e prevista para implementação no atual mandato presidencial”.

Resistência

Foi com grande emoção que as novas titulares fizeram seus discursos de posse. Arissana Pataxó lembrou a luta de seu povo e de tantas outras etnias, que por tanto tempo resistiram. Agradeceu à luta de todos os povos pelo acesso dos indígenas ao ensino superior. A comparação que fez entre o trabalho disseminador que farão na cátedra com a atuação das cotias na natureza foi uma referência ao projeto que propuseram: Caminho da Cutia: Territórios e Saberes das Mulheres Indígenas”.

Francy Baniwa lembrou a importância dos movimentos indígenas, seja no nível regional e comunidades que abarcam, seja em nível federal. Oriunda do Alto Rio Negro, no Amazonas, disse que está trazendo seu território para dentro da USP. "É um privilégio estarmos nessa casa e trazermos nosso conhecimento como mulheres indígenas. Queremos trazer nossas narrativas, nossa cosmologia, afirmar que temos uma ciência, nossa forma de pensar e repensar o mundo em que vivemos", disse.

Sandra Benites, que é diretora de Artes Visuais da Funarte, lembrou que sua participação na cátedra envolveu muito diálogo e superação de questões burocráticas. Ressaltou a longa caminhada das três até chegar na posição assumida na cátedra, "e para onde a gente vai sempre carregamos nossa comunidade, filhos, mães, nosso povo".

"Fiquei pensando que hoje é um dia especial para juntar o nosso mundo e o mundo dos juruas [termo usado pelos guaranis para se referir aos não indígenas]. E a universidade deveria se sentir privilegiada por nos receber aqui", afirmou.

Renovação

Em sua fala de encerramento da cerimônia, a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda frisou que a Cátedra Olavo Setubal se insere no esforço da USP em promover a inclusão. Ela agradeceu a Conceição Evaristo pela contribuição durante sua titularidade e saudou as novas ocupantes da cátedra: "As três representam toda a história de todas as mulheres, não só as indígenas, e o percurso das mulheres na vida pública".

Para Maria Arminda, a USP se renova com experiências como a participação das novas titulares: "Cultura de fato pressupõe ousadia e a USP tem se renovado nesse sentido. Não formaremos as novas gerações se estivermos de costas para as culturas que são fundamentais na constituição de um cânone renovado da cultura e das ciências".

A vice-reitora disse que diante dos preparativos para a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), em novembro de 2025, em Belém (PA), "urge que tomemos medidas que valorizem o protagonismo e saberes dos povos originários, que foram ao longo do tempo os verdadeiros guardiões de nossa biodiversidade".

Fotos: Breno Rocha Queiroz/IEA-USP