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O centenário de Darcy Ribeiro e a educação brasileira

por Beatriz Herminio - publicado 11/03/2022 13:55 - última modificação 24/03/2022 14:10

As ideias e projetos de Darcy Ribeiro foram debatidas no evento "100 anos de Darcy Ribeiro", que ocorreu no dia 7 de março

1922 foi um ano de eventos marcantes. A ebulição cultural da Semana de Arte Moderna aconteceu no mesmo período da criação do Partido Comunista Brasileiro e quando se comemorava o centenário da independência. Foi também uma época de mobilização pela educação e, coincidentemente, o ano de nascimento de Darcy Ribeiro.

Darcy Ribeiro
O sociólogo e educador Darcy Ribeiro, nascido em 1922 em Montes Claros, Minas Gerais (Foto: tvescola.mec.gov.br)
No ano de seu centenário, a Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica promoveu um evento para tratar das ideias e projetos do intelectual. O evento 100 anos de Darcy Ribeiro, que aconteceu no dia 7 de março e teve transmissão ao vivo pela internet.


O antropólogo mineiro atuou como ministro da Educação e chefe da Casa Civil no governo do presidente João Goulart, teve seus direitos políticos cassados pela ditadura militar instaurada em 1964, foi vice-governador do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola e senador de 1991 a 1997, quando faleceu. Na abertura do evento, a vice-reitora da USP, Maria Arminda Arruda, definiu Darcy como visionário, construtor de instituições e, sobretudo, um "intelectual que apostou no Brasil".

Darcy e a educação pública

Para a professora Helena Bomeny, da Universidade Estadual de Rio de Janeiro (Uerj), falar de Darcy Ribeiro é abrir uma janela à civilidade, à aposta na interação e na discussão de ideias diante do cenário de "triste espetáculo que nos assalta e machuca diariamente, de culto à ignorância como um valor a ser cultivado".

Na exposição "Darcy Ribeiro, um Intelectual Público na Educação: Quando Ciência e Política se Encontram", Bomeny trouxe reflexões que resultaram em seu livro “Darcy Ribeiro: Sociologia de um indisciplinado” (Editora UFMG, 2001). O título condiz com o que ela afirmou ter encontrado na trajetória de Darcy: paixão incontida, irreverência, opiniões desmedidas, sedução a toda prova e vaidade confessada.

Entre os "fazimentos" — como Darcy chamava seus projetos — do sociólogo, Bomeny citou o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais; a Universidade de Brasília e o Programa Especial de Educação do Rio de Janeiro, incorporado aos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) — este como um projeto que pressupunha a assistência, escolarização e educação em sua dimensão integral, suprindo carências básicas dos alunos. Com uma "ampliação física, psicológica e educativa do espaço escolar", transformava a escola em um "mini universo compensatório de vida e civilização".

Helena Bomeny - 07/03/2022
Helena Bomeny, autora de ''Darcy Ribeiro: Sociologia de um Indisciplinado'' (Editora UFMG, 2001)
Para a professora, Darcy conhecia o Brasil e sabia da resistência brasileira ao que fosse usado para benefício público, sobretudo dos menos favorecidos — e sabia que políticas sociais são matéria de governo, não compromissos de Estado. Dessa forma, "ele teria que criar uma situação tal que fosse impossível desfazer e jogar fora o conquistado".

Nesse sentido, Bomeny trouxe uma reflexão: "Quando o tempo da política orienta o tempo da educação, as consequências não desejáveis acabam nos interpelando. São ritmos distintos e nem sempre conciliáveis. A urgência em contraposição ao movimento progressivo de aprendizado".  Como inovar mantendo estruturas e recursos permanentes que resistem sempre a inovações? Como a convenção poderá responder à inovação? "Essa foi sempre a angústia de Darcy", afirmou a professora.

Segundo Bomeny, a inquietação e o sentido de urgência de Darcy em sua atuação como intelectual público resultaram no diagnóstico que ele próprio fez: "Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu". Para Bomeny, essa fala foi uma forma "ao mesmo tempo realista, irônica e transgressora de mostrar que ainda havia muitos caminhos a serem percorridos".

Darcy observava a marginalização e o acesso desigual à educação no Brasil, questão que motivou muitos projetos. Em comentário à exposição, Carlos Jamil Cury, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), citou a atuação do sociólogo como vice-governador durante o governo de Leonel Brizola. Na década de 1980 ele realizou o que Cury definiu como o "auge de Darcy Ribeiro" e a representação do caminho do futuro: a construção dos CIEPs, que funcionavam como escolas de tempo integral (8 horas/dia) com um projeto pedagógico único.

Cury afirmou que, sem as práticas representadas pelos CIEPs, a educação brasileira continuará sendo vítima de avaliações como a divulgada pelo Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) em março deste ano. De acordo com o Saresp, 96,6% dos alunos da rede estadual concluíram o ano letivo de 2021 com desempenho abaixo do adequado em matemática. Alunos do 3º ano do Ensino Médio apresentaram nota de proficiência adequada à de um estudante de 7º ano do Ensino Fundamental, uma defasagem de quase seis anos.

Se Darcy estivesse aqui


Quais são as ideias para a educação básica em 2022 com base no legado de Darcy Ribeiro? Esse exercício foi proposto aos convidados.

Maria Arminda - 100 Anos de Darcy Ribeiro
Maria Arminda Arruda: ''Darcy foi um visionário, sobretudo um intelectual que apostou no Brasil''
Bomeny citou a convicção de Darcy a respeito da hipocrisia da escola brasileira em relação à necessidade de uma formação integral. Ela também destacou a ideia de que as ciências devem ser fundamentadas com base no conhecimento do país para onde serão orientadas, por isso a urgência de conhecer o Brasil. Em terceiro lugar, apontou a falta de reconhecimento dos brasileiros enquanto parte da América Latina, e pouco conhecimento sobre a riqueza cultural da região, um esforço de Darcy no âmbito educacional.


A professora Maria Beatriz Luce, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), questionou o que faz com que Darcy seja hoje um grande mestre. Para ela, "ele nos ensina a importância de conseguir sintetizar ideias e colocá-las de uma forma provocativa". Quanto à questão da escola integral, ela apontou que esse sistema requer que todas as pessoas no ambiente escolar tenham dedicação integral. Para isso, é fundamental não apenas a formação de professores em tempo integral, como também atenção aos princípios constitucionais e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no sentido da valorização dos profissionais em relação à carreira, remuneração associada à integralidade e condições de trabalho.


Educação e cultura

Introduzindo o tema da indissociabilidade entre educação e cultura, o professor Célio da Cunha, da Universidade de Brasília (UnB), trouxe citações de autores que se somam às ideias do antropólogo. Um deles foi Fernando de Azevedo, participante da geração dos anos 30 formada por Anísio Teixeira, Azevedo e Lourenço Filho, que "teria uma sequência nos anos 60 com Paulo Freire, Darcy e Florestan Fernandes".

Baseado em livro de Azevedo sobre a cultura brasileira, o professor apontou que o Brasil produziu uma cultura popular rica e variada, mas sua elite europeizante era restrita demais para construir sobre esses fundamentos uma cultura nacional mais estável e completa. A partir dos fundamentos de Azevedo, Cunha trouxe, de Anísio Teixeira, a concepção de que a escola como instituição de cultura "deverá ser, mais do que nunca, centros de estudo do Brasil, da cultura brasileira, da língua, da literatura, da geografia, da história e das ciências sociais brasileiras". Ele resgatou também uma fala de Darcy: "Desejo que a escola pública eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare realmente a criança para sua civilização".

Em relação à influência das ideias de Darcy na construção dos CIEPs (onde havia uma simbiose de educação e cultura em seu cotidiano), Cunha citou a criação dos animadores culturais para "integrar a cultura da escola e a cultura da comunidade". Segundo ele, os professores que atuavam em tempo integral foram estimulados a aproveitar as vivências que os alunos traziam para a sala de aula e a cultura popular.

"Os CIEPs procuravam caracterizar os contextos por meio de um pré-diagnóstico que exigia a identificação de dados socioculturais, econômicos e físicos da região, a observação das formas de vida e trabalho da população local, e a delimitação das condições de saneamento básico e saúde da população local para o planejamento de ações educativas", lembrou Cunha. Por fim, o professor trouxe a ideia de Sérgio Paulo Rouanet, presente na obra de Darcy, sobre "a urgência que o Brasil tem de acertar o passo com suas origens, sua origem negra, sua origem indígena". Este seria o lugar dos CIEPs na educação.

Lia Faria, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), conviveu com Darcy em seus 13 últimos anos de vida. A frase "não domestiquei, nem fui domesticado" usada pelo educador foi citada por Lia, que lembrou que ele não teve pais, nem filhos, mas uma mãe, professora, da qual invejava a fé. Enquanto um homem "apaixonado pelo Brasil", Darcy era estimulado o tempo todo a produzir em uma época pós-guerra repleta de feitos artísticos, com a "esperança de superar as desigualdades sociais", afirmou Lia.

A professora citou ainda outros projetos e ideais de influência de Darcy no campo da educação e cultura, como o Projeto Aluno Residente (PAR) — que acolhia, nas residências dos CIEPs, crianças e adolescentes em situação de carência ou abandono, como apoio para frequentar a escola —; a difusão das bibliotecas dos CIEPs; os critérios de alfabetização de jovens e crianças e a formação de cidadãos responsáveis pelo destino do Brasil, longe da juventude despolitizada, que considerava uma "obra da ditadura militar".

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)


Enquanto senador do Rio de Janeiro pelo PDT a partir de 1991, Darcy Ribeiro participou da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que teve sua criação debatida em diversos momentos do evento.

A famosa expressão de Anísio Teixeira, "meia vitória, mas vitória", foi resgatada por Cury para falar da LDB, que viria a ser a Lei 4024, de 20 de dezembro de 1961. Nos anos seguintes, a lei foi reformulada duas vezes, em 1971 e em 1996.

Carlos Roberto Cury - 07/03/2022
Para Carlos Jamil Cury, os CIEPs foram uma revolução e o ''auge de Darcy Ribeiro''
O professor apontou que, a partir das reformulação da lei, Darcy passou a sofrer críticas significativas por parte de educadores que lutavam pela tramitação de uma LDB com as características dos manifestos dos educadores de 1932 e de 1959. Cury afirmou que, a seu ver, há pontos no projeto de Darcy como senador que não correspondem aos princípios dos manifestos, dos CIEPs, nem da Constituição de 1988, como por exemplo a redução dos anos obrigatórios no Ensino Fundamental.


Sobre essa restrição da lei, Maria Beatriz citou as "elites do atraso educacional" brasileiras, que teriam procurado contrapor a universalização da escola com um encurtamento da escolaridade: "Escola para todos, mas de poucos anos", disse, evidenciando a precariedade da educação com o tempo reduzido das escolas públicas no Brasil. Para o professor, essa contradição na vida pública de Darcy não tira, contudo, o mérito de seus feitos.

Em continuidade às polêmicas relacionadas à lei, Bernadette Gatti, membro da Cátedra Alfredo Bosi, afirmou que no período houve "incompreensões imensas do que é o processo de instauração de uma democracia". Segundo Bernadette, a disputa ideológica entre os ensinos público e privado e a questão da liberalização do ensino foi muito forte no desenvolvimento da lei.

Ela citou dados de 2019 que indicam que 18% dos alunos não terminam o Ensino Fundamental, e que 47% dos que estavam no Ensino Médio não chegaram a concluí-lo. Para ela, os dados indicam que a defesa da educação de qualidade deve estar acompanhada da definição da qualidade desejada. "Darcy falava que a crise educacional no Brasil não é uma crise, é projeto. Projeto de uma sociedade elitista. A LDB nos provoca tudo isso."

Para a professora, o autoexílio de Darcy a partir da instauração da Ditadura Militar em 1964 e seu trabalho de assessorar os governos uruguaio, venezuelano, chileno e peruano nas questões educacionais mudaram suas perspectivas, e trouxeram a ele a ideia de que economia e cultura não podem ser separadas. Para ela, Darcy trabalhou na redação da LDB no sentido de garantir pontos fundamentais: educação como responsabilidade do Estado e condições para implantação de universidades.

Universidades darcynianas

"Capazes de se adaptar, se reinventar e de não fazer sempre mais do mesmo." Foi assim que Denise Pires definiu as universidades darcynianas na terceira parte do evento. Tanto a UnB quanto a UENF são instituições idealizadas com o auxílio de Darcy. Em oposição à frase do antropólogo que afirmava ter fracassado ao tentar criar universidades sérias, a reitora da UFRJ afirmou que essas são universidades sérias que continuam públicas, gratuitas, de qualidade e que avançaram, sendo hoje "muito mais inclusivas e democráticas".

Com o lema "atuante como sempre, necessária como nunca", a Universidade de Brasília completa 60 anos em 2022. Márcia Abrahão Moura, reitora da UnB, afirmou que Darcy queria criar uma universidade totalmente inovadora e capaz de rever a estrutura obsoleta das universidades brasileiras, além de dominar todo o saber humano e colocá-lo a serviço do desenvolvimento nacional. "Assim que a UnB foi criada, não queriam trazer para cá uma universidade porque ela traria greves e movimentos estudantis, então Darcy teve muita resistência para criá-la com esse olhar inovador."

Para o reitor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Raúl Ernesto López Palacio, as três universidades são hoje bandeiras de luta e de defesa das ideias de Darcy, bem como de proteção da democracia. Segundo ele, a UENF é uma universidade que apresenta forte trabalho com a sociedade e isso é possível, entre outras coisas, porque o Darcy determinou que a universidade só teria professores com doutorado, que trabalham em pesquisas e as utilizam para educação e, principalmente, projetos de extensão.

Abertura - 07/03/2022
O evento ocorreu na Sala Alfredo Bosi do IEA, com mesas virtuais e transmissão ao vivo
No encerramento do evento, o diretor do IEA Guilherme Ary Plonski afirmou que a imagem que fica de Darcy é a imagem de inovador. Em continuidade às ideias do antropólogo, ele lembrou que construir uma sociedade baseada em liberdade, dignidade, justiça e compaixão não é uma tarefa individual, mas de sucessivas gerações.


O evento teve moderação de Naomar de Almeida Filho, titular da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica. O debate da primeira parte foi coordenado por Marcos Neira, diretor da Faculdade de Educação (FE) da USP. O debate da segunda parte, o painel "Darcy Ribeiro e a Educação Brasileira", foi coordenado por Isaac Roitman, professor emérito da UnB. A abertura foi feita pela coordenadora-geral da cátedra e vice-diretora do IEA, Roseli de Deus Lopes; Angela Dannemann, superintendente do Itaú Social, e Maria Arminda Arruda, vice-reitora da USP.

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP