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As implicações do direito humano de beneficiar-se da ciência

por Mauro Bellesa - publicado 29/06/2016 12:40 - última modificação 06/07/2016 09:36

Dois seminários em junho discutiram o direito de beneficiar-se da ciência, previsto em documentos da ONU, à luz do modelo de interação entre ciências e valores desenvolvidos por integrantes do Grupo de Pesquisa História, Filosofia e Sociologia da Ciência e da Tecnologia.
Marcos Barbosa de Oliveira, José da Rocha Carvalheiro, Hugh Lacey e Pablo Mariconda
Os expositores do primeiro seminário sobre o direito de beneficiar-se da ciência (a partir da esq.): Marcos Barbosa de Oliveira, José da
Rocha Carvalheiro, Hugh Lacey e Pablo Mariconda

O artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948, estabelece o direito de todos a participar dos avanços científicos e de seus benefícios.  Isso também é previsto pelo artigo 15 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela organização em 1966.

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No entanto, só a partir da primeira década deste século a ONU começou a se preocupar em elucidar a interpretação e as implicações desse direito.

Em 2009, a Unesco aprovou a "Declaração de Veneza sobre o Direito de Desfrutar dos Benefícios do Progresso Científico e de suas Aplicações". Em 2012, Farida Shaheed, relatora especial de Direitos Culturais do Conselho de Direitos Humanos da ONU, apresentou o relatório "O Direito de Desfrutar do Benefícios do Progresso Científico e de suas Aplicações".

Segundo a "Declaração de Veneza", é crescente a relevância desse direito e persistente a negligência em relação a ele, sendo necessária uma discussão entre todos os interessados visando a incrementar a consciência sobre sua implementação. O documento ressalta que instituições e organizações, inclusive as comunidades acadêmicas, devem cooperar com esse fim e cientistas e suas entidades devem manifestar o seu compromisso com esse direito.

Nos dias 13 e 27 de junho, o Grupo de Trabalho em Agroecologia organizou dois seminários dedicados especificamente a analisar as implicações desse direito e as tensões que ele quando examinado a partir do modelo da interação entre a atividade científica e valores (M-CV) desenvolvido por integrantes do Grupo de Pesquisa História, Filosofia e Sociologia da Ciência e da Tecnologia, do qual o grupo de trabalho faz parte.

No primeiro seminário, intitulado O Direito de Beneficiar-se do Avanço da Ciência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, além do alcance desse direito e de suas relações com o M-CV, foram discutidas suas consequências para a pesquisa médica e a área da saúde, as tensões entre esse direito e a ciência comercializada e as tensões entre a liberdade de pesquisa e a ampla participação democrática nas decisões sobre as prioridades a serem consideradas no trabalho científico.

Os expositores foram quatro pesquisadores do IEA: Hugh Lacey, Marcos Barbosa de Oliveira e Pablo Mariconda , os três integrantes do Grupo de Pesquisa Filosofia, Sociologia e História da Ciência e da Tecnologia, do qual o Grupo de Trabalho Agroecologia faz parte; e José da Rocha Carvalheiro, integrante do Grupo de Pesquisa/NAP Observatório da Inovação e Competitividade, sediado no IEA.

O segundo seminário elegeu a questão dos transgênicos como caso exemplar onde o direito a beneficiar-se da ciência é prejudicado por diversos fatores institucionais e interesses comerciais. O evento levou o nome O Direito de Beneficiar-se do Avanço da Ciência e os Transgênicos. Os expositores foram Hugh Lacey e Marijane Lisboa, docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da PUC-SP e ex-integrante (por quatro anos) da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio). A mediação foi de Pablo Mariconda.

Pablo Mariconda - Direito à Ciência
Pablo Mariconda

Tensões

No primeiro encontro, Mariconda disse que a Declaração de Veneza demonstra a intenção de esclarecer o que deve ser entendido por “participar dos benefícios da ciência”, mas "só fala dos benefícios, não diz que muitas vezes a ciência impõe malefícios, não diz o que fazer quando há impacto na vida de pessoas e coletividades".

Outro aspecto do documento questionado por Mariconda é o de "a 'pesquisa científica' muitas vezes aparecer na declaração como 'ciência e desenvolvimento', já dirigida industrialmente, e não como algo do plano do entendimento".

Segundo Mariconda, o documento é ambíguo quanto às aplicações do conhecimento científico, se são todas de natureza tecnológica ou não: "Numa passagem, usa tecnologia como sinônimo de aplicação científica, e é discutível a ideia de que tecnologia seja sempre resultado de aplicação científica".

Requisitos

Em sua exposição, Lacey explicou os conceitos e a estrutura do M-CV, do qual é um dos autores, e concluiu sua exposição destacando que o reconhecimento do direito à ciência exige que:

Hugh Lacey - Direito à Ciência
Hugh Lacey.
  • a pesquisa seja conduzida com um alcance suficiente de estratégias e não só com aquelas atualmente predominantes no avanço da ciência, que são comercialmente orientadas; isso para que, em princípio, todos possam beneficiar-se dos resultados da pesquisa e ninguém sofra prejuízos desproporcionais;
  • a pesquisa deve ser conduzida levando em conta o impacto das aplicações – com transparência, disponibilidade da informação relevante e sem conflitos de interesse –, para permitir a avaliação pública sobre até que ponto as aplicações estão de acordo com o direito de beneficiar-se da ciência;
  • as decisões a respeito das prioridades da pesquisa (e a adoção de quais estratégias) e das aplicações a serem introduzidas na vida cotidiana sejam tomadas em comissões com ampla participação pública, inclusive de representantes dos grupos desfavorecidos e marginalizados;

Lacey disse que o direito de participar do avanço da ciência e dele beneficiar-se tem conexões fortes com ideais da tradição científica (objetividade, inclusividade e equidade) que têm sido deixados de lado.

Ele afirmou que a pesquisa nas tecnologias comercialmente orientadas é cada vez mais financiada por corporações, com o apoio público sendo direcionado principalmente à pesquisa que visa a geração das inovações tecnocientíficas que possam contribuir para o crescimento econômico e ampliação da competitividade no mercado internacional. Dessa forma, "os ideais tradicionais tendem a ficar subordinados aos interesses do capital e do mercado, o que conduz ao enfraquecimento do direito à ciência".

José da Rocha Carvalheiro - Direito à Ciência
José da Rocha Carvalheiro

Saúde

José da Rocha Carvalheiro tratou do esforço internacional que acontece desde 2004 para que os registros de ensaios clínicos sejam de acesso livre. Ele disse que a grande liderança nesse movimento é a pesquisadora Ida Sim, atualmente de volta à Universidade da Califórnia em São Francisco, EUA.

Segundo ele, os ensaios clínicos são a mais valiosa fonte de evidências sobre a eficácia e a segurança de intervenções em saúde, "mas aqueles que não apresentam os resultados que interessam aos patrocinadores dos estudos não são divulgados".

Carvalheiro disse que a publicação dos resultados em publicações científicas está sujeita a vieses, "pois são privilegiados resultados estatisticamente significativos, obtidos a partir de grandes estudos e que não firam os interesses dos patrocinadores".

Para ele, "o registro dos protocolos dos ensaios em bases de acesso livre antes mesmo do recrutamento do primeiro voluntário é um meio de contrabalançar esse vieses".

Carvalheiro comentou que a questão foi debatida em vários fóruns internacionais até que, finalmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou a Internacional Clinical Triais Registry Plataform (ICTRP), destinada não apenas ao registro de ensaios clínicos com medicamentos, mas também de qualquer outro tipo de ensaio que envolva seres humanos, individual ou coletivamente.

No Brasil, o Ministério da Saúde promoveu debates que levaram à criação da Rede Brasileira de Ensaios Clínicos (ReBEC), desenvolvida em parceria com a Fiocruz e do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme) e com a observância dos padrões da OMS. Atualmente é discutida inserção da rede na ICTRP, informou Carvalheiro.

Marcos Barbosa de Oliveira - Direito à Ciência
Marcos Barbosa de Oliveira

Patentes

Tanto na saúde quanto em outras áreas, um dos mecanismos utilizados no cerceamento da circulação de informações é o da propriedade intelectual. Segundo Marcos Barbosa de Oliveira, essa proteção aos direitos de autoria, prevista no inciso 2 do artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos, tende a limitar o direito de beneficiar-se da ciência previsto no inciso 1 do mesmo artigo.

"O principal argumento (ou o único) dos defensores dos direitos de propriedade intelectual é de que eles incentivam os inventores, os produtores de bens intelectuais", comentou Oliveira, para quem essa justificativa deve ser chamada de "argumento do financiamento", pois o que move "os verdadeiros artistas e cientistas é o desejo de criar algo novo, e para isso precisam de financiamento".

Ele destacou que a indústria farmacêutica utiliza o argumento do incentivo, dizendo que precisam das patentes para ter lucros suficientes para desenvolver novos medicamentos. "Apesar de sujeito a vários questionamentos, o argumento das empresas é lógico e tem de ser levado em conta em cada caso."

Oliveira disse que as pessoas contrárias aos direitos de propriedade intelectual apresentam vários argumentos, entre os quais o de que a única forma de resolver os problemas originados desse direito é extingui-lo. "O problema com esse tipo de argumento é que ele não leva em conta o argumento do financiamento", afirmou.

A boa notícia, segundo Oliveira, é o surgimento de fontes alternativas de financiamento, como o crowdfunding, que "tem se desenvolvido rapidamente na esfera das artes e está começando na esfera científica". Há também a proposta do Nobel de economia Joseph Stiglitz, que sugere a instituição de prêmios no lugar de patentes, segundo o expositor.

A área que pode ser vista com mais otimismo, de acordo com Oliveira, é a de direitos autorais de artigos científicos, graças aos movimentos de acesso livre e ciência aberta, "motivados pela concepção de que todos os resultados das pesquisas científicas, especialmente as financiadas por recursos públicos, devem ser acessíveis gratuitamente a todos".

Transgênicos

No segundo seminário, Lacey disse que uma distorção nas avaliações que consideram o uso de transgênicos seguros é o fato de oferecerem evidências dessa segurança a partir do uso dos transgênicos em condições específicas. Essas avaliações seriam adequadas, segundo ele, se as condições fossem aquelas reais de uso dos transgênicos.

Ele ressaltou a importância de que sejam conduzidas pesquisas sobre todos os mecanismos que, em função do uso de transgênicos possam prejudicar a saúde humana, o meio ambiente e os arranjos sociais.

Segundo ele, esses mecanismos derivam dos papéis que os transgênicos assumem nos contextos atuais de seu uso. Lacey disse que a caracterização dos transgênicos como "inovações tecnológicas" possibilitadas pela biologia molecular e biotecnologia não explica todos os efeitos que eles podem ocasionar em função da forma como são utilizados. Em seu entender, é preciso considerá-los também como:

  • componentes integrais dos agroecossistemas em que estão inseridos;
  • componentes de pacotes que reúnem as partes necessárias dos agroecossistemas;
  • objetos socioeconômicos (comprados e vendidos no mercado e com usos controlados por direitos de propriedade intelectual, incorporando em alto grau os valores do progresso tecnológico e os valores do capital e do mercado).

Para Lacey, o reconhecimento do direito de beneficiar-se do avanço da ciência no caso dos transgênicos implica que nas deliberações devem ser considerados os resultados das pesquisas sobre todos os efeitos potenciais identificados como prejudiciais, segundo as perspectivas de valores de qualquer grupo de pessoas, especialmente dos grupos desfavorecidos e marginalizados. E para que as decisões possam refletir um consenso ("ou pelo menos um compromisso") democrático, devem ter a participação de representantes de todos esses grupos, concluiu.

CNTBio

Essa baixa representatividade da sociedade civil e de críticos ao uso de transgênicos na CNTBio foi questionada Marijane Lisboa. Ela destacou que atualmente a comissão é composta por 12 especialistas indicados pelo ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, representantes de vários ministérios, um representante do setor de biotecnologia ("que não pode ser considerado da sociedade civil, pois representa a indústria") e cinco representantes de cinco setores da sociedade civil (agricultura familiar, consumidores, ambientalistas, saúde do trabalhador e movimentos da saúde).

Ela disse que até 2007 as reuniões da comissão eram fechadas: "Naquele ano, agendou-se uma reunião para decidir sobre o milho transgênico e dois integrantes do Greenpeace se recusaram a sair da sala onde ela ocorreria. Depois disso, a justiça decidiu que as reuniões deveriam ser públicas. Agora as atas e demais documentos da comissão são acessíveis a todos".

No entanto, Marijane considera frustrante a experiência de participar da comissão, onde as decisões que antes eram tomadas com a aprovação de 2/3 dos integrantes agora precisam apenas de maioria simples (metade do total de integrantes mais um voto). Ela disse que a lei previa recurso sobre qualquer decisão ao Conselho Nacional de Biossegurança, composto por diversos ministros, "mas quando da aprovação do milho transgênico, a Anvisa e o Ibama recorreram a ele e tiveram como resposta que a CNTBio é o órgão competente para decidir sobe as questões relativas a transgênicos".

Marijane disse que a estrutura da CNTBio impede o estudo de impacto ambiental dos transgênicos e que suas decisões não deveriam ser vinculantes e baseadas em relações descontextualizadas dos vários fatores envolvidos. Para ela, o sistema é constituído para aprovar a produção de transgênicos, cabendo aos representantes da sociedade civil o papel de apenas documentar o processo e informar a sociedade sobre os acontecimentos. "Os transgênicos foram introduzidos no Brasil ao arrepio de qualquer ciência", afirmou.

Mariconda concordou com a afirmação e disse que o procedimento da CNTBio é anticientífico. Lacey acrescentou que a comissão é anticientífica se for considerado que ela não leva em consideração os postulados da pesquisa multiestratégica, categoria especificada no modelo de interação entre ciências e valores que ele e Mariconda desenvolvem. Mas se considerada a outra categoria de pesquisa identificada no modelo, aquela comercialmente orientada, "aí pode-se dizer que a CNTBio é plenamente científica", disse Lacey.

Marijane destacou que na verdade há uma questão anterior à aprovação ou não dos transgênicos: "Precisamos de transgênicos? Esse é o problema da agricultura? O único objetivo para alguém desenvolver um transgênico é tornar-se proprietário de uma planta".

Fotos:  Leonor Calazans/IEA-USP