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O Princípio da Precaução, ainda sem aplicação efetiva

por Sylvia Miguel - publicado 06/04/2016 15:25 - última modificação 29/04/2016 11:02

Especialistas criticam a “cientificidade” de pareceres técnicos e dos estudos sobre riscos à saúde e ao ecossistema.
Hugh Lacey - PP

Hugh Lacey critica pareceres técnicos sobre saúde e ecossistema.

O Princípio da Precaução (PP), formulado pelos gregos na antiguidade, chegou aos tempos modernos sob o formato de um protocolo internacional, proposto na Declaração da Rio 92 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Esse e outros acordos internacionais e diversas leis preveem ações antecipatórias para a proteção da saúde das pessoas e dos ecossistemas. A aplicação desse princípio, em geral, incorpora os conceitos de justiça, equidade, respeito, senso comum e prevenção.

Muitas vezes, porém, a aplicação do Princípio da Precaução, que incorpora por exemplo, direitos humanos, entra em conflito com o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da Organização Mundial do Comércio (SPS, na sigla em inglês).

Não só isso: as formas de aferir riscos causados por inovações tecnocientíficas – levadas a cabo por organismos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Coordenação-Geral da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio, do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação), por exemplo nem sempre estão em consonância com as chamadas “boas práticas científicas” e, com isto, a cientificidade desses órgãos torna-se questionável.

Essas foram algumas das conclusões dos debatedores presentes no seminário O Princípio da Precaução: Considerações Legais, Políticas e Econômicas – E suas Interações com os Resultados da Pesquisa Científica.

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1º encontro:

Notícia:

O Princípio da Precaução (PP): Abordagens de Precaução na Avaliação e Gerência dos Riscos Causados pelo Uso de Inovações Tecnocientíficas

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Realizado no dia 04 de abril pelo Grupo de Pesquisa Filosofia, Sociologia e História da Ciência e da Tecnologia do IEA, o debate reuniu a professora de direito público e econômico Solange Teles da Silva, da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), a advogada Fernanda Viegas Reichardt, membro do Grupo de Pesquisa,  Deisy de Freitas Lima Ventura, professora de direito internacional do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, e o professor visitante do IEA Hugh Lacey, da Swarthmore College. O coordenador do Grupo de Pesquisa, Pablo Mariconda, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, moderou o debate.

O professor Lacey lembrou que qualquer afirmação sobre “certeza científica” soa estranho para os filósofos da ciência, porque os métodos empíricos nunca podem assumir a posição de “certeza” completa, no sentido atribuído por Descartes ou Aristóteles. No entanto, as formulações sobre o PP feitas em 1992 falam de “falta de certeza científica”. Além disso, o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias  da  OMC, menciona os termos “certeza científica” e “alta probabilidade científica”.

O uso de tais termos naqueles documentos tem sido fonte de tensões devido à própria controvérsia do que é ou não certeza científica, disse Lacey. Além disso, os conceitos do PP previstos na Declaração da Rio 92 e na SPS da OMC entram em conflito quando um defende direitos humanos e o outro, os interesses do capital e do mercado, afirmou.

Transgênicos

“Não há evidências científicas de que transgênicos de fato prejudicam a saúde e o meio ambiente. Mas se transgênicos são bons, porque retiraram a indicação de alimento transgênico na rotulagem dos produtos?”, questionou a professora Fernanda Reichardt.

Fernanda Reichardt

Fernanda Reichardt: "Se transgênicos são bons, porque tiraram rotulagem?"

O Princípio da Precaução da Declaração da Rio 92 e outros documentos nesse âmbito deixam claro que quando existe ameaça de danos graves ou irreversíveis aos ecossistemas, a ausência de certeza científica não poderá ser usada como razão para postergar medidas para prevenir a degradação ambiental ou evitar ameaças à saúde humana.  Mas isso não tem sido aplicado no que diz respeito aos transgênicos, mostrou a especialista em direito ambiental e professora do Mackenzie, Solange Teles da Silva.

Os estudos toxicológicos em transgênicos submetidos para aprovação nos órgãos competentes também foram questionados. Segundo Mariconda, os estudos apresentados pelas empresas mostram dados insuficientes para uma avaliação toxicológica.

“As amostras em todas as liberações de transgênicos não sofreram a carga de agrotóxico que sofreriam no campo porque estão sob condições de laboratório. Todos sabemos que isso falseia o teste. Mas isso é sistematicamente desconsiderado nos pareceres”, disse Mariconda.

Solange Teles da Silva - PP

Solange Teles da Silva: agências operam num regime de "portas giratórias"

“De fato, a maioria dos membros da CTNBio vai dizer que a comissão decide sobre o gene modificado e não sobre a questão do agrotóxico. Então, a comissão não decide sobre o pacote tecnológico. Ora, a alteração do gene é feita justamente para a planta aguentar a carga de agrotóxico. Isso não se fala, mas os testes são feitos sobre o gene modificado e não na planta após o banho do agrotóxico”, disse a professora Teles da Silva.

Nessa questão, a ANVISA fica vinculada à decisão da CTNBio, segundo a especialista. “Entretanto, na CTNBio nunca foi solicitado um estudo prévio de impacto ambiental. Mas como todos sabemos, o Brasil é campeão mundial de uso de agrotóxico. As consequências sobre a saúde e o meio ambiente estão aparecendo e continuarão a aparecer, como, por exemplo, o aumento dos casos de câncer”, disse a professora.

“Sob essas circunstâncias, é possível questionar a cientificidade da ANVISA, da CTNBio e outros organismos do gênero”, disse Mariconda.

A professora Teles da Silva citou o termo “porta giratória” para se referir ao modo como  operam alguns dos organismos responsáveis, entre outras coisas, pelos pareceres técnicos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente.

“Muitos pesquisadores que atuam com genes transgênicos estão na CTNBio e, portanto, há um interesse no desenvolvimento da biotecnologia por membros que integram essa comissão. Por outro lado, existe aquela situação de que, num dia, um técnico da agência vira consultor e um consultor vira técnico, numa troca que os torna comprometidos. Portanto, a demanda para a ciência brasileira é que precisamos exigir órgãos verdadeiramente independentes realizando pesquisa nessa área”, disse Teles Silva.

O professor Mariconda sugeriu que comissões independentes ligadas a pareceristas internacionais fossem constituídas para as avaliações de impactos e riscos. Na opinião do professor Lacey, entretanto, a vinculação a órgãos internacionais poderia não funcionar devido à visão e o atrelamento que possivelmente teriam quanto aos padrões da OMC.

Deisy Ventura - PP

Para Deisy Ventura, é preciso mudar práticas sociais e políticas.

Para a professora Reichard, o princípio da precaução não procura estabelecer um nível de contaminação seguro, e sim, eliminar os riscos cuja nocividade é ainda incerta no plano científico. “Todas as alternativas possíveis devem ser consideradas para evitar a degradação ambiental,  entre elas a proibição ou paralisação do empreendimento pretendido”.

Na área da saúde, existe a tradição da cultura da precaução e faz pouco tempo que o princípio da precaução na saúde entrou numa seara complexa que é a dos direitos humanos, porque o PP tem sofrido um embate com a questão do comércio internacional, disse Ventura.

“É preciso mudar as práticas sociais e políticas, pois há muito mais do que a aplicação jurisprudencial e jurídica do principio da precaução”, disse a professora Deisy Ventura, do IRI-USP, que abordou o PP no campo da saúde nas esferas internacionais e nacionais.