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Olhares sobre o golpe de 1964

por Flávia Dourado - publicado 29/04/2014 11:55 - última modificação 31/08/2021 11:02

Lançada em abril, a edição 80 da revista "Estudos Avançados" traz diferentes perspectivas sobre o período do regime militar brasileiro no dossiê "50 Anos do Golpe de 1964".
Repressão policial na Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968
Repressão policial durante a Passeata dos Cem Mil,
no Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1968

O contexto político, social e econômico em que seu deu o golpe de 64, bem como a resistência, a censura, a produção artística e a atuação da imprensa nacional e internacional em relação ao regime imposto pelos militares são os principais temas do dossiê "50 Anos do Golpe de 1964" da edição 80 da revista "Estudos Avançados", lançada em abril.

De acordo com Alfredo Bosi, editor da publicação, o conjunto de textos busca rememorar o episódio num momento em que o início da ditadura integra a memória pessoal e coletiva de alguns, mas figura apenas como fato histórico para outros. "Daí a oportunidade de um dossiê que reconstitua o evento e esclareça as gerações jovens e as já entradas na idade madura", destaca.

O dossiê ocupa 180 das 322 páginas da edição e é composto por 13 blocos de textos de gêneros e formatos variados, entre eles crônicas, comentários políticos, discursos, reportagens e artigos acadêmicos, que interpretam fatos ligados ao golpe e ao período da ditadura militar sob diferentes perspectivas. A íntegra digital da edição já está disponível na Scientific Electronic Library Online (SciELO). A versão impressa custa R$ 80,00 e pode ser adquirida no IEA ou nas livrarias credenciadas.

 

Capa da revista 'Estudos Avançados' 80MEMÓRIAS DO GOLPE

Em "Fortuna e Virtù no Golpe de 1964", o historiador José Murilo de Carvalho escreve do ponto de vista de um militante de esquerda que se viu surpreendido pela "facilidade da vitória dos conspiradores". O relato, escrito em tom pessoal, entrelaça os fatos históricos com suas memórias particulares, dando forma a um texto que mistura sua perspectiva de historiador a sua perspectiva de fonte.

Carvalho contesta a teoria de que o sucesso do golpistas deveu-se à inevitabilidade histórica. "Restou-me da experiência traumática a sensação de que o golpe fora produto de ações e omissões de atores políticos, e não de forças sociais irresistíveis", destaca. De acordo ele, tratar a queda do então presidente João Goulart como algo inevitável retira dos atores políticos a responsabilidade pelos acontecimentos e pelos possíveis erros cometidos. Afirma, ainda, que, ao subestimar as forças em jogo, Goulart e seus aliados teriam facilitado o golpe. "A responsabilidade principal pelo golpe foi dos que o deram e não dos que o sofreram. Os vencedores contaram, no entanto, com a ajuda dos perdedores".

Já em "A Sociedade Cindida", o historiador Jacob Gorender (1923-2013), que foi professor visitante do IEA, aborda as dificuldades que marcaram o governo de Goulart. Nesse texto originalmente publicado em 2004 na revista "Teoria e Debate", o autor rememora os eventos que culminaram no golpe, desde a tentativa de impedir a posse do presidente; passando pela instabilidade econômica; pelo movimento de sindicalização dos trabalhadores rurais e pela organização das forças operárias e democráticas, que reivindicavam reformas de base; pela postura indefinida de Goulart, mais tarde substituída por um posicionamento claro a favor da classe trabalhadora; e pela crescente oposição da classe média, expressa na Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

Para Gorender, tratava-se de um cenário marcado pela polarização entre apoiadores e opositores de Goulart, o que configurava uma sociedade claramente cindida: "De um lado, a favor do rumo progressista e democrático, os trabalhadores. Do lado contrário, a classe média em peso. O que chamamos de golpe militar teve inequívoco e poderoso apoio social. Funcionou como contrarrevolução preventiva."

EXILADOS

A atuação de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) exilados em Paris durante a ditadura militar foi discutido por Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em "No Exílio, Contra o Isolamento: Intelectuais Comunistas, Frentismo e Questão Democrática nos Anos 1970".

Napolitano destaca o protagonismo intelectual, político e cultural dos esquerdistas brasileiros em exílio na capital francesa, com foco no papel que desempenharam na denúncia das torturas e mortes de opositores, no fortalecimento das frentes de resistência ao regime militar e na defesa da anistia de presos e exilados.

Segundo o autor, esse frentismo entra em crise quando a abertura é aprofundada, devido à fragmentação das forças esquerdistas entre comunistas, trabalhistas e petistas. "Enquanto a esquerda se digladiava, a velha tradição de conciliação liberal-moderada conduzia a transição, mostrando que ainda era mais forte do que se pensava".

O PAPEL DA IMPRENSA

Um artigo e três conjuntos de textos referem-se, direta ou indiretamente, ao desempenho da imprensa tanto nos momentos que sucederam o golpe quanto na sustentação da ditadura. Em "A Mídia e o Golpe Militar", Audálio Dantas, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, analisa o papel da grande imprensa no estabelecimento da ditadura militar, que teve início nos anos 1950, com uma campanha contra o então presidente Getúlio Vargas, e se estendeu aos esforços para desestabilizar o governo de Goulart, ao respaldo ao golpe em nome do combate ao comunismo e à submissão à autocensura e à censura prévia imposta pelo Ato Institucional nº 5, segundo o jornalista.

Dantas parte do lançamento, em 1951, do jornal Última Hora, que apoiava Vargas, para alinhavar a relação entre os grandes jornais do eixo Rio-São Paulo e às sucessivas crises que culminaram no golpe e na instalação da ditadura. De acordo com ele, esses jornais contribuíram para o engajamento da classe média no movimento golpista; apenas um deles, o Última Hora, não teria aderido ao movimento militar. Já o Correio da Manhã, que inicialmente havia apoiado golpe, teria passado a informar os leitores sobre a violência dos golpistas. Ambos sofreram represálias pela oposição que fizeram ao regime.

No Correio da Manhã foram publicadas pela primeira vez, nos dias que sucederam ao golpe, as três crônicas reunidas no texto "Crônicas Políticas", no qual Carlos Heitor Cony fala de sua percepção pessoal sobre a queda de Goulart e a tomada de poder pelos militares. O escritor lamenta a grande adesão ao golpe e os festejos em torno da deposição do presidente, assim como a facilidade e a falta de resistência com que a ditadura foi estabelecida.

Outro conjunto de textos é o "Comentários Sobre Política Internacional", que agrupa quatro crônicas do jornalista e escritor Otto Maria Carpeaux (1900-1979). Uma delas comenta a declaração de Thomas C. Mann (1912-1999), quando subsecretário de Estado do governo americano, de que os Estados Unidos não fariam oposição sistemática a golpes militares na América Latina.

Além da atuação da mídia brasileira, a edição explora o enfoque adotado pela imprensa internacional, mais especificamente pela imprensa americana, ao reportar a queda de Goulart. "O Golpe de 1964 nas páginas do New York Times" contém reportagens de três jornalistas publicadas no diário americano nos dias que se seguiram à tomada de poder pelos militares. Todos os textos destacam a simpatia dos Estados Unidos pelos golpistas e a predisposição do país em reconhecer o novo governo.

PRODUÇÃO CULTURAL

Em "Proíbo a Publicação e a Circulação...' Censura a Livros na Ditadura Militar", Sandra Reimão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, traça um panorama dos mecanismos censórios do governo militar, apresenta uma relação de livros vetados e discute a repercussão da censura de obras, sobretudo de autores brasileiros.

O universo editorial durante a ditadura também foi tratado no artigo "Livros, Editoras e Oposição à Ditadura", no qual Flamarion Maués fala do surgimento e da revitalização de editoras de oposição ao regime militar no período de abertura política. De acordo com ele, essas editoras "representaram um canal de expressão e organização para setores da oposição que buscavam formas de atuar politicamente, mesmo com os constrangimentos e limitações que a ditadura impunha à participação e à denúncia do autoritarismo no Brasil".

A produção cultural relacionada com a ditadura militar é enfocada, ainda, em outros dois textos: "Cenas do Golpe de 1964 em Cinco Documentários", de Paulo Roberto Ramos, e "Isto Não É uma Obra: Arte e Ditadura", de Julia Cayses. O primeiro retoma eventos que antecederam e sucederam o golpe a partir de cenas extraídas de cinco documentários sobre personagens ligados àquele momento político: os ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubistchek; o jornalista militante de esquerda Celso Castro; o presidente da Ultragaz, empresa que apoiou a ditadura, Henning Albert Boilesen; e os Estados Unidos, que tiveram participação ativa na sustentação do regime militar no Brasil.

O segundo texto trata do caráter revolucionário da arte durante a ditadura. De acordo com a autora, a produção artística do período voltou-se para o questionamento da propriedade privada, da ideia de cultura como mercadoria e do valor de troca, o que demonstraria uma postura de boicote à relação capitalista entre produtores e consumidores de obras de arte.

REPARAÇÃO

Depois de conduzir o leitor por uma viagem pela história, o dossiê "50 Anos do Golpe de 1964" traz um texto voltado para o momento atual, quando se buscam formas de reparar, concreta ou simbolicamente, os males cometidos pelo Estado brasileiro durante o regime militar. "Congresso Nacional: Devolução Simbólica do Mandato Presidencial a João Goulart" reúne os discursos pronunciados pelos senadores Randolfe Rodrigues (PSOL) e Pedro Simon (PMDB) no encontro, realizado no dia 8 de dezembro de 2013, para anular a declaração de vacância da Presidência República que selou o golpe no 2 de abril de 1964.

O dossiê é finalizado com uma "Linha do Tempo da Resistência à Ditadura Militar no Brasil", que integra o catálogo do projeto Resistir é Preciso, iniciativa do Instituto Vladmir Herzog. A cronologia engloba eventos de 1960 a 1985, abrangendo fatos do contexto interno e externo dos anos que antecederam o golpe até a redemocratização, mais de duas décadas após a instalação da ditadura.

OUTRAS SEÇÕES

Além do dossiê "50 Anos do Golpe de 1964", o número 80 de "Estudos Avançados" inclui os minidossiês "Literatura", composto por dois textos, um deles de autoria de Bosi; e "Integridade e Inovação Científica", com quatro textos que ampliam as discussões travadas no ciclo de debates Ética e Universidade, promovido em 2012 e 2013 por parceria entre o IEA-USP e a Comissão de Ética da Universidade, e um artigo sobre as interfaces entre biossegurança, bioética e desenvolvimento tecnológico. A edição conta também com uma seção de comentários e outra de resenhas, com dois e seis textos, respectivamente.

Foto: Evandro Teixeira