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Nova outorga do Sistema Cantareira traz retrocesso, segundo pesquisadores

por Mauro Bellesa - publicado 05/06/2017 16:50 - última modificação 05/06/2017 16:52

Seminário "Renovação da Outorga do Sistema Cantereira" foi realizado no dia 10 de maio de 2017.
Reservatório Paiva Castro
Reservatório Paiva Castro, um dos seis que formam o Sistema Cantareira, que terá sua outorga renovada no fim de maio

No dia 31 de maio foi publicada a nova outorga do Sistema Cantareira à Sabesp. Trata-se da permissão dada à companhia para captar a água dos reservatórios do sistema para abastecimento público por mais 10 anos. No entanto, vários pesquisadores consideram que as novas normas representam um retrocesso em relação à concessão em vigor até este mês.

A outorga atual foi concedida em 2004 pelo Departamento de Águas e Esgoto (DAEE) do Estado de São Paulo (DAEE), por delegação da Agência Nacional de Águas (ANA), uma vez que parte da área de captação pertence a Minas Gerais. O período da concessão terminou em 2014, todavia, devido à crise hídrica, sua validade foi prorrogada duas vezes, primeiro até outubro de 2015 e depois até maio de 2017.

Apesar de o processo de formulação e entrada em vigor da nova outorga estar em sua reta final, o Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade do IEA decidiu realizar um seminário para debater as principais características da nova concessão, sobretudo os aspectos que consideram questionáveis.

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Os expositores do seminário Renovação da Outorga do Sistema Cantareira, realizado no dia 10 de maio, foram: o engenheiro hidráulico e de saneamento Antonio Carlos Zuffo, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp; a economista, socióloga e geógrafa Ana Paula Fracalanza, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da USP e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (Procam) do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP; e o biólogo e ambientalista João Paulo Capobianco, presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). A coordenação foi do geólogo e comunicólogo Pedro Luiz Côrtes, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Côrtes e Ana Paula integram o grupo de pesquisa promotor do seminário.

Além de coordenar o encontro, Côrtes fez a exposição inicial, na qual relatou o histórico do sistema Cantareira, das outorgas à Sabesp e da crise hídrica de 2013/2014. Também destacou os principais pontos polêmicos da nova concessão.

Ele afirmou que o consumo de água da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) deve aumentar caso a tendência de crescimento da população se mantenha e os usuários não sejam mais bem orientados e convencidos a fazer um uso racional da água.

Pedro Luiz Côrtes - 10/5/2017
Pedro Luiz Côrtes

Historiando sobre a recente crise hídrica, ele disse que a partir de maio de 2012 a quantidade de água que entrava no Sistema Cantareira já era menor do que o pior registro até então conhecido, verificado nos anos 50. "No entanto, mesmo com essa redução drástica, o consumo ficou superior ao captado a partir de maio de 2013, porque se acreditava que o verão seria chuvoso o suficiente para repor a água." Segundo Côrtes, essa situação demandava uma gestão melhor do recurso do que a realizada.

Períodos de seca

“O secretário de Saneamento e Recursos Hídricos à época, Benedito Braga, falava de uma ‘situação climática inusitada’.” Para verificar se isso realmente ocorrera, Côrtes consultou os dados colhidos pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP sobre as precipitações na RMSP, em busca de períodos com redução significativa das chuvas.

“Não foi uma situação climática inusitada, os períodos de estiagem severa são relativamente constantes.  O volume de água que caiu foi até maior do que em outros períodos. A gestão do sistema de abastecimento deveria contar com a ocorrência desses episódios.”

Sobre a nova outorga, Côrtes explicou que ela estabelece faixas de operação do sistema dependentes do volume dos reservatórios. No caso de volume igual ou superior a 60%, a captação é será a normal, de 33 m3/s. O total captado vai sendo reduzido de acordo com o diminuição do volume nas  quatro faixas seguintes (atenção, alerta, restrição e especial), caindo para até 15,3 m3/s quando o volume do sistemas estiver abaixo de 20% (faixa especial).

Segundo o pesquisador, as outorgas têm apresentado o grave erro de não levar em consideração os prognósticos climáticos para os meses subsequentes ao período de estiagem, o que garantiria melhor administração da água disponível. Ele espera que a nova outorga contenha essa avaliação futura.

Antonio Carlos Zuffo - 10/5/2017
Antonio Carlos Zuffo

Zuffo concorda com Côrtes nessa questão, “pois observa-se que ao longos dos últimos 100 anos houve períodos longos de precipitação média alta ou reduzida.” Explicou que a perspectiva de enchimento dos reservatórios pós-estiagem, no verão 2012/2013, não se concretizou porque os efeitos do El Niño não atingiram a região.

Subdimensionamento

Segundo ele, quando o Sistema Cantareira foi projetado, levaram-se em consideração dados de 1935 a 1970, “período em que as precipitações foram em média 15% mais baixas do que a média da série histórica de cem anos; além disso, a alternância entre precipitações mínimas e máximas ocorreram em períodos curtos, por isso os reservatórios necessários para regularizar a vazão são menores”.

A partir de 1976, houve um aumento de 15% na média das precipitações, “por isso na outorga de 2004 a captação passou de 33 m3/s para 36m3/s". Todavia, as chuvas aumentaram, mas se concentraram em número menor de dias, o que "provocou enchentes nos períodos chuvosos seguidos de secas mais prolongadas,  que exigiram maior exploração dos reservatórios; isso indica a falta de volume de regularização do Sistema Cantareira".

Ele acredita que as próximas décadas serão de precipitação média menor, com a redução na produção de água de todos os sistemas do Sudeste. “Viveremos o que já aconteceu entre as décadas de 30 e 70.” Nas duas épocas de renovação da outorga houve seca, comentou. “Se esse intervalo de aproximadamente 11 anos se mantiver, haverá seca entre 2025 e 2027.”

Modelo de gestão

A gestão dos reservatórios do Sistema Cantareira era feita num modelo conservador, com menor risco de falta de água para o abastecimento, mas baixa eficiência operacional, disse Zuffo. Diante das críticas que eram feitas, resolveu-se adotar um modelo mais arrojado, no qual é assumido maior risco, “por isso passamos por um período de dois anos seguidos de enchentes [2009 e 2010] e depois dois anos seguidos de falta de água [2014-2015].”

Zuffo destacou que a nova outorga estabelece que a descarga mínima para as bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Baicas PCJ) não será mais de 3 m3/s, mas de 0,25 m3/s, “um regime de restrição hídrica para uma área do estado com uma importante região metropolitana (Campinas), que ficará limitada em seu desenvolvimento por falta de água.”

Ele questionou o fato de novamente a outorga considerar apenas a quantidade de água e não sua qualidade. “Em abril de 2014, a vazão dos rios caiu, mas a quantidades de efluentes não. Com isso, houve o aumento da poluição e a consequente morte de dezenas de toneladas de peixe. Isso levou o Ministério Público a suspender o Banco de Águas e determinar uma descarga maior nas Bacias PCJ, para melhoria da qualidade da água.”

Recuperação

Antes da crise, eram retirados mais de 36 m3/s e agora são distribuídos apenas 24 m3/s, de acordo com o pesquisador. "Isso acontece por causa da redução de consumo em torno de 30% que ainda se mantém. Graças a isso houve a recuperação do Sistema Cantareira, não  às precipitações nos últimos dois períodos chuvosos, que foram abaixo da média.”

Para Zuffo, se houver clima extremo, as Bacias PCJ vão sofrer tanto em períodos de excesso quanto de falta de chuva. “Seria preciso realizar obras para garantir o abastecimento futuro das bacias: interligação dos reservatórios Jaguari (na Bacia do rio Paraíba do Sul) e Atibainha, e construção dos reservatórios Pedreira (no rio Jaguari) e Duas Pontes (Bacia do rio Camanducaia).”

Ana Paula Fracalanza - 10/5/2017
Ana Paula Fracalanza

Ana Paula considera que o processo de adoção da nova outorga é um contraponto ao de 2004, “quando houve um discussão bastante ampla sobre o uso da água”.

Ela disse que em 2003, quando a outorga concedida em 1974 estava para vencer, já vigoravam a política nacional e a política paulista de recursos hídricos e houve um debate como seria a renovação. “Já estávamos num governo democrático, os comitês de bacia discutiam com a sociedade civil e houve a participação de vários atores sociais na discussão. A região de origem da água [Bacias PCJ] foi contemplada com o recebimento de 5 m3/s do Sistema Cantareira.”

Em sua opinião, a análise da outorga de 2004 demonstra que ela foi feita com consenso político, adequação funcional e observância das normas. “Mas isso não aconteceu durante a crise hídrica, que chamo de 'crise de abastecimento entre 2014 e 2017'.”

Continuidade da crise

Um dos motivos para ela afirmar que a "crise de abastecimento” ainda perdura é o fato de ter verificado no site da Sabesp, no dia 8 de maio, que há regiões da RMSP onde ainda há restrição de fornecimento entre 22/23h até as 4h do dia seguinte.

“No momento, estamos com 65% do volume dos reservatórios preenchidos, o que se enquadra na faixa normal da nova outorga, que permitirá a captação de 33 m3/s. No entanto, a Sabesp está retirando apenas 24 m3/s." Para ela, isso é outro indicador de que a “crise de abastecimento” continua.

Ana Paula afirmou que pela proposta da nova outorga, não haverá uma garantia de fornecimento de água para as Bacias PCJ. Outro retrocesso, segundo ela, é o fato de, ao contrário da outorga de 2004, a nova concessão não prever o acompanhamento de situações emergenciais pelos Comitês das Bacia PCJ e AT (Alto Tietê), DAEE e ANA, que serão apenas comunicados sobre a situação. “Isso já aconteceu durante a crise hídrica.”

A falta de transparência nesse momento de regulamentação da nova outorga revela-se no fato de não haver explicações sobre por que, num faixa normal de volume útil, não são captados 33 m3/s, mas sim 24 m3/s. “Se a redução de pressão nas tubulações durar para sempre, será criada uma injustiça socioambiental com quem vai continuar a ter dificuldade para a obtenção de água.”

João Paulo Capobianco - 10/5/2017

Sustentabilidade

Para Capobianco, a questão da outorga “deve ser vista no contexto geral da gestão da água como um bem socioambiental vital para a sociedade e trata-se de uma inflexão clara entre democracia e sustentabilidade”.

“A participação da sociedade é central para demonstrar o quanto a desconexão entre esses dois fatores pode ser danosa para a gestão desse recurso e, por consequência, para a sociedade.”

Segundo ele, a segurança hídrica envolve pelo menos três aspectos: conservação e restauração de mananciais; investimento em saneamento e reuso; e incentivos econômicos para conservação e recuperação. “Se analisarmos a situação de São Paulo, vamos descobrir que temos uma gestão completamente incompetente em todos esses aspectos.”

Para ele, é fundamental que a outorga, a tarifa e o licenciamento ambiental estejam integrados como ferramenta da sociedade para fazer uma intervenção estruturante na gestão dos recursos hídricos com a perspectiva da sustentabilidade.

Tarifa

Apesar de a nova outorga estar definida, Capobianco considera que "ainda há oportunidade de discutir a tarifa, processo que se inicia agora e deve durar um ano, com a convocação de audiências públicas".

A versão da segurança hídrica que prepondera na gestão pública é a da oferta de água, criticou. “Na verdade, todo investimento realizado pelo poder público nessa questão, e potencializado pela crise hídrica, foi aplicado na transposição de bacias para trazer água de regiões mais distantes, mais água para ser contaminada e perdida nas tubulações.”

Disse também que é preciso discutir o fato de a outorga não ser onerosa, uma vez que a água, para ser produzida, demanda uma série de cuidados. “Ela vem da natureza para ser coletada, distribuída e cobrada, mas ela não vem de graça, há condições necessárias para que ela continue fluindo.”

“O que acontece é que quando se fala de outorga, as discussões são sobre volume de água, como se esse volume fosse uma garantia para sempre e como se a água viesse do nada. A empresa vai pegar essa água, tratar (porque ela degrada) e distribuir, mas não paga nada por isso. Os valores pagos aos comitês de bacia e outros pagamentos são irrisórios.”

Capobianco afirmou que, "ao contrário da opinião de várias pessoas, o IDS considera que a outorga do direito de uso deveria prever além de qualidade também a disponibilidade dos recursos, ou seja, o cuidado com os mananciais"

Durante o debate, Pedro Jacobi, coordenador do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade e professor do Procam, comentou que a participação da sociedade é fundamental para que ela seja corresponsável pelas decisões: “Se ela não participa, aceita uma tutela, que poderá ser tecnocrática ou economicista.”

Para ele, a outorga não é apenas uma questão de métrica, mas de definir um caminho para a adoção de uma agenda fundamental de discussão sobre a disponibilidade da água. “E não é só uma avaliação de efeitos do El Niño e da La Niña, mas de explicitações de que os eventos extremos são cada vez mais recorrentes e mais próximos entre si, independentemente dos ciclos citados no seminário.”

Fotos: 1) OS2Warp/Wikimedia Commons; 2, 3, 4 e 5, Leonor Calasans/IEA-USP