Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Pesquisa em humanos no Brasil poderá avançar com nova legislação

Pesquisa em humanos no Brasil poderá avançar com nova legislação

por Sylvia Miguel - publicado 17/02/2016 17:50 - última modificação 04/03/2016 13:18

Formação específica para atuar na aprovação de novos testes é crucial no processo de descentralização da estrutura reguladora da pesquisa clínica, afirmam professores durante debate no IEA.

As dificuldades de realizar pesquisas em humanos no Brasil, as questões éticas da pesquisa clínica e os prós e contras de um projeto de lei sobre o tema que tramita no Senado (PLS 200/2015) foram os temas do 4º encontro do ciclo Strategic Workshops, realizado no dia 16 de fevereiro no IEA.

Organizado pela Pro-reitoria de Pesquisa (PRP) da USP com apoio do instituto, o debate A Legislação da Ética na Pesquisa em Seres Humanos: O Projeto de Lei n° 200 reuniu pesquisadores com larga experiência no assunto, como Paulo Marcelo Hoff, da Faculdade de Medicina (FM) da USP e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), Dalton Luiz de Ramos, da Faculdade de Odontologia (FO) da USP, Roger Chammas, da Faculdade de Medicina (FM) da USP e Dirceu Greco, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“O texto do projeto lei ainda não está bom. Daí a importância desse debate. Queremos contribuir ao máximo para que a lei seja eficaz, garanta o direito e a segurança dos participantes de pesquisas e ao mesmo tempo desburocratize o processo”, disse o professor Greco.

Até 1996, não havia no Brasil um arcabouço legal que regulasse a ética da pesquisa em seres humanos. Entre as inúmeras façanhas do falecido professor Adib Jatene, à época ministro da Saúde, está o fato de ter impulsionado a área de pesquisa ao assinar a Resolução 196, de outubro de 1996, aprimorada em 2012 pela Resolução 466. Assim, o Brasil passou a contar com as Comissões de Ética em Pesquisa (CEPs) locais, subordinadas ao Conselho Nacional de Ética em Pesquisas (Conep).

O sistema de regulação de pesquisas se consolidou tendo os CEPs como instâncias autônomas capazes de aprovar uma grande parte dos protocolos clínicos. Porém, as investigações de fronteira do conhecimento, geralmente envolvendo a oncologia, reumatologia e doenças crônicas, devem ser avaliadas e aprovadas exclusivamente pelo Conep. Isso acaba centralizando decisões importantes e demandando um prazo maior para aprovação de determinados protocolos. Tanto que, enquanto a maioria dos países leva cerca de cinco meses para aprovar pesquisas em humanos, o Brasil requer de 10 a 14 meses para a tarefa.

A centralização do processo de aprovação dos protocolos clínicos e o extenso prazo para aprovar pesquisas em humanos inviabilizam pesquisas de ponta, afastam investimentos e atrasam a ciência brasileira, segundo os participantes do workshop no IEA.

“A burocracia redunda na sobreposição de análise em diferentes instâncias. Gastamos mais tempo e dinheiro, sofremos restrições de patrocinadores para fazer pesquisas e com isso, muitos estudos inovadores deixam de acontecer”, ressaltou o professor Hoff.

O nó burocrático que preocupa a comunidade científica e a sociedade acabou culminando no projeto de lei que tramita atualmente na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado. A iniciativa tem por objetivo criar um marco regulatório para análise e registro de novos medicamentos no tratamento do câncer, Alzheimer, diabetes e outras doenças, conforme informações da Agência Senado. Além disso, pretende desburocratizar o sistema e agilizar a liberação de novos testes, retirando o Brasil da incômoda posição de um dos países mais atrasados na aprovação de protocolos de pesquisa.

Porém, apesar do objetivo nobre de agilizar e simplificar o processo de avaliação e aprovação de protocolos clínicos, o texto ainda requer cuidados e aperfeiçoamentos, na opinião dos debatedores presentes no IEA.

Muitos cientistas acreditam que a proposta ainda é incapaz de atender aos diversos tipos de pesquisas realizadas com seres humanos no Brasil.

Sob a relatoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), o projeto de lei sofreu diversas alterações que melhoraram o texto original, segundo o professor Greco. O PLS 200 tem como principais autores a senadora Ana Amélia (PP-RS), senador Waldemir Moka (PMDB-MS) e senador Walter Pinheiro (PT-BA).

Na opinião do professor Chamas, poderia ser “útil e mais eficiente” a descentralização da estrutura de regulação e aprovação de protocolos clínicos. Mas para isso, seria necessário uma “formação adequada” dos profissionais envolvidos.

“Sem o devido conhecimento, nem é seguro deixar tudo sob a responsabilidade apenas dos CEPs. É preciso um órgão que tenha poder de regular e também fiscalizar. É preciso haver um controle de qualidade dos protocolos emitidos”, disse Chamas.

Para Chamas, o Conep deveria fazer algo semelhante ao que já fez o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Consea) em relação à ética de pesquisa com animais. “O Conep tem falhado em instruir assessores que possam tratar profissionalmente a questão da pesquisa clínica”, afirmou.

Placebo

Segundo o professor Hoff, o projeto original foi debatido e modificado extensamente no Senado. O uso do placebo (preparação ou comprimido neutro, sem efeito farmacológico) deverá ser limitado, conforme determinam as boas práticas de pesquisa clínica internacionais. Desta forma, num estudo que busca descobrir a eficácia de um novo medicamento em relação a outro existente no mercado, por exemplo, o paciente participante da pesquisa não poderá ficar sem o medicamento genérico. Ou seja, não poderá tomar apenas o placebo. O placebo apenas será permitido se não houver no mercado um comparativo, ou, nenhum tratamento para a doença investigada.

O substitutivo também garante ao voluntário da pesquisa o direito de receber gratuitamente o medicamento durante e após a realização do estudo. Mas o texto elimina o papel atual dos CEPs, sendo que a estrutura do sistema de regulação passaria a ser subordinada ao Ministério da Saúde, mostrou Hoff.

Segundo Greco, o texto original propõe dois tipos de CEPs: um institucional e outro independente. Os Comitês de Ética Independentes não teriam laços institucionais, sendo estabelecidos com recursos próprios.

“O importante é que esse projeto de lei é resultado de um extenso debate democrático de anos e mostra que houve uma evolução das comissões científicas do Senado. Em minha opinião, esse projeto de lei está equilibrado e atende ao anseio de celeridade do processo. Além disso, conseguiu se posicionar quanto ao tratamento de doenças graves”, disse Hoff.

Ética X agilidade

O professor Ramos levou à plateia um testemunho sobre a própria experiência atuando em comitês de pesquisa e também no Conep. “Aprendi que a grande questão é a desatenção, muitas vezes gerada por um olhar que pode estar empolgado com o ineditismo da pesquisa ou mesmo na comoção da busca de soluções para o sofrimento humano”, disse.

Segundo Ramos, “o antiético, isto é, o que é questionado por um Comitê, não necessariamente é fruto de uma ‘imoralidade’ ou má fé; pode ser pura desatenção”, disse, ao mencionar o papel de quem atua nos comitês de pesquisa.

Ao narrar um episódio ocorrido numa das instâncias em que atuou, Ramos conta que aprendeu que “a apreciação deve sempre contar com um olhar externo que permite ver um todo ainda maior. Porque uma apreciação intimista, restrita aos pares, está sujeita a erros”, disse.

Para o professor Ramos, preocupa pensar que o debate sobre o projeto de lei pautando a eficácia e agilidade de um sistema de apreciação ética possa correr o risco de “negligenciar os tantos avanços evidenciados na experiência acumulada nas duas últimas décadas”.

“Temos que cuidar para que os entraves a serem retirados sejam os burocráticos e de fluxo administrativo e não os de preocupação ética”, ressaltou Ramos.

O pró-reitor de pesquisa da USP, professor José Eduardo Krieger, e o diretor do IEA, professor Martin Grossmann, fecharam o debate lembrando a importância do tema.

“Os CEPs e o Conep têm sido de grande importância para a pesquisa brasileira nos últimos 20 anos. Mas é preciso renovar e para isso não há uma receita. É preciso debater”, disse Krieger.