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Plano de educação antirracista elaborado em curso da USP Ribeirão Preto se torna decreto em município do interior de SP

por Thais Cardoso - publicado 06/12/2024 10:00 - última modificação 04/12/2024 12:23

Equipe da Secretaria de Educação de Cordeirópolis (SP) participou de formação com Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do IEA-RP, e Instituto Dacor

[Texto de Marília Rocha - Assessoria de Comunicação da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira]

“A gente pensava que fazia um bom trabalho e que não estava perpetuando o racismo. Tenho mais de 20 anos de magistério e foi só agora, ao escutar os educadores do curso falando com tanta propriedade sobre a educação antirracista, que eu percebi: estamos atrasados demais”. Foi assim que a coordenadora de Projetos da Secretaria de Educação de Cordeirópolis, Sandra Cristina André, relatou a importância da formação oferecida pelo Instituto Dacor em parceria com a Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto da USP. A entrega final do curso foi um Plano Municipal de Educação Antirracista que, desde o início de novembro, passou a ser um decreto municipal.

De acordo com Sandra, no início deste ano a equipe da Secretaria estava respondendo a um documento do Ministério da Educação (MEC) que continha perguntas sobre como era promovida a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER), que há mais de 20 anos é uma obrigatoriedade de todas as redes de ensino, prevista na Lei 10.639/03. “A gente começou a perceber, com nossas próprias respostas ao documento, que esse trabalho estava sendo desenvolvido de forma superficial. Sabíamos da lei, mas é como se ela seguisse só no papel, a gente não estava de fato cumprindo de forma significativa”, afirmou Sandra.

Essa percepção disparou o interesse em participar da formação “Implementando educação antirracista no chão da escola: o papel das Secretarias Municipais de Educação”, que foi realizada entre maio e agosto de forma remota, com participantes de 26 redes municipais parceiras da Cátedra em Alagoas e São Paulo. Uma das atividades do curso foi a aplicação de um instrumento de avaliação formativa, que fornece insumos para identificar os pontos fortes e as principais necessidades para fortalecer o trabalho com a ERER em cada rede. Ao receber o resultado dessa análise, ficou ainda mais nítido o que estava faltando, segundo a coordenadora.

A importância do diagnóstico

“Apresentamos uma primeira versão do plano e recebemos um novo feedback de que ainda estava faltando uma leitura mais aprofundada de nossa realidade. A própria secretaria ainda não tinha um mapeamento sobre a necessidade desse trabalho. Quando olhamos os dados, percebemos: a proporção de alunos pretos e pardos que entram no primeiro ano do Fundamental é muito maior do que a porcentagem dos estudantes que concluem o Ensino Médio. Começamos a nos questionar: por que isso acontece? Quais os motivos para essa perda? Como reverter isso?”, contou Sandra.

Os dados indicaram que entre as pessoas de 18 a 29 anos no município, 60% dos brancos têm 12 anos ou mais de estudo, proporção invertida no caso de pretos e pardos, em que 58% não possui nem 12 anos de estudo. Os números refletem uma desigualdade que pode impactar diretamente as oportunidades de futuro dos estudantes.

“Um dos cuidados para analisar essas estatísticas é que pode haver imprecisão nos indicadores, já que muitos responsáveis preferem não declarar a raça dos estudantes na matrícula. Ainda assim, temos indícios de que a escola não está implementando as estratégias adequadas para garantir o desenvolvimento de todos os alunos, e um grupo deles possivelmente enfrenta mais barreiras para continuar seus estudos”, analisou Larissa Maciel, analista de dados da Cátedra e uma das responsáveis pela articulação do curso.

“Em outubro nós trabalhamos o tema do cyberbullying e recebemos relatos de alunas que sofriam bullying por causa da cor nas nossas escolas, e nós achávamos que não acontecia. Ter esses e outros dados auxilia na conscientização de que é preciso fazer alguma coisa”, destacou Sandra. Daí, segundo ela, a relevância de implementar uma educação que valorize a diversidade e combata o preconceito nas instituições de ensino através de uma abordagem estruturada e inclusiva.

“A versão final do plano de Cordeirópolis é bem fundamentada e organizada. Avançar para transformar esse material em uma política pública para a equidade racial é uma demonstração da necessidade concreta deste trabalho”, afirmou Vidal Dias da Mota Júnior, diretor do Instituto Dacor.

Definindo a educação antirracista

A partir do plano municipal, é possível compreender, em síntese, que: “A educação antirracista é uma abordagem pedagógica essencial que rompe as estruturas de racismo e as dinâmicas que perpetuam disparidades raciais. Essa educação é necessária devido às desigualdades raciais enraizadas que os sistemas educacionais tradicionais refletem e perpetuam; ao promover uma compreensão crítica, pode promover transformações a longo prazo”.

O Plano também reconhece que falta uma estrutura para coleta e tratamento de dados raciais, dificultando a avaliação precisa e a formulação de políticas eficazes; que os materiais educacionais muitas vezes não representam a população negra de maneira positiva, reforçando estereótipos negativos; que as contribuições dos africanos e afro-brasileiros para a sociedade brasileira não são devidamente reconhecidas ou ensinadas e que muitos professores não estão preparados para lidar com o racismo expresso por crianças e acabam tratando os casos de forma superficial ou invisibilizando-os. Para melhorar este quadro, propõe então estratégias e ações concretas, como:

  • Incluir 30% de conteúdos africanos e afro-brasileiros no currículo;
  • Substituição ou complementação de 50% dos materiais didáticos;
  • Redução de 50% nos casos relatados de racismo;
  • Organizar workshops e seminários anuais sobre diversidade e inclusão.;
  • Estabelecer conselhos de Diversidade em todas as escolas;
  • Avaliações semestrais a partir de indicadores bem definidos, métodos de coleta de dados, frequência de monitoramento e critérios de avaliação em todas as dimensões (como atitudes, currículo, recursos, atuação de profissionais da educação; acesso/permanência/progressão na trajetória escolar, gestão democrática, entre outras);
  • Formar uma equipe responsável pelo monitoramento e avaliação dos indicadores, composta por membros da comunidade escolar;
  • Identificar e alocar recursos necessários para a implementação das ações.

Decreto institui obrigatoriedade de implementar o Plano Municipal

Em diálogo com essas estratégias e visando promover uma formação integral que valorize a diversidade étnico-racial, o decreto municipal assinado pelo prefeito José Adinan Ortolan estabelece a oferta de formação continuada a professores e gestores da rede e o desenvolvimento de metodologias que integrem conteúdos étnico-raciais nas diferentes áreas do conhecimento, como algumas de suas metas, além do fortalecimento das relações entre a escola, a comunidade e os movimentos sociais.

Por isso, as unidades escolares deverão promover espaços de diálogo e atividades que envolvam a participação de pais, alunos e entidades da sociedade civil. Além disso, o Conselho Municipal de Educação deverá monitorar e avaliar periodicamente a execução do Plano Municipal de Educação Antirracista, em colaboração com a Secretaria de Educação.

“Apesar de bem detalhado, o plano contempla ações que são viáveis, possíveis de serem implementadas. São mudanças no dia a dia, incorporadas às outras atividades, mas é preciso ter pessoas comprometidas em fazer acontecer”, reforçou Sandra. “Eu e muitas pessoas aprendemos de forma errada e adotávamos estratégias ou mesmo falas equivocadas, às vezes sem saber. Agora não tem como não saber: é possível fazer com que todas as crianças e jovens da nossa cidade barrem o racismo, para que todos se sintam incluídos e saibam conviver e se desenvolver com as mesmas oportunidades.