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Em busca de uma nova polícia, democrática e comprometida com a cidadania

por Mauro Bellesa - publicado 21/05/2014 19:20 - última modificação 04/02/2016 11:55

O cientista político Luiz Eduardo Soares apresentou uma analisa da segurança pública brasileira desde a ditadura militar e propostas para mudanças no sistema policial.
Luiz Eduardo Soares
Luiz Eduardo Soares: "A sociedade brasileira foi incapaz de formular uma política democrática para a segurança pública

Para que a polícia no Brasil deixe de considerar suspeitos como inimigos internos e observe integralmente os princípios democráticos e o respeito aos valores da cidadania é preciso uma nova arquitetura institucional. No entender do cientista político Luiz Eduardo Soares, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e ex-secretário Nacional de Segurança Pública, o primeiro passo para que isso aconteça é a reformulação de três aspectos do sistema policial:

  • desmilitarização das Polícias Militares;
  • adoção do ciclo completo: a mesma polícia deve se encarregar do policiamento ostensivo, realização de flagrantes, investigação e captura de criminosos;
  • carreira policial única, na qual qualquer integrante tenha a oportunidade de ascender a postos superiores.

Na conferência que fez no segundo encontro do ciclo Tardes Cariocas: A USP Ouve o Rio de Janeiro, no dia 13 de maio, no IEA-USP, Soares destacou que essas são as principais mudanças previstas na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51, apresentada em setembro de 2013 pelo senador Lindbergh Farias (PT-RJ).

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  • Referência

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Na conferência intitulada Desmilitarizar as Polícias e Revolucionar a Arquitetura Institucional da Segurança Pública: uma Agenda Democrática para o Brasil, o cientista político informou que colaborou na formulação da PEC 51 e que ela é fruto de ampla negociação. No seu entender, "ela não resolve todos os problemas da segurança pública, mas propõe algumas mudanças radicais, que podem produzir resultados importantes em médio prazo".

Ele rebateu duas críticas à proposta que vêm sendo divulgadas nos últimos meses: prejudicaria direitos dos policiais militares e seria um "trem da alegria", pois facilitaria demais a ascensão funcional: "É proposta a desmilitarização, mas com a manutenção dos direitos adquiridos pelos atuais policiais militares, e é possível estabelecer limitações às ascensão na carreira única e ao mesmo tempo possibilitar que todos tenham condições de disputar a progressão funcional".

A questão relevante, de acordo com Soares, é que a maior parte dos profissionais da área de segurança pública do país avaliam que o modelo atual não funciona. Em pesquisa que realizou com Marcos Rolim e Sylvia Ramos e na qual foram ouvidos 64.120 profissionais de todo o país, 70% dos policiais militares, 55 dos policiais civis não delegados e 52% dos delegados concordaram com esse diagnóstico.

REALIDADE

"Temos 50 mil homicídios dolosos por ano, dos quais apenas 8% são investigados, logo, 92% ficam não só impunes, mas também sem investigação", comentou. No entanto, Soares considera que esses números não significam que o Brasil seja um país da impunidade: "Em números absolutos, o Brasil tem a quarta população carcerária do mundo, 550 mil presos, atrás dos Estados Unidos, China e Rússia. Além disso, o país vive um processo de impressionante aceleração no crescimento da população carcerária: "Em 1995, tínhamos 140 mil presos, hoje temos 550 mil, dos quais 70% são negros, 40% estão em prisão provisória, 12% foram encarcerados por homicídio e 2/3 por crimes contra o patrimônio ou tráfico de drogas. Essa aceleração começou em 2002 e disparou em 2003".

Como é possível esse crescimento num período em que houve diminuição do desemprego e redução de desigualdades? Para Soares, grande parte da explicação deve-se ao fato de que quem faz a agenda da segurança pública não são os responsáveis pelo aprimoramento institucional, mas os "solavancos do dia a dia": diante de fatos de grande repercussão, diante da crise, é preciso reagir, mas "não se inova, não se aperfeiçoam os procedimentos, apenas se faz mais do mesmo".

ORIGENS

Na visão de Soares, a sociedade brasileira foi incapaz de formular uma política democrática para a segurança pública. "A transição brasileira tem a marca da continuidade. No final da ditadura, os militares puderam impor condições, entre elas a anistia recíproca e a intocabilidade das polícias e da segurança pública, que permaneceram de alguma maneira sob a tutela militar."

Ele ponderou que talvez naquele momento esse quadro se impusesse nas negociações para a transição democrática, "mas estamos há 25 anos da conclusão do processo de transição democrática e não há mais nenhuma justificativa para evitar esse tema difícil".

O fato de o país não ter tido um "momento de verdade"  — com proposto por Nelson Mandela —, partindo direto para a conciliação, explica parte do problema da segurança pública, no seu entender. "Na África do Sul, ao reconhecer os crimes praticados, os algozes, os torturados eram perdoados. Não havendo o reconhecimento, eram punidos. Chamar os crimes pelos nomes, sem adjetivos — tortura, assassinato, responsabilidade do Estado, política do Estado —, traria efeitos importantes na sociedade, sobretudo numa área tão sensível à questão da violência como o é a segurança pública", argumentou.

Como isso não aconteceu, as instituições policiais tampouco passaram por um rito de passagem, um filtro simbólico de reinvenção da identidade que permitisse definir "o que é formar uma polícia para a democracia, a serviço da cidadania, respeitando marcos legais e institucionais, definindo-se como protetora de direitos e que não considere suspeitos como inimigos internos a serem combatidos", disse o pesquisador.

CONEXÕES

Para Soares, não foi a ditadura que criou a violência policial, mas ela a qualificou e a institucionalizou: "Antes da ditadura já havia no Estado do Rio de Janeiro as escuderias e esquadrões da morte, grupos de policiais que matavam suspeitos. Esses grupos se vincularam no Rio de Janeiro ao mundo do jogo do bicho, que se converteu numa fonte de renda do crime organizado e se associou a grupo militares da repressão política".

Duas decisões na área de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro em meados dos anos 90 contribuíram decisivamente para o recrudescimento da violência, em sua opinião. Uma foi quando o general Nilton Cerqueira  — "que se comprazia em afirmar publicamente ter matado Carlos Lamarca com as próprias mãos" —, foi nomeado secretário de Segurança Pública e propôs à Assembléia Legislativa um benefício que ficou conhecido como "Gratificação Faroeste", uma premiação a ser incorporada nos salários dos policiais que demonstrassem bravura em ação. Segundo Soares, a aprovação dessa medida teve impacto direto na escalada no número de mortes registradas em autos de resistência como vítimas de supostos confrontos com policiais, autos que não são investigados, apenas declarados.

A outra decisão polêmica foi adotada pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope), "a unidade mais feroz e mais competente do ponto de vista bélico da polícia fluminense", que decidiu não aceitar mais rendição: "Ao suspeito na linha de tiro, abordado pelo Bope em alguma incursão noturna e que não conseguisse fugir só restava combater até à morte".

Em reação a essas duas medidas, "os traficantes se armaram ainda mais e passaram a se antecipar à ação policial, matando policiais aleatoriamente, de forma igualmente covarde, uma prática bárbara, evidentemente, mas que deve ser analisada no contexto dessa espiral terrível de violência".

De acordo com Soares, de 2003 a 2012, houve 9.646 mortes provocadas por ações policiais no Estado do Rio de Janeiro. "O que acontece quando a sociedade libera o policial para matar, que é o que defende quem diz que o importante é a segurança do cidadão, não importando como ela seja atingida? Quando acontece isso, também damos a liberdade para o policial não matar e vender caro essa outra possibilidade. A vida se converte numa moeda que se inflaciona rapidamente e que estimula um mercado de vida e morte, que acaba degradando a instituição. A corrupção prospera. O que aconteceu no Rio de Janeiro foi exatamente isso."

MILÍCIAS

Outro agravante historiado e analisado por Soares na conferência foi o surgimento das milícias. Ele considera o "bico" feito por muitos policias como a origem do processo: "Trata-se de um 'gato orçamentário'. O policial recebe salários irreais — com exceção do Distrito Federal e de alguns salários um pouco melhores de poucos estados — e o policial em busca de melhores condições de vida para sua família se dispõe a ter um segundo emprego, o 'bico, que é ilegal, mas tolerado. Nenhum governo se debruça sobre esse problema; ao contrário, joga o manto protetor e deixa isso à sombra, prosperando. Quanto mais isso crescer, menor a chance de haver reivindicações".

O governante poderia alegar que fiscalizar isso não é sua responsabilidade, mas sim da Polícia Federal (PF), mas esta "tem 15 mil servidores e o mundo como responsabilidade; essa área não é prioridade dela nem ela quer colocar a mão nessa cumbuca". O governo poderia reivindicar para si essa responsabilidade, por convênio com o Ministério da Justiça, de acordo com o pesquisador, "mas isso não interessa, pois do jeito que está é possível continuar pagando um salário irreal, tolerando uma transgressão legal".

Na opinião de Soares, a maioria dos policiais que faz o bico "dá um duro danado com a melhor das intenções, são pessoas honradas, fazem o que qualquer um faria, porque o salário é insuficiente; não há crime do ponto de vista moral, há uma prática ilegal. E aqueles que não têm boas intenções, e não são poucos no Rio de Janeiro? Esses vão encontrar uma área de ação já coberta com o manto da tolerância. E investem nessa área de forma perversa, praticando assaltos, roubos de carros e outros delitos para vender segurança". O resultado disso, de acordo com o pesquisador, é que eles percebem que não há investigação, nenhum tipo de punição, e percebem também que não basta criar insegurança para vender segurança, "é possível ir além e nesse vácuo surgem milícias, máfias muito organizadas".

IRRACIONALIDADE

Ao comentar a conferência de Soares, o filósofo Renato Janine Ribeiro, conselheiro do IEA e coordenador do ciclo, destacou que "o sistema é extremamente racional na sua articulação, mas irracional na sua entrega, nos produtos perversos que entrega", mas considerou que, apesar disso, "existe um alento democrático ao se pensar que para todos os problemas há soluções democráticas".

Janine criticou a forte presença na sociedade brasileira da concepção de que, quando se trata da realidade da vida, não é possível perseguir ideais: "Toda vez que se fala de algum ideal, de igualdade, democracia, de transparência, há pessoas que vêm nos dizer que isso é impossível, que bandido só vai entender a força bruta, que a criança só vai entender a palmada, que o estudante só vai entender a disciplina".

O filósofo considerou fascinante a exposição de Soares, por mostrar como um conjunto de preceitos "favorável à brutalidade acabou trazendo resultados muito piores do que os problemas que pretendia enfrentar. No seu entender, com variações, isso vale para diversas áreas, como a prisional, a educacional e a da saúde. "De modo geral, o que estamos vendo é uma falência dos sistemas autoritários e ao mesmo tempo o canto do cisne está sendo muito terrível, muito longo, e temos muita dificuldade em superá-lo."

Foto: Sandra Codo/IEA-USP