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Quando o cuidar é uma responsabilidade das crianças

por Sylvia Miguel - publicado 27/10/2015 12:30 - última modificação 11/02/2016 16:51

Jovens em todo o mundo envolvidos no cuidado de adultos são o alvo dos estudos do pró-reitor da University of Birmingham, que debateu o assunto no IEA.
Saul Becker

Saul Becker: estudos ajudando a implementar políticas públicas para jovens cuidadores

Um mundo oculto de crianças e jovens ganhou visibilidade após a divulgação dos dados do Censo de 2001 do Reino Unido. Governo e sociedade olharam para o fato de que havia naquele país aproximadamente 2 mil crianças de 5 a 7 anos de idade prestando mais de 50 horas semanais de cuidados para algum adulto da família.

Hoje, em países como Reino Unido, Austrália e Noruega, crianças e jovens nessa situação representam um grupo vulnerável definido por lei e são alvos de algum tipo de apoio e assistência de governos ou de organizações não governamentais. Integram uma população de menores de 18 anos de idade que presta informalmente, ou sem remuneração, de forma regular, algum cuidado aos pais, avós ou parentes próximos que estão doentes, deficientes ou com necessidades de assistência, apoio e supervisão.

Por outro lado, a herança cultural e religiosa em muitos países tende a levar a sociedade a não enxergar devidamente esse cuidado e suas conseqüências para jovens cuidadores.

As questões sobre o tema foram debatidas pelo pró-reitor da University of Birmingham, Saul Becker, no IEA, no dia 21 de outubro, com a mediação da professora Ana Lydia Sawaya, coordenadora do Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza do IEA e professora da Unifesp. A University of Birmingham, por meio de seu Institute of Advanced Studies (IAS), é membro da rede Ubias, que congrega 34 institutos de estudos avançados baseados em universidades ao redor do mundo.

As pesquisas de Becker têm influenciado o debate acadêmico e a implementação de políticas públicas no Reino Unido e em outros países, visando a responder às necessidades desse segmento populacional. Estudioso da área desde 1992, além de pró-reitor, Becker é também diretor da Faculdade de Ciências Sociais e professor de política social e serviço social na University of Birmingham.

O pró-reitor mostrou que em 2001, no Reino Unido, havia um universo de 11 milhões de crianças, sendo 175 mil delas identificadas como prestadoras regulares de algum cuidado à família. Dessas, 83% prestavam de 1 a 19 horas semanais de cuidados regulares. Na faixa de 12 a 14 anos de idade, cerca de 3,5 mil prestavam mais de 50 horas semanais de cuidados. Aproximadamente 4,4 mil jovens entre 16 e 17 anos cuidavam de algum adulto por mais de 50 horas semanais.

“Muitos desses jovens sofrem ao realizar cuidados íntimos ou ter de cozinhar. E não sofrem apenas emocionalmente, mas fisicamente. Tenho relatos de crianças com problemas de ansiedade por ser a única responsável pelo adulto doente. Ou com problemas de coluna porque realmente a tarefa pode ser mais pesada do que elas suportam”, disse Becker.

Becker acredita que as políticas públicas devem focar especialmente crianças de até 9 anos de idade que se dedicam por um logo tempo nessas tarefas, algo como 50 horas semanais. Para o especialista, esse grupo é o mais vulnerável e sofre impactos negativos na vida emocional e social.

Políticas para grupos mais vulneráveis

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Estudos de Becker sobre o tema

Global Perspectives on Children’s Unpaid Caregiving in the Family

Service needs and delivery following the onset of caring amongst children and young adults: evidenced based review

Manual for Measures of Caring Activities and Outcomes For Children and Young People

Young Carers

Em seus estudos, Becker indagou qual seria a percepção das próprias crianças envolvidas nesses tipos de tarefas. No geral, as pesquisas mostram crianças e jovens orgulhosos, satisfeitos e com sentimento de que estão dando uma contribuição valiosa para a vida familiar.

“Elas desempenham essas tarefas com grande amor e formam laços com a pessoa que recebe o cuidado. Por outro lado, há também o sentimento de raiva com relação à pessoa que cuidam. Existe uma emoção forte que vai de um polo a outro”, disse.

Becker concorda que pode haver algum ganho para a criança em termos de maturidade, senso de responsabilidade e educação quando o tipo de cuidado e a carga de tempo são considerados leves. Mas é preciso cuidado ao analisar os resultados das pesquisas, alerta.

“Pode ser bom para a criança dedicar certo nível de cuidado e algum tempo nessas tarefas. Mas precisamos estar atentos para não generalizar os números. Alguns tipos de cuidados ou tarefas podem ser inaceitáveis ou até traumáticas, independentemente do tempo necessário para realizá-la”, ressaltou.

A responsabilidade de cuidar dos membros familiares varia no mundo. Porém, já houve países desenvolvidos que diagnosticaram o problema, mas nada mudaram em seus sistemas de seguridade social, por questões econômicas e culturais.

Seja por noções culturais, morais ou religiosas, a grande maioria dos países possui um quadro jurídico que favorece o entendimento de que a responsabilidade do cuidado aos membros familiares cabe à própria família. “Isso se torna mais evidente em países com uma estrutura religiosa muito forte, como Espanha, Portugal, Itália e Brasil”, citou.

Há ainda sistemas como o de países como Suécia e Noruega que garantem a seguridade social a todos os cidadãos desde o nascimento até a morte. Há também países em que o cuidado se transforma em commodity, pois o cidadão paga para ter o cuidado de que precisa.

“O ideal é ter um híbrido desses dois sistemas, em que a família se responsabiliza e o Estado tem um papel importante fornecendo apoio e não todo o cuidado necessário”, afirma Becker.

fotos: Maria Leonor de Calasans