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Aprendendo com os mortos

por Flávia Dourado - publicado 08/05/2015 15:25 - última modificação 10/08/2015 15:01

Lançado em março, laboratório de pesquisa coordenado pelo patologista Paulo Saldiva, vice-diretor do IEA, usa equipamento inédito na América Latina para realização de autópsias assistidas por imagem.

Desde março, a Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) conta com uma nova instalação de pesquisa centrada no estudo dos mortos. Trata-se da Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa), laboratório de 500 m², localizado no subterrâneo da FMUSP, que utiliza técnicas de diagnóstico por imagem para investigar causas de mortes naturais e os efeitos sistêmicos de doenças no organismo humano.

No Pisa, os procedimentos convencionais de autópsia, caracterizados pela mutilação dos cadáveres, dão lugar a alternativas menos invasivas e mais precisas de exames post-mortem graças à combinação de três equipamentos: um tomógrafo, um ultrassom e o Magnetom 7T MRI — primeiro equipamento de ressonância magnética para corpo inteiro com campo 7 Tesla da América Latina.

PisaA nova máquina será usada principalmente na análise dos corpos recebidos pelo Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), órgão mantido pela USP e responsável pela realização de aproximadamente 14 mil autópsias por ano relacionadas a causas naturais (mortes não violentas).

O projeto representa uma oportunidade de romper com uma das maiores barreiras enfrentadas por pesquisadores que se dedicam ao estudo dos mortos: a resistência das famílias a autorizarem a realização da autópsia. Segundo o patologista Paulo Saldiva, vice-diretor do IEA e professor titular do Departamento de Patologia da FMUSP, que coordena o Pisa, a ideia da autópsia é culturalmente intolerável para grande parte da população. Por isso, é importante oferecer alternativas mais humanas e menos invasivas que possam substituir procedimentos radicais.

"Cresce no mundo os números de autópsias para casos de morte matada, mas o número de autópsias de morte natural tem caído, o que dificulta obtenção de tecidos para estudos, de dados sobre a qualidade do atendimento médico e de indicadores sobre a expectativa de vida da população. Isso prejudica a formação médica."

O professor ressalta que, ao viabilizar o aumento do número de autópsias e gerar dados mais precisos e detalhados, o projeto resultará na formação de um banco de imagens de alta resolução com potencial para proporcionar avanços em três eixos: identificação das causas das mortes com mais rigor e exatidão; estudo de novas doenças, ainda pouco compreendidas, em nível molecular; e ensino médico.

MAGNETOM

Fabricado pela Siemens, na Alemanha e na Inglaterra, o Magnetom 7T MRI custou US$ 7,7 milhões (aproximadamente R$ 24,5 milhões) e foi obtido através do Programa Equipamentos Multiusuários (EMU) da Fapesp.

Este é um equipamento de ultra-alto campo. Tesla é a unidade de mediada usada para expressar a intensidade do campo magnético. No caso do Magnetom, o campo criado equivale ao de um imã de três toneladas, o que garante imagens de alta definição. O equipamento apresenta uma resolução 5,4 vezes maior que a de aparelhos convencionais de 3 Tesla (o aumento de duas vezes no campo leva a um aumento de quatro vezes no detalhamento da imagem).

Entre os benefícios que esse ganho de resolução traz estão a obtenção de medidas estruturais e funcionais do organismo humano e a identificação de propriedades substantivas do corpo de forma não invasiva, o que inclui alterações bioquímicas e análise de áreas pontuais.

"Pela força do campo magnético é possível obter medidas espectroscópicas de compostos químicos em áreas específicas do corpo. Uma imagem gerada por um campo de 7 Tesla equivale quase a uma imagem microscópica do tecido", observa Saldiva. Ele explica que as informações obtidas por meio das imagens serão validadas com amostras de tecidos retiradas por punção, com auxílio de uma agulha, sem que haja necessidade de abrir o corpo.

O patologista usa o exame do cérebro de um indivíduo esquizofrênico como exemplo. De acordo com ele, o Magnetom possibilita obter dados sobre volume, forma, conexões, mediadores que faltam e que estão em excesso. "E não é possível fazer isso com a pessoa viva."

EXPANSÃO DO PROJETO

Ao propor a criação de um laboratório para realização de autópsias, Saldiva tinha em mente a obtenção de um equipamento mais simples. Chegou a aprovar, junto à Fapesp, um projeto para compra de um aparelho de ressonância magnética convencional, campo 3 Tesla. Mas pouco a pouco outros grupos de pesquisa começaram a se interessar pela plataforma. "Vimos a possibilidade de explorar um nicho único, de forma competitiva, criando o maior serviço de autópsias médicas do mundo", diz Saldiva.

Surgiu, então, a ideia de solicitar uma máquina 7 Tesla. Em 2012, um convênio entre a Fapesp, a FMUSP e a Fundação Faculdade de Medicina (FFM) tornou possível a aquisição do Magnetom. Estava lançada a base para a criação do Pisa, um laboratório multiusuário e multidisciplinar, voltado para a simulação de autópsias por imagem.

Segundo Saldiva, o desafio foi grande, mas graças à cooperação e ao entusiasmo de todos os envolvidos — pesquisadores, Fapesp, FFM, FMUSP — foi possível concluir o Pisa. "A ideia parecia maluquice pelo alto custo e complexidade. Ninguém sabia mexer na máquina. Mas o Pisa foi encantando as pessoas, que ao invés de acharem loucura, esforçaram-se para fazer acontecer."

Pronto para operação, o laboratório beneficia mais de 20 projetos de pesquisa, alguns desenvolvidos em parceria com outros países, como Alemanha, Estados Unidos, Holanda e Israel. Entre tais projetos, destaca-se o Brazilian Imaging and Autopsy Study (Bias), coordenado por Saldiva, que deu o impulso inicial para o Pisa.

Pisa -2 O Bias volta-se para o estudo comparado das autópsias convencionais, de caráter invasivo, e das autópsias assistidas por imagem, realizadas com o auxílio do Magnetom. A partir dessa comparação, será possível avaliar a precisão de cada método e verificar se são inferiores, superiores ou igualmente satisfatórios uma em relação à outra.

Para isso, o Bias procederá com mil autópsias não-forenses em indivíduos que morreram no Hospital das Clínicas (HC); em casa, de causas naturais; ou em outros hospitais, por causas desconhecidas. Cada corpo será analisada por meio dos dois métodos de autópsias para que se possa, então, comparar os resultados. Estes serão confrontados, ainda, com informações obtidas através das chamadas "autópsias verbais", nas quais familiares do paciente morto respondem um conjunto de perguntas que buscam esclarecer as causas do óbito.

Além de verificar a eficácia de cada método, o projeto de Saldiva investigará as relações entre os hábitos de vida do indivíduo, condições ambientais e causas da morte. Lançará luz, assim, sobre o efeitos de uma série de variáveis no corpo humano, tais como níveis de poluição atmosférica, regimes de chuva, estresse, tabagismo, uso de drogas, entre outros.

ATENDIMENTO MÉDICO

O Pisa ajudará a preencher uma lacuna de informações no que se refere às causas de óbitos em hospitais, onde pressupõe-se que os paciente são devidamente  assistidos e recebem o tratamento adequado.

"Em cerca de 50% dos casos de morte natural, ou não há informações sobre as causas ou as informações são inúteis. Em alguns países, esse índice é ainda maior", observa Saldiva. "Determinar parada cardíaca como causa da morte não serve. É muito impreciso. Para fazer políticas públicas é importante saber exatamente porque os indivíduos morreram, o tempo de vida que perderam e os custos disso", completa.

Para ele, trata-se de uma ferramenta fundamental para fazer o controle da qualidade do atendimento nos hospitais e no âmbito da saúde pública como um todo, visto que as autópsias por imagem permitem responder uma série de questões: "Os médicos acertaram no diagnóstico da doença? Adotaram o tratamento adequado?", exemplifica.

O patologista afirma que mesmo em ótimos hospitais há uma taxa de discrepância entre o tratamento adotado pelos médicos e o tratamento correto, que pode chegar a 20%. "A morte é o evento mais grave e extremo no ambiente hospitalar; por isso, é crucial investigar se os médicos e os hospitais fizeram o possível pelo paciente que morreu."

PESQUISA

As ferramentas oferecidas pelo Pisa são fundamenteis para fazer avançar as pesquisas sobre doenças que requerem a retirada de amostras do tecido do indivíduo. De acordo com Saldiva, a análise deste tipo de material é uma condição para compreender o funcionamento de uma série de enfermidades e para desenvolver tratamentos apropriados.

"Todos os progressos em relação a doenças no âmbito da biologia molecular foram proporcionados pelo estudo dos tecidos. Os avanços nas pesquisas sobre o câncer só foram possíveis porque rotineiramente se extraem tumores dos pacientes e se pode estudar o tecido, entender como se dão as mutações e desenvolver drogas para evitar as divisões das células tumorais", avalia o patologista.

Mas há uma série de doenças sem indicação para a realização de biópsias em vida, como o Mal de Alzheimer. "Não se pode fazer uma biópsia cerebral com o paciente vivo", adverte. O mesmo vale para outros órgãos problemáticos de serem examinados quando o indivíduo está em vida, como o coração. Para esses casos, o recomendável é fazer um estudo do cadáver a partir das imagens obtidas no Pisa e, então, retirar um pequeno fragmento do tecido por punção.

ENSINO MÉDICO

O aumento do número e da precisão dos exames post-mortem reflete diretamente na melhoria da qualidade do ensino médico. Saldiva faz questão de ressaltar que a autópsia é o melhor meio para aprender medicina: "As autópsias possibilitam integrar o conhecimento: entender os efeitos sistêmicos das doenças no organismo e as relações entre os fatores".

A dengue é exemplo de uma doença nova que passou a ser melhor compreendida com ajuda das autópsias. Através da análise dos pacientes mortos, pôde-se constatar que não se trata de uma doença respiratória e articular, comparável a uma gripe, como se imaginava. "Ela causa uma hepatite semelhante à da febre amarela, encefalite e problemas no miocárdio, o que faz dela uma doença sistêmica", explica o patologista.

É o caso, também, de males da modernidade, cujos efeitos sistêmicos no organismo ainda são pouco conhecidos. As biópsias post-mortem são cruciais para entender, por exemplo, os efeitos do crack sobre o sistema nervoso de crianças, as consequências do estresse crônico em várias áreas do cérebro e as implicações da obesidade no organismo.

Fotos: Divulgação