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Evento debate racismo em Cuba e no Haiti

por Flávia Dourado - publicado 10/07/2013 17:50 - última modificação 04/08/2015 14:13

Em evento realizado em junho, pesquisadores da Princeton Universit traçaram um panorama do racismo no Haiti e em Cuba a partir de uma perspectiva comparativa.

Rachel Price, Lilia Moritz Schwarcz e Nick Nesbitt

Rachel Price, Lilia Moritz Schwarcz e Nick Nesbitt no encontro sobre o racismo em Cuba e no Haiti

Dois países do Caribe marcados por um histórico de exploração colonial, escravidão e bloqueio internacional e transformados por revoluções conduzidas pelo povo. Assim são Haiti e Cuba, duas nações que, apesar das inúmeras semelhanças, mostram-se bastante diferentes no que diz respeito ao racismo. E foi para discutir essas diferenças que o IEA realizou no dia 27 de junho o painel O Lugar da Raça: Debates Caribenhos Contemporâneos.

Organizado em parceria com a Rede Global Colaborativa "Raça e Cidadania nas Américas" (Raca, na sigla em inglês), com  apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) e da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, o evento integra a agenda de atividades do acordo de parceria estratégica assinado pela USP e pela Princeton University, dos EUA.

O painel contou com exposições de Nick Nesbitt e Rachel Price, ambos professores da Princeton University, que falaram sobre a questão da raça no Haiti e em Cuba, respectivamente. A coordenação ficou a cargo de Lilia Moritz Schwarcz, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que também atuou como debatedora.

O pioneirismo haitiano

Nesbitt abordou as relações entre raça e cidadania no Haiti a partir de uma perspectiva histórica. De acordo com ele, a questão do racismo no país sempre foi tratada como uma luta política, cujo maior exemplo seria a Revolução Haitiana (1791-1804), que resultou no primeiro território do mundo a abolir a escravidão e no primeiro estado a conquistar a independência pelas mãos de escravos.

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Também conhecida como a Revolução dos Jacobinos Negros, a Revolução Haitiana voltou-se contra a França colonizadora e escravocrata, mas, ironicamente, foi influenciada pelos ideais de fraternidade, liberdade e igualdade da Revolução Francesa e fortalecida pelo clima de incerteza gerado pelo período revolucionário francês.

Segundo Nesbitt, o jacobinismo negro começou como uma revolta de escravos, de caráter local, mas transformou-se numa revolução ao ampliar o escopo da luta e passar a lutar por dois objetivos: fundação de uma estrutura social na qual a discriminação racial e o sistema hierárquico baseado em subdivisões por tons de pele deixassem de existir; e a universalização da luta, que deixou de ter como alvo apenas a escravidão de haitianos e passou a defender o fim da escravização de todos os seres humanos.

O Haiti pós-racial

O pioneirismo haitiano teve um custo: os líderes revolucionários precisaram partir do zero para criar um estado republicano regido pela igualdade humana, algo sem precedentes até então. De acordo com Nesbitt, em função disso, os haitianos se depararam com perguntas sem respostas: "Como criar uma sociedade na qual a soberania popular não esteja alienada por uma hierarquia social e racial e na qual haja uma situação geral de justiça e igualdade?".

Para viabilizar a construção desse novo estado republicano pós-racial, François-Dominique Toussaint Louverture (1743-1803), maior líder da Revolução Haitiana, decidiu pela formulação de uma constituição num momento em que o país ainda lutava pela independência. Segundo Nesbitt, esse foi o primeiro documento do gênero a declarar que todos os homens tinham o direito de não serem propriedade de outros homens.

Após a deposição e morte de Louverture pelos franceses, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806) assumiu a liderança e, com o fim da revolução, promulgou uma nova constituição, já no contexto de um estado independente. Nesbitt destacou que essa segunda constituição também foi marcada pela originalidade, pois declarou que todos os cidadãos do Haiti, independente de cor, eram negros. "A partir deste gesto inventivo, todo mundo se tornou negro, de modo que a categorização racial, ao invés de ser apagada, foi expandida, universalizada, e convertida em um atributo político de cidadania", disse o pesquisador.

Para Nesbitt, o caso haitiano merece atenção porque a tradição do jacobinismo negro aborda a questão da raça de forma muito específica, procurando não apagar as marcas das diferenças raciais, mas torná-las irrelevantes na hierarquia social e no âmbito dos direitos políticos.

A polêmica cubana

Price abordou a conjuntura atual do racismo em Cuba, concentrando sua exposição na polêmica gerada em torno do artigo "For Blacks in Cuba, the Revolution Hasn't Begun" (Para os Negros em Cuba, a Revolução Não Começou), do escritor cubano Roberto Zurbano, publicado em 24 de março de 2013 no jornal americano "The New York Times".

Fazendo referência às medidas de abertura da economia cubana, Zurbano diz no artigo que "o setor privado em Cuba goza agora de certo grau de liberdade econômica, mas os negros não estão bem posicionados para tirar vantagem disso. Herdamos mais de três séculos de escravidão durante o período colonial espanhol. A exclusão racial continuou após Cuba se tornar independente em 1902, e meio século de revolução desde 1959 tem sido incapaz de superá-la".

O artigo gerou um intenso debate internacional em torno da questão da raça em Cuba e resultou na publicação de inúmeros outros artigos em resposta, alguns apoiando a visão de Zurbano, outros criticando o que seria o não reconhecimento dos ganhos que a Revolução Cubana teria proporcionado aos negros. Segundo Price, trata-se de um debate que acontece fora dos espaços oficiais cubanos e é promovido sobretudo por jovens, blogueiros e artistas engajados no tema.

Uma questão global

Diante da grande repercussão do artigo, Zurbano declarou que o título foi mudado de última hora sem seu conhecimento, sendo o original menos controverso: "For Blacks in Cuba, The Revolution Isn't Over" (Para os Negros em Cuba, a Revolução não Terminou). Ainda assim, defendeu a decisão de publicar o texto no NYT, pois esta seria uma forma de alcançar um público para além da academia cubana.

De acordo com Price, o escritor afirmou que renunciar ao debate internacional significaria reduzir o impacto do artigo a velhos conceitos nacionalistas e não levar em consideração o processo de intercâmbio desigual gerado pelo turismo, pelas novas tecnologias da informação, pelas migrações e pela transnacionalização da cultura.

A pesquisadora destacou, ainda, que ao fazer sua réplica, Zurbano situou o racismo cubano como um fenômeno global: "Ele disse que não queria revisar a história, mas fazer questionamentos sobre o futuro; e, ao colocar em debate tanto os avanços históricos da revolução quanto o que vem pela frente, deixou claro que não há um caso especificamente cubano, pois a questão da raça seria global, e não apenas local".

O racismo em Cuba

Para Price, a polêmica gerada pelo artigo de Zurbano trouxe à tona questões importantes relacionadas à raça em Cuba. Uma delas é a ideia de que o país não precisaria falar sobre raça porque, conforme teria declarado José Martí (1853-1895), herói da independência cubana, Cuba tinha uma aspiração pós-racial. Outro aspecto ressaltado na discussão é o da interferência dos Estados Unidos após a independência cubana, interferência que teria influenciado fortemente a condução da política racial na nova república e levado à extinção do Partido Independente de Color em 1912.

Além disso, segundo Price, tanto o texto de Zurbano quanto as respostas que suscitou chamaram atenção para aspectos ligados à raça em Cuba que devem ser discutidos, entre os quais: o histórico de desigualdade entre brancos e negros; a persistência da discriminação racial; as desvantagens dos negros para enfrentar a abertura econômica do país; os impactos do colapso da União Soviética sobre os negros, que teriam sido os maiores prejudicados; e a concentração de negros nos subúrbios.

Foto: Mauro Bellesa/IEA-USP