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A luta pela reconstrução das políticas de igualdade racial no Brasil

por Mauro Bellesa - publicado 26/08/2022 17:13 - última modificação 26/08/2022 17:13

Webinar "Construção, Desmonte e Reconstrução das Políticas de Igualdade Racial no Brasil", ocorrido no dia 19 de agosto, foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH) do IEA.

Construção, Desmonte e Reconstrução das Políticas de Igualdade Racial no Brasil - Mesa 1
Mesa 1: em cima, a partir da esquerda, Bel dos Santos Mayer, Lívia Santiago Moreira e Matilde Ribeiro; embaixo: Vilma Reis e Douglas Belchior

Apesar de a vida da população negra brasileira ainda ser fortemente afetada por racismo, injustiça, desigualdade, pobreza e violência, as últimas décadas, sobretudo a partir da promulgação da Constituição Federal em 1988, registraram vários avanços em termos de políticas, instituições, legislação e valorização da cultura afro-brasileira.

Essas conquistas, porém, sofreram retrocessos significativos no atual governo e precisam ser retomadas e aprofundadas a partir do conhecimento, práticas e propostas há muito enraizadas no movimento negro, segundo os participantes do webinar Construção, Desmonte e Reconstrução das Políticas de Igualdade Racial no Brasil, realizado em 19 de agosto. Organizado pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH) do IEA.

Seis pessoas atuantes em várias esferas do movimento negro participaram das duas mesas. Na primeira, estiveram: a assistente social Matilde Ribeiro, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e ex-ministra da Secretaria Especial de Promoção das Políticas de Igualdade Racial; a socióloga Vilma Reis, pesquisadora do Instituto Ceafro de Educação para a Igualdade Racial e de Gênero e ex-ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia; e o historiador Douglas Belchior, um dos criadores da Coalizão Negra por Direitos e do movimento UNEafro Brasil.

A segunda mesa teve a participação da assistente social Lúcia Xavier, cofundadora e atual coordenadora-geral da organização não governamental Criola; da escritora Cidinha da Silva, autora do livro de contos "Um Exu em Nova York" (2018) ,entre outras obras; e da assessora parlamentar Maria das Neves, da União Nacional dos Negros e Negras Pela Igualdade (Unegro) e ex-secretária nacional do Conselho Nacional da Juventude, que representou a deputada estadual Lecy Brandão (PCdoB-SP), impossibilitada de estar no evento.

A mediação das duas mesas foi de Bel Santos Mayer, integrante do GPDH, coordenadora de projetos do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário Queiroz Filho e gestora da Rede de Leitura LiteraSampa, e da psicóloga Lívia Santiago Moreira, também integrante do grupo, professora do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e doutoranda em história e teoria literária na Unicamp.

Secretaria Especial

Matilde Ribeiro abriu a primeira mesa tratando do processo que levou à criação e estruturação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da qual foi a primeira titular, quando a secretaria tinha status de ministério. Segundo ela, tudo começou quando foi indicada pela Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do Partidos dos Trabalhadores para integrar a equipe que produziu o programa do partido para a eleição presidencial de 2002. A duas mulheres negras do grupo de 23 pessoas eram ela e a senadora Benedita da Silva, que naquele ano foi vice-governadora e governadora (a partir de junho) do Rio de Janeiro. Em seguida àquela participação, ela foi escolhida para ser uma das 51 pessoas que constituíam a equipe de transição entre os governos FHC e Lula, para tratar da questão da igualdade racial.

Depois, nos primeiros meses de 2003, houve a estruturação da Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial. “Eu estava certa de que estaria na foto da posse ao lado dos outros ministros”, afirmou, mas isso não aconteceu, “pois há grandes dificuldades para construir projetos efetivos nos campos da diversidade e direitos humanos, questões um tanto incompreendidas”. Foram três meses de negociações até a criação da secretaria em 21 de março, disse. “O começo foi bastante agitado, dinâmico, pois ninguém tinha vivido essa realidade antes, nem o movimento negro, nem o das mulheres negras e nem a própria gestão pública. A lista de reivindicações históricas do movimento negro era quilométrica, o grande desafio foi chegar ao que seria a prioridade. Foram escolhidos os quilombos e eu nunca tinha ido a um”, relatou.

Outra questão, disse, era o trânsito dentro da esfera administrativa/burocrática e do poder dentro do governo. Foram muitas idas e vindas para o convencimento das pessoas sobre os temas e necessidades da secretaria, segundo Matilde. “Depois de construir o convencimento, a segunda questão foi estruturar a Seppir. No dia 22 de março, tomei posse e não havia cadeira para mim. Comecei do zero em termos de estruturação, não da história, que já dera passos.”

Legislação

Dar vida às políticas através de legislação e implantação de programas foi o estágio seguinte, caso do Decreto 4.887, de novembro de 2003, que regulamentou o procedimento da identificação à titularidade das terras de comunidades quilombolas e deu origem ao Programa Brasil Quilombola (instituído pelo Decreto 6.261/2007), que estabeleceu a Agenda Social Quilombola, um conjunto de ações voltadas à melhoria das condições de vida do quilombolas e à ampliação de seu acesso a bens e serviços públicos.

Para Vilma Reis, a Seppir significou a institucionalização do processo de elaboração de políticas para a população negra em escala. “Levamos 15 anos para regulamentar o artigo 68 da Constituição e chegar ao Decreto 4.887. Não tivemos um minuto de sossego. Foi preciso ‘inventar um país’ ao priorizar a política quilombola”, afirmou.

O ano de 2003, também foi marcado pela promulgação da Lei 10.639, em 9 de janeiro, que alterou as diretrizes e bases da educação nacional, incluindo no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira, lembrou Vilma.

Alguns dos outros fatos citados por ela como significativos da luta contra a racismo e outras formas de discriminação foram a denúncia do crime de racismo, “o maior crime de nossa sociedade”, em 1995, nos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, e uma conferência mundial em 2001, onde o Brasil ocupou a relatoria (“já éramos uma liderança internacional”).

Batalhas invisibilizadas

Ela lembrou também que, ainda 1995, Matilde Ribeiro organizou um dossiê sobre as mulheres negras na revista Estudos Feministas, com a participação de 20 autoras negras. Segundo ela, havia a convicção de que, para tratar das questões levantadas sobre a condição da mulher negra, era preciso trazer à luz todas “as batalhas invisibilizadas”.

Vilma comentou que, em 2008, ela e Matilde estiveram na Universidade do Texas em Austin, EUA, e “o Brasil era a grande novidade do mundo, as pessoas tinham orgulho do país, e uma das notícias que se espalhavam era sobre as políticas raciais brasileiras”. Citou também os 20 anos das cotas para negros em universidades públicas, iniciadas em 2001 na Uerj, e o crescimento de candidaturas negras nas eleições.

Douglas Belchior disse que quando iniciou sua atuação no movimento negro encontrou uma “avenida” que fora aberta por quem veio ante e “abriu o caminho com o próprio corpo para discutir o fundamental, explicar o que é o brasil e o que é o racismo”. Destacou que grande parte das formulações políticas dos últimos 40 anos foram feitas por lideranças que estão vivas, como Matilde e Vilma.

Educação

Ele acompanha o exercício da educação popular nas periferias de São Paulo há 25 anos, disse. “Conheci muito cedo o movimento de cursinhos comunitários ligados ao movimento negro.” Além desses cursos pré-vestibulares em São Paulo, ressaltou a importâncias, entre outras coisas, dos movimentos para políticas públicas de moradia, o Uniafro, o Núcleo de Consciência Negras da USP, o Instituto Steve Biko em Salvador (BA) e o Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) de Nova Iguaçu (RJ).

Para ele, mesmo tendo o Estado contra e políticas de negação de direitos, os negros sobrevivem e organizam sua resistência: “A população negra talvez seja o segmento mais vitorioso da sociedade brasileira”.,

A segunda parte da mesa foi dedicada à discussão sobre o desmonte da estrutura que fora criada a partir dos anos 90, o corte de recursos e como repensar a retomada das políticas de igualdade racial.

Matilde disse que estrutura foi se desmilinguindo no atual governo, com a Seppir sendo incorporada por outro ministério e um quadro geral de pauperização e “nenhuma importância com a vida dos brasileiros, ainda mais se negros ou indígenas”. O desmonte do que havia “está baseado nesse campo político e na tese de que não há racismo no Brasil”, afirmou.

Conhecimento adquirido

A reconstrução é o grande desafio, segundo ela. “Só que construir hoje tem um sentido diferente do que tinha em 2003, pois não estamos zerados”, disse, referindo-se ao conhecimento adquirido sobre o funcionamento da máquina pública. O aprendizado também vale para a sociedade civil, que se habilitou a fazer projetos, monitorar políticas públicas e lidar com autoridades, completou.

“O desmonte ocorrido passou pela desconsideração da história do povo brasileiro. Reconstruir é retomar esses valores, acreditar na gente e o movimento social ir para cima da estrutura do Estado, negociando e, quando preciso, brigando”, afirmou.

Uma pergunta do público para Vilma foi se o movimento negro dos últimos 40 anos pode ser comparado em termos de experiencia de luta dos negros ao Quilombo de Palmares. Vilma respondeu que as iniciativas das últimas décadas são alguns capítulos da luta: “Sem os séculos de construção e enfrentamento, não estaríamos aqui. Ancestralidade, identidade e resistência são os três pilares que nos sustentam”.

Quanto à luta por representação parlamentar, Vilma disse que na Constituinte de 1986 houve grande esforço para formar uma bancada negra de menos de 10 constituintes, mas agora há um número bem maior de candidaturas de mulheres negras ao Congresso Nacional e assembleias estaduais. “Isso é inédito num país cujo Câmara dos Deputados conta com 513 parlamentares, mas apenas 21 deles são mulheres negras e uma é indígena”.

Negação política

Para Belchior, o rompimento com as políticas para igualdade racial foi total no atual governo, ao qual se soma a “negação política sobre o significado do racismo e suas resultantes sociais”. Ele retomou a questão dos quilombos e afirmou que os ataques do agronegócio também atingiram as comunidades quilombolas. Além disso, considera que a questão dos quilombos não aparece com a intensidade devida: “O direito à terra também mantém a floresta em pé, e quilombo também queima”.

Construção, Desmonte e Reconstrução das Políticas de Igualdade Racial no Brasil - Mesa 2

Na segunda mesa do webinar, a moderadora Lívia Santiago perguntou a Lúcia Xavier quais os recursos mais eficazes na luta contra o racismo, tendo como referência os 30 anos de militância da expositora. Ela respondeu que os 30 anos de atuação do Criola se confundem a trajetória de movimentos pela igualdade racial. Comentou que ações políticas de mulheres negras nesse período formaram outras mulheres. Um exemplo disso, segundo ela, foi a luta das empregadas domésticas por direitos, “mulheres entre 60 e 70 anos agora e que estão hoje à frente de mobilizações”. Para ela, as coisas só começaram a mudar institucional e simbolicamente com a Constituição Federal de 1988.

A partir de então, muitas mulheres se destacaram como lideranças políticas e ajudaram a pensar a melhor estrutura de organização das mulheres, afirmou. "São mulheres presentes em várias entidades, que incluem terreiros de candomblé, confrarias e escolas de samba. Essas mulheres iniciaram o desenho da estrutura para a construção da igualdade e foram aprender o necessário para isso, inclusive sobre leis e políticas públicas, para fazer valer o direito da população negra”, disse.

Para ela, a empregada doméstica é a representação do que é ser uma mulher negra num país como o Brasil, “mas também se apresenta como potência, como novo modo de pensar a vida humana e as relações na sociedade”.

Diversidade de atuação

Falando sobre a diversidade de atuação das mulheres negras, Cidinha disse que as políticas de igualdade racial têm se segmentado, atendendo às várias especializações, expertises dos seus atores, que atuam no campo religioso, na literatura e em diversas outras áreas. “Um dos pontos em que precisamos nos deter é a ideia genérica da cultura negra, que desconsidera o que as pessoas têm produzido de mais específico”, frisou.

Uma mulher negra que lida com formação política não deve ser chamada a falar de literatura, outra que trabalha com educação não deve ser chamada para falar de saúde, disse. “Ainda hoje acontece um pouco disso, como se as mulheres negras e suas instituições fossem coringas e pudessem ocupar qualquer espaço e falar sobre qualquer tema.”

Ela comentou que 34 autores negros produziram um livro sobre relações raciais e políticas sob a perspectiva da diversidade que foi considerado uma obra de referência pela Capes. O objetivo foi suprir a falta desses temas no Plano Nacional do Livro e Leitura, mas a obra “é completamente ignorada, inclusive por gente do nosso campo de atuação”.

Sem reinventar a roda

Para Cidinha, muita coisa precisa ser refeita, mas “a partir do que já foi feito, vendo o que pode e deve ser melhorado, não reinventar a roda”. Ela lembrou que já em 2005, nos dez anos da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, era dito que “não precisávamos mais de diagnósticos, mas de políticas, construídas a partir dos mapeamentos que tínhamos feito”.

Em sua participação, Maria das Neves ela leu manifestação enviada por Lecy Brandão na qual a deputada defendeu a necessidade de união e repactuação dos compromissos em relação a políticas contra o racismo e a desigualdade racial.

Falando em seu próprio nome, Maria defendeu as cotas raciais, políticas de reparação, o Estatuto da Igualdade Racial,  a equiparação da injúria racial ao crime de racismo, e o fim do auto de resistência como justificativa para a morte de suspeitos abordados pela polícia e a efetiva implementação da lei sobre o ensino da história e cultura negras nas escolas.

Fotos: IEA-USP