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Uma análise dos rumos institucionais da cultura na América Latina

por Mauro Bellesa - publicado 30/11/2021 16:55 - última modificação 06/01/2022 13:39

No dia 25 de novembro, o titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, Néstor García Canclini, e os pós-doutorandos Juan Brizuela e Sharine Melo apresentaram os resultados iniciais da pesquisa "A Institucionalidade da Cultura e as Mudanças Socioculturais".

Juan Brizuela, Néstor Canclini e Sharine Melo - 25/11/2021
Juan Brizuela (esq.), Néstor García Canclini e Sharine Melo durante a apresentação dos resultados iniciais da pesquisa desenvolvida na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência

Um exame crítico da crise, das transformações e das perspectivas das instituições culturais na América Latina. Essa é a contribuição da pesquisa "A Institucionalidade da Cultura e as Mudanças Socioculturais", empreendida pelo antropólogo cultural argentino Néstor García Canclini, titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (parceria do IEA com o Itaú Cultural), com a colaboração dos pós-doutorandos Juan Brizuela e Sharine Melo.

No dia 25 de novembro, os três apresentaram os resultados iniciais do estudo no seminário Emergências Culturais Latino-Americanas: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México, que teve coordenação da semioticista Lucia Santaella, titular da Cátedra Oscar Sala (convênio entre o IEA e o NIC.br).

Fechamento

Muitas instituições culturais fecharam em função da pandemia, mas o setor já apresentava antecedentes de fechamento em razão de outros fatores, como a crise econômica e mudanças no modo de consumo cultural, disse Canclini. Com a pandemia, “podemos dizer, numa ironia trágica, que os públicos foram definidos pela impossibilidade de frequentar livrarias, cinemas, teatros, universidades e demais instituições culturais”, completou.

Nas entrevistas realizadas na pesquisa, artistas, produtores e gestores falaram sobre como transcorreu a vida cultural com o fechamento dos espaços, a atuação a distância nos meios digitais e a abertura gradual das atividades, informou Canclini.

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Em função dessa situação crítica para os atores culturais, inclusive com cortes orçamentários em muitos países, como no Brasil e no México, várias atividades tiveram de ser reformuladas, como apresentações teatrais e musicais, afirmou. Esse quadro leva, segundo ele, à necessidade de analisar os serviços de streaming e redes sociais como instituições. "É preciso levar em consideração, no entanto, que essas plataformas são efêmeras e que os meios digitais fomentam uma intermitência de comportamento."

Comunidade

Outra constatação da pesquisa é a necessidade de vincular a noção de instituição com a de comunidade. “Pensávamos em comunidade como um grupo de pessoas vinculado a um território. Depois, passamos a falar de redes sociais. E nos últimos anos tivemos que pensar em comunidades transnacionais, como as de migrantes, que remetem para seus países não só dinheiro, mas também elementos culturais, como mensagens, fotos e vídeos”, disse o antropólogo.

Néstor García Canclini - 25/11/2021
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Ele considera que é preciso pensar a cultura ligada ao cultivo de um território junto com essas outras formas de comunidade, mas identifica que o momento é de uma transição incerta na forma de ser de comunidades, públicos e consumidores de cultura.

No entanto, se de um lado houve certa desinstitucionalização por motivos econômicos, digitalização, pandemia e outros fatores, sistemas tradicionais viram surgir novas formas de institucionalização, afirmou.

Mas Canclini não vê a possibilidade de atividades presenciais voltarem a dominar o espaço adquirido pelos meios digitais: “Vamos continuar trabalhando na escola, no teatro, na música e outras atividades presencialmente e de forma remota”.

Transparência

Ele defendeu maior transparência para as instituições, que devem "mostrar suas contas e se deixarem ser escrutinadas", para que não sofram da perda de credibilidade que afetas os partidos políticos, sindicatos e universidades. "Também é preciso atentar para a governança, para o uso do dinheiro."

Para ele, transparência é também porosidade para interagir com a mudanças culturais e sociais. "As elaborações simbólicas vão mudando e a porosidade dos movimentos sociais também". Ele vê, porém, pouca cooperação entre os movimentos sociais: "Eles precisam ser porosos entre si também."

Pontos de Cultura

Juan Ignacio Brizuela - 25/11/2021
Juan Brizuela: ''A emergência de novas demandas no panorama cultural não é necessariamente uma pauta da esquerda''

Juan Brizuela apresentou dados de seu trabalho sobre Pontos de Cultura, programa brasileiro que “se expande pela América Latina e está em processo de institucionalização”.

Sua pesquisa também leva em conta o aspecto territorial, uma vez que Brizuela mora e pesquisa no agreste baiano, “fora do imaginário do litoral”. Ele afirmou que não há museu em nenhum dos 20 municípios englobados pela pesquisa, mas há 20 Pontos de Cultura na região. As entrevistas com integrantes desses espaços trataram de como eles sobreviveram no contexto da pandemia.

Brizuela está analisando também a dimensão territorial dos pontos de cultura em outros países e como se dá seu processo de institucionalização.

Para ele, a emergência de novas demandas no panorama cultural não é necessariamente uma pauta da esquerda, de caráter progressista. "Estão surgindo demandas conservadoras fortes e com sedimentação na cultura popular e isso se reflete na prática artística. Não podemos pensar as instituições fora da sociedade."

Emergência cultural

Sharine Melo pesquisou o processo de formulação da Lei Aldir Blanc (14.070/20) a partir de iniciativas da sociedade civil em parceria com o Congresso Nacional e como ela foi utilizada por instituições culturais e artistas.

Ao tratar da conjectura que levou a mobilização pela lei, Sharine informou que, segundo dados do Itaú Cultural e da Pnad Contínua, do IBGE, 870 mil trabalhadores da cultura perderam o emprego no primeiro semestre de 2020 em função das restrições impostas pela pandemia.

Sharine Machado Cabral Melo - 25/11/2021
Sharine Melo: ''A Lei Aldir Blanc gerou mais de 400 mil postos de trabalho em 2020''

Ela apresentou também levantados no início da pandemia pelo Observatório da Economia Criativa: 80,7% dos profissionais não possuíam vínculo empregatício formal e 71,2% tinham reservas para subsistência por apenas três meses, percentual que chegou a 77,8% no caso das instituições. Em abril de 2020, 79,3% dos profissionais cancelaram entre 50 e 100% de suas atividades. Entre março e julho do ano passado, 65,8% das organizações reduziram parte de seus contratos e 50,2% demitiram empregados.

A Lei Aldir Blanc estabeleceu a concessão de uma renda emergencial aos trabalhadores da cultura, subsídio mensal para manutenção de espaços e organizações artísticas e culturais e o lançamento de editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados à cultura e outras iniciativas em apoio à manutenção do setor.

Sharine disse que a lei propiciou em 2020 a geração de mais de 400 mil postos de trabalho e foi adotada por todos os estados e 75% dos municípios. Mas a concessão de recursos foi desigual, com maior concentração no Nordeste e em cidades do país com mais de 100 mil habitantes, informou. A percentual de execução dos recursos também variou. Nem todos os municípios conseguiram utilizá-los. “Alguns executaram cerca de 20% e outros quase 100%.”

Sharine destacou a forma colaborativa, via redes sociais, como a lei foi formulada. “As discussões no Observatório de Emergência Cultural foram replicadas por uma nuvem de canais. No dia da votação na Câmara dos Deputados, 26 mil pessoas assistiram a sessão pelo canal no YouTube da TV Câmara, número muito expressivo, por se tratar de algo bastante específico.”  De acordo com ela, a hashtag #AprovaEmergenciaCultural” ocupou a 2ª posição nacional e a 23ª mundial no ranking do Twitter no dia da aprovação da lei.

México

Mariana Martínez, a assistente de Canclini para a pesquisa, falou via teleconferência a partir da Cidade do México. Ela apresentou alguns dados sobre as entrevistas feitas no México. Afirmou que a pandemia foi um golpe para museus, teatros e outros aparelhos culturais. “Essas instituições estão num momento crítico e precisam se redefinir, mas estão vacilantes em relação à forma de se conectar com a sociedade", afirmou.

A parte mexicana da pesquisa também incluiu entrevistas com movimentos sociais, como os feministas e os de busca por desaparecidos, pois eles propuseram um novo projeto monumental, diferente do definido pelo governo, disse Mariana. No entanto, “não foi estabelecido um diálogo correto entre governo, instituições e sociedade”.

Segundo Mariana, nas entrevistas feitas no México surgiu a questão sobre a confiança nas instituições. "Uma entrevistada relatou que foi difícil trabalhar com outros coletivos, pois eles não queriam trabalhar com outras instituições. Há uma desconfiança geral até com os museus", afirmou a pesquisadora.

As gerações mais velhas consideram muito importante resgatar e modificar as instituições a partir do diálogo, mas parece que os jovens estão rejeitando essa proposta, de acordo com Marina. "Dá a sensação de que os jovens consideram que o relacionamento com instituições tradicionais tira a legitimidade de sua luta. As instituições são falhas, mas não podemos eliminá-las, mas sim torná-las diferentes", disse.

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Para a moderadora do encontro, Lucia Santaella, a situação de emergência devido à pandemia tem antecedentes na América Latina: "A crise já vinha de antes, com precarização do trabalho e, no Brasil, problemas políticos muito sérios. Tivemos que enfrentar isso primeiro. Quando a pandemia veio, as coisas se intensificaram. A pandemia chegou aqui num campo minado".

Ela destacou a "sobriedade" do trabalho de Canclini, Sharine e Juan. "Diante dessa crise, muitos intelectuais brasileiros têm perdido a sobriedade e caído no arrebatamento da crítica", afirmou. Em sua opinião, é preciso evitar duas tendências: cair no apagamento do passado ou retomá-lo de maneira conservadora.

Conceitos

"Desde os anos 80, estamos vivendo grandes rupturas que afetam não apenas as políticas, mas também a vida cultural, desde que o computador começou a entrar em nossas casas. Isso tem provocado certos abalos sísmicos nos conceitos tradicionais. O primeiro dele é o de instituições, do que chamávamos de instituições", comentou Lucia. Isso tem a ver com outro aspecto do trabalho de Canclini ressaltado por Lucia: "A retomada por ele dos grandes conceitos com que tem trabalhado há décadas, repensando-os".

Ela ressaltou outros conceitos retrabalhados por Canclini, como o de dispositivo para instituições tradicionais novas, o de comunidades diante do surgimento das comunidades virtuais, o de cidadania a partir da natureza da cidadania virtual ("temos de começar a pensar numa cidadania planetária") e o de autoria, que desde o cinema transformou-se em autoria coletiva ("a produção de games é impossível sem o trabalho coletivo").

Os resultados finais da pesquisa serão publicados em forma de livro daqui a quatro ou cinco meses, segundo Canclini. "A ideia é fazer um seminário de lançamento no IEA e talvez outro na Cidade do México, com a participação de artistas, produtores e pesquisadores.

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP

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