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Especialistas acreditam que Brasil e outros países da América Latina passam por crise democrática

por Vinícius Sayão - publicado 14/12/2017 14:30 - última modificação 15/12/2017 17:35

Para a professora e cientista política Brigitte Weiffen, América Latina enfrenta uma crise latente da democracia, com eventos como tentativas de golpes, confrontos e impeachments acontecendo com frequência

"Nós estamos enfrentando uma crise latente na América Latina. Quando os especialistas se referem à decadência da democracia, se referem a eventos como tentativas de golpes, auto golpes, confronto entre governo e oposição, confronto com o parlamento, com movimentos populares”, explicou a professora e cientista política Brigitte Weiffen, em sua apresentação no seminário Democracias em Crise? Experiências Europeias e Latino-Americanas, que aconteceu no IEA no dia 11 de outubro. Essas situações que identificam crise democrática citadas por ela aconteceram com certa frequência na América Latina em um passado recente. Países como Venezuela, Paraguai e até mesmo Brasil sofreram impeachments ou tentativas de golpe nos últimos anos.

Organizado pela Cátedra Martius de Estudos Alemães e Europeus em cooperação com o Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia do IEA, o evento reuniu especialistas da Europa e das Américas, para estudar o conceito de crise da democracia e explorar as variantes e causas de crises em diferentes contextos.

Brigitte, que é a titular da Cátedra Martius de Estudos Alemães e Europeus, classificou as crises democráticas em dois tipos: crise como evento agudo e crise latente. A primeira caracteriza-se como um evento que pode mudar o rumo do caminhos institucionais, inclusive causando rupturas no sistema político do país. A segunda, é uma crise que se arrasta por muito tempo, indo contra a consolidação da democracia.

Ela ressalta, no entanto, que a crise aguda pode ser o ponto de partida para uma crise latente, que pode acabar levando ao declínio da democracia. O inverso também é válido: a crise latente pode se desenvolver em um período de tempo e culminar numa crise aguda. “Ainda existem casos de crise latente acontecendo há tempos. Na Venezuela, por exemplo é possível identificar pontos em que houve mudanças institucionais que podem ser consideradas crises agudas ao mesmo tempo em que acontecia a crise latente”, explicou a cientista política. Ela lembra, no entanto, que é preciso diferenciar crise de declínio da democracia: “crise é a situação que cria condições ao declínio da democracia”.

Sobre a crise brasileira, José Álvaro Moisés, professor e coordenador do Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia, ressaltou que um dos pontos-chave foi a incapacidade do governo eleito em 2014 de assegurar sua base no congresso e garantir sua governabilidade. Desde aquele ano, o Brasil esteve imerso em uma recessão econômica profunda que, segundo Moisés, fez com que mais de 1.8 milhão de empresas de diferentes linhas falissem. “Isso levou o país a consequências muito graves, como o aumento do desemprego, a queda no rendimento daqueles empregados e crescimento na inflação”, explicou o professor.

Para ele, existem sinais de conflito entre os poderes executivo, legislativo e judiciário do país, que prejudicam a política. “O sistema político tem dificuldade de responder rapidamente aos problemas sistêmicos, o que agrava as crises econômicas e sociais”, comentou Moisés, que complementou: “Enquanto o executivo mantém muito poder de medidas provisórias, o legislativo enfrenta limites na sua habilidade de controlar as maiores coalizões nacionais, o que afeta o desempenho de políticos e de partidos políticos. Tais limites não questionam a existência da democracia no país, mas sim a qualidade dela”.

O professor acredita que o regime político vigente apresenta falhas e distorções, principalmente quanto às práticas de abuso de poder, ao fenômeno sistêmico de corrupção e ao desrespeito às leis de controle fiscal, “o que significa que o estado de direito e o sistema de responsabilização ainda não estão completamente estabelecidos no país. O Brasil tem um dos sistemas partidários mais fragmentados do mundo, mais fragmentado ainda depois de 2014”, concluiu.

Maria Hermínia Tavares de Almeida - Matéria
Para Maria Hermínia Tavares, os cidadãos brasileiros estão predispostos a aceitar informações negativas sobre o governo

Maria Hermínia Tavares de Almeida, cientista política e professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, chamou a atenção para o efeitos das recentes mobilizações populares ocorridas no país. Para ela, “[as mobilizações] revelaram novas formas de expressão da sociedade civil. Embora não seja o único elemento do processo, a mobilização teve enorme influência. Foi muita gente para as ruas com demandas diferentes, sem liderança, sem participação de sindicatos, sem sociedade civil organizada”.

“As manifestações de junho de 2013 e do início de 2015 marcaram dois momentos na avaliação do governo Dilma. O índice de aprovação do governo era muito alto um mês antes de 2013. Logo em seguida esse nível caiu e teve oscilação até 2015, quando começou a cair antes mesmo da grande manifestação contra o governo em 2015”

A pesquisadora levantou um aspecto curioso sobre a avaliação do governo do PT. Segundo ela, aqueles que acreditavam que sua vida havia melhorado com o governo, atribuíram a melhora a si mesmos, ao próprio esforço, às suas famílias e até mesmo a Deus. Já para os que achavam que sua situação piorara, o governo foi apontado como o principal culpado, geralmente personificado no presidente do país ou no prefeito da cidade.

"Eu acredito que essa avaliação, no caso do Brasil, tenha a ver com percepções e atitudes arraigadas em relação às instituições, que deixam os cidadãos predispostos a aceitar informações negativas sobre o governo, sobre os políticos. As pessoas são muito mais propensas a serem críticas e há muitos cidadãos insatisfeitos que se tornam cada vez mais críticos", explicou Maria Hermínia.

Perguntar à população é, inclusive, uma das formas de avaliar se uma democracia está em crise, segundo Wolfgang Merkel, diretor diretor do departamento de Democracia e Democratização, do Centro de Ciências Sociais de Berlim. Ele apresentou mais dois passos nessa avaliação. Um deles é perguntar aos cientistas políticos, além da população, sobre a democracia, já que eles são especialistas na questão normativa e podem perceber traços autocráticos que por vezes passam despercebidos pela população – como é o caso da Alemanha de 1936, quando alguns alemães diziam que o regime era legítimo.

Outro passo é analisar as funções democráticas específicas, as participações no poder, as formas de representação, entre outras. “Há uma variedade de democracias, cerca de 120 tipos de democracias eleitorais. As baseadas em estado de direito são apenas metade deste número. As democracias são muitos diferentes”, refletiu Merkel.

América Latina

Juliano Zaiden Benvindo - Matéria
Juliano Benvindo: "A América Latina é uma região rica em experiências constitucionais e instabilidades políticas"

Juliano Zaiden Benvindo, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), definiu a América Latina como uma “região rica de experiências constitucionais, instabilidades políticas, e contínuas dificuldades entre desenvolvimento e igualdade social”. Segundo ele, muitos países latino-americanos tiveram pouca ou nenhuma experiência democrática antes de 1990, já que foi apenas na década de 80 que transições de ditaduras para democracias ganharam força em diferentes países da América Latina.

Entre os principais aspectos constitucionais presentes nessa região estão o “hiper presidencialismo” (o grande acúmulo de poderes concentrados no Poder Executivo), a centralização do poder, a fraqueza das instituições e o foco nos direitos sociais. Este último ponto é algo frequente nas constituições latino-americanas, no entanto, como lembra Benvindo, isso não quer dizer que tais leis são respeitadas.

Para Aníbal Pérez-Liñán, do departamento de Ciência Política da Universidade de Pittsburgh, EUA, desde a segunda guerra mundial existe uma “instabilidade consistente” na maioria dos países. Desde então, cerca de 40 presidentes democráticos foram tirados do poder.

Segundo Pérez-Liñán, os fatores em comum que ajudam a desestabilizar um presidente são as recessões econômicas, as manifestações, os protestos e o radicalismo. “Quando existem elites radicais os governos tendem a ser mais instáveis e o presidente tem mais chance de ser depostos por golpe ou impeachment, dependendo do período histórico”, explicou o professor.

Ele explicou ainda que quando os próprios presidentes são radicais, a probabilidade de queda por um golpe militar é maior do que uma deposição por meios legais. “Os presidentes radicais querem impor suas políticas a qualquer custo e, como têm preferências radicais, normalmente tentam fazer crescer o poder do executivo para ganhar controle sobre o congresso e o judiciário. Os espaços naturais para a oposição canalizar seus descontentamentos serão restritos; mecanismos constitucionais como impeachment ou protesto serão mais difíceis de implementar, e com menor chance de serem bem-sucedidos”, disse Pérez-Liñán.

Já entre os fatores que auxiliam o presidente exercer seu ofício de maneira plena, está possuir apoio forte do seu partido ou de uma coalizão no congresso e contar com o suporte da elite política. De acordo com Pérez-Liñán, quando as elites têm um compromisso maior com a democracia, elas não estarão dispostas a dar suporte a um golpe militar. Por outro lado, estarão dispostas a dar suporte para um impeachment se acharem que o presidente cometeu um crime, por exemplo.

Europa

Na Europa, a crise é em boa parte creditada à União Europeia. “Há uma grande frustração [com o acordo], porque fizeram promessas, deveriam agregar prosperidade para todos os europeus e proteger as pessoas dos aspectos negativos da globalização. O que aconteceu na verdade é que a União Europeia se transformou em uma cadeia de transmissão, acelerando liberação e desregulamentação”, explicou Bettina de Souza Guilherme, mestre em Ciência Política e Direito Internacional pela Universidade de Vienna, Áustria, e funcionária licenciada do Parlamento Europeu.

Entre os objetivos iniciais da UE estava transformar os mercados dos países membros em um mercado único, protegendo a livre concorrência e a liberdade de serviços. Mas, segundo Bettina, com a crise, as consequências negativas da integração e da da globalização foram aumentadas, o que levou a mais cortes sociais, depreciações das condições de trabalho e desregulamentação. “Percebeu-se que a arquitetura da união econômica e monetária era cheia de falhas. Houve um grande fluxo do norte até o sul, boom de construção, de turismo e serviços. Mas quando a bolha explodiu, viu-se que os países do sul tinham uma grande dívida pública”, explicou Bettina.

Outro aspecto da crise europeia foi o surgimento de anti-pluralistas, como populistas e tecnocratas, em vários países europeus. Como explicou Jan-Werner Müller, professor de Teoria Política da Universidade de Princeton, EUA, “eles [populistas e tecnocratas] compartilham uma característica: ambas são formas de anti-pluralismo. A tecnocracia aponta uma única solução política correta, se você não concorda, você é irracional. Enquanto os populistas falam: apenas a vontade do povo é autêntica, e nós somos quem os representa, e se você não concorda, está se revelando como um traidor do povo”.

Ainda segundo Müller, o populismo critica o governo, mas argumenta que somente eles defendem aqueles que chamam de “pessoas reais”, a maioria silenciosa, ou seja, o povo. “Eles reivindicam um monopólio moral de representação do povo e isso tem consequências para a democracia”, disse o professor. Para ilustrar, Müller exemplificou com o presidente americano Donald Trump: “Em um discurso em maio de 2016, Trump falou que a coisa mais importante era a unificação do povo e todos os outros povos não significariam nada. O populista tenta decidir quem realmente faz parte do povo, mesmo que você tenha um passaporte”, concluiu.

Karabekir Akkoyunlu - Matéria
Segundo Karabekir Akkoyunlu, presença dos militares e "insegurança existencial" são os principais fatores da crise turca

Um dos principais exemplos de crise na Europa é a Turquia. Como explicou Karabekir Akkoyunlu, cientista político e professor no Centro de Estudos do Sudeste da Europa da Universidade de Graz, Áustria, a Turquia nunca foi considerada uma democracia consolidada, sempre teve interferência do exército nos assuntos políticos. “Os militares claramente não estão fora da política. Houve tentativa de golpe em julho de 2016. O governo populista que se consolidou no poder com manipulação eleitoral está levando o país com decretos que são vistos como autocráticos”, disse.

Para o professor, a crise democrática turca está relacionada à “insegurança existencial”, que seria o medo e suspeita da aniquilação política por atores políticos. “Não é só o uso oportunista para mobilizar as massas, isso acontece também, mas a crença de que para sobreviver é preciso dominar ou aniquilar a outra parte, seja eleitoral, judicial e até mesmo fisicamente. Isso é contrário à ideia de democracia. Há uma mentalidade de tudo ou nada que infunde um poder assustador na política; deixar o poder é comparado ao suicídio, é impossível dar um passo para trás”.

Akkoyunlu acredita que a Turquia foi prejudicada pelas crises que aconteceram em volta, com o aumento do movimento populista na Europa e as constantes guerras no Oriente Médio. “É possível ver um aumento na insegurança depois de 2013’, concluiu o cientista político.

Fotos: Leonor Calasans / IEA-USP