Escola da Metrópole inicia atividades no IEA com seminário sobre planejamento urbano
Resgatar a capacidade gestora do Estado numa sociedade com matriz escravocrata e patrimonialista e adotar um urbanismo tático, deixando um pouco de lado as grandes linhas funcionais e entrando numa concepção humanista. Essas foram as principais recomendações que perpassaram as exposições do seminário Planejamento na Escala das Metrópoles: Experiências Realizadas e Perspectivas Atuais, no dia 16 de abril, segundo o coordenador do encontro, José Sette Whitaker, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
O seminário foi organizado pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAP) Escola da Metrópole [leia ao lado]. Os expositores foram cinco professores ligados às questões urbanas: o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP; Ermínia Maricato, da FAU-USP; Omar Pereyra, da Pontifícia Universidade Católica do Peru [leia texto nesta página]; Luís Massonetto, da Faculdade de Direito (FD) da USP; e Fernando de Mello Franco, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Whitaker é coordenador da Escola da Metrópole, da qual fazem parte também Haddad, Ermínia e Massonetto, entre outros pesquisadores.
Um novo NAP
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Morar na cidade
Para Fernando Haddad, que é também professor do Insper e ex-ministro da Educação, "a frase 'o cidadão não mora no país, mora na cidade', apregoada pela onda municipalista surgida nos anos 80, não significa muita coisa; no entanto, se transformada na frase 'o cidadão não mora em sua casa, mora na cidade’, adquire um significado muito interessante”.
“Morar na cidade é diferente de morar na mancha urbana. Significa a possibilidade de acesso a uma série de serviços, interações e oportunidades que nos permitem vislumbrar um desenvolvimento urbano de qualidade.”
A preocupação de um gestor deve ser, disse, “fazer o pobre morar nessa cidade, trazendo-o a ela ou levando a cidade até ele, com um mínimo de isonomia de tratamento: escola, postos de trabalho, hospital etc.”.
Mercado
Para ele, é errado colocar a culpa no mercado imobiliário: “O dono faz uma planilha para ver se vale a pena construir e procura maximizar seu lucro. O problema é que quando a lei é elaborada isso não é feito de maneira muito participativa”.
Uma série de normas autoaplicáveis foi inserida no Plano Diretor Estratégico produzido em sua gestão, disse Haddad, “por isso há uma pressão muito grande para mudá-lo”. “Quer se voltar à ideia do ‘sou dono do lote e quero a liberdade para explorá-lo.’”
As centralidades de Lima, PeruPara contrastar a realidade das metrópoles brasileiras e de algumas estrangeiras e as pesquisas sobre políticas públicas nos dois casos, os seminários deste semestre da Escola da Metrópole preveem a participação de pesquisadores internacionais. No primeiro encontro, o convidado foi o sociólogo Omar Pereyra, do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Pereyra apresentou dados e constatações de pesquisa de seu grupo sobre as centralidades na cidade de Lima, Peru. O grupo também participou da elaboração de um plano metropolitano para a capital peruana, mas a proposta não foi aprovada no final do processo. Por estar situada numa zona sujeita a abalos sísmicos, efeitos intensos do El Niño, "além de problemas sérios de desgoverno", Lima é considerada “ingovernável", segundo Pereyra. O trabalho do grupo é influenciado pelos estudos de novos sociólogos e antropólogos franceses, para quem “os centros urbanos podem ser fortes ou fracos", de acordo com sua capacidade de lidar com fatores adversos e alinhar as ações dos principais atores envolvidos, de acordo com Pereyra. Ele explicou que Lima é uma das cidades mais antigas da América Latina, “uma cidade que nasceu cercada por uma muralha, demolida no século 19, quando ela começou a crescer em ritmo intenso e com um planejamento um pouco mais moderno". A cidade teve três grandes planos. O primeiro foi um plano diretor para lidar com o crescimento, a transformação do solo rural em urbano, o zoneamento, grandes vias para conectar o centro com algumas grandes áreas distantes e o crescimento de favelas. “Não houve medidas para tolher esse crescimento”, afirmou O segundo plano destinou-se a ampliar a rede metropolitana de transporte para a melhoria da mobilidade. Também atuou para a consolidação de quatro grandes áreas industriais, explicou Pereyra. “O último plano foi aprovado em 2000 e resultou em grande crescimento imobiliário, com o relaxamento das normas para construção e o surgimento de edifícios de 15 a 20 andares, concentrados em áreas de classe média. Essa densificação não foi acompanhada de criação de espaços públicos e não levou em conta a largura estreita das vias.” Para Pereyra, os planos diretores tem uma convicção marcante sobre a importâncias dos centros urbanos e não tem ideia de como descentralizar as cidades, deixando isso em grande parte a cargo do mercado. “O planejamento aparece como importante, mas é pouco claro; é um instrumento muito fraco diante de atores como o mercado e a sociedade civil”. Em oposição a isso, Pereyra e outros pesquisadores resolveram propor a ideia de centralidades “Definimos lugares com grande densidade populacional, oportunidades de emprego, capacidade de atrair trabalhadores e estudantes e outros fatores”. O que foi verificado é que as centralidades mais próximas do centro de Lima congregam pessoas que vêm de muito longe e centralidades mais periféricas atraem pessoas de regiões próximas a elas, explicou Pereyra. “Várias delas estão repletas de atividades informais e publicidade abarrotando os espaços. Com os espaços públicos em situação mais dramática nas centralidades periféricas, com vendedores ambulantes invadindo calçadas e ruas.” Em uma delas, a Gamarra, situada numa área antiga de Lima e um dos centros têxteis mais importantes da América Latina, o atual prefeito decidiu desalojar o comércio de ambulantes, “grande parte dele ligado a organizações criminosas”. “Agora é mais limpa, diferente do que era, mas é cercada por policiais para impedir a entrada de ambulantes. Vai ficar assim enquanto a polícia estiver lá.” A pesquisa indicou que as centralidades, apesar de dinâmicas, "funcionam de maneira subótima e poderiam melhorar de muitas formas". Há dificuldades para chegar em grande parte delas, questão a ser trabalhada por futuros planos. As calçadas são invadidas e o quadro geral não possibilita o desfrute da cidade. "Temos dúvidas se o espaço público realmente existe nelas", disse o pesquisador Segundo ele, há um paradoxo entre o surgimento de centralidades e a descentralização. pois com o tempo as pessoas vinculadas às centralidades se afastam das áreas centrais da cidade: "Até que ponto as centralidades não se tornam segregadoras?", questionou Pereyra. |
As nove maiores regiões metropolitanas abrigam 40% da população do país, mas “elas não têm saída sem o apoio estadual e federal”, afirmou. É preciso detalhar como operacionalizar as cidades, defendeu. "Isso vai exigir um pacto federativo, pelo menos no que se refere às metrópoles.”
Haddad afirmou que não dá para chamar de cidade os locais distantes onde moram pobres, longe de oportunidades de trabalho. “Transporte público de massa é importante, mas é necessário lidar com a questão da terra”, abundante no centro de São Paulo, segundo ele.
IPTU
Diante disso, defendeu a implantação de um IPTU progressivo no tempo como mecanismo de lançamento de terras no mercado.
“Há infraestrutura no centro e terra para atender a todos, mas o poder público é pressionado para construir piscinões e BRT [sigla em inglês para o sistema de transporte rápido por ônibus] na periferia.”
Ermínia Maricato, que integra também a rede Br Cidades, disse que o processo de urbanização do país durante o século 20 produziu muitas mazelas, “mas também alguns indicadores interessantes, como a forte queda na mortalidade infantil, o aumento na expectativa de vida e a queda na taxa de natalidade”, possíveis devido a fatores como o acesso à água e o atendimento pelos serviços de saúde pública.
Assim como Haddad, ela criticou a existência de prédios ociosos no centro de São Paulo, “com ocupantes sendo criminalizados, enquanto mais de um milhão de pessoas ocupam áreas de mananciais”.
“Como abrigar essas pessoas? Teríamos que mudar o mercado imobiliário, mas mudar isso num país patrimonialista, com grandes fortunas formadas nas cidades, não é fácil.”
Fim de ciclo
Para ela, o que melhor aconteceu foram os orçamentos participativos em São Paulo e em outras cidades, como parte de um ciclo virtuoso do qual fizeram parte várias iniciativas desde os anos 80, entre as quais a urbanização de áreas precárias, os Cieps, os corredores de ônibus, o novo arcabouço legal e a participação institucional.
“Depois do ciclo virtuoso, com o dinheiro aparecendo, os municípios relaxaram e a sociedade relaxou na sua participação social.”
Em 2007, o país tinha um déficit de 7 milhões de moradias; 4 milhões foram construídas, mas o déficit continua em 7 milhões. Em sua opinião, isso deve-se ao fato de o aluguel ter se tornado excessivo para quem ele não era elevado antes. Além disso, “não controlamos o uso e a ocupação do solo.”
Não faltam planos, leis e conhecimento técnico para orientar o desenvolvimento das cidades, afirmou.
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Legislação
Luís Massonetto, ex-secretário de Negócios Jurídicos da capital paulista, discordou de Ermínia em relação ao arcabouço legal da área. Para ele, “o fracasso do direito urbanístico deve-se à má qualidade da legislação”.
“Me assusta a leitura laudatória do nosso ordenamento jurídico desde o Estatuto da Cidade. Se é tão bom e estamos há quase 20 anos celebrando o marco, por que a situação só vem a piorar?”
Controle do território
“Não pode haver ordenamento jurídico sem localização, sem controle estatal do território”, afirmou Massonetto, fazendo referência ao jurista conservador alemão Carl Schmitt (1888-1985). “Não existe mais o controle territorial”, disse.
“Como secretário, eu cuidava das desapropriações e reintegrações de posse. A desapropriação é uma manifestação do domínio do Estado e como ele pode organizar o território. Se o Estado mal consegue operar as desapropriações, como vai lidar com todos os outros instrumentos?”
Ele considera uma ilusão a ideia de que a Constituição Federal tenha empoderado os municípios. “Deram um plano diretor para a gente brincar. Durante dez anos tentou-se institucionalizá-lo e poucos resultados se conseguiu depois desse período.”
Uma lacuna apontada por Massonetto é a dificuldade em se pensar a efetivação do plano de ordenação territorial local, pois “não conseguimos dialogar com a ordenação territorial mais ampla, que é de competência da União”.
Inovação
A única maneira de reverter esse ciclo de perda de intervenção no território é a adoção de ações estratégicas, em seu entender.
Em lugar de projetos, ele defende a opção por hipóteses: “Na gestão Haddad, foram implantados ciclovias e faixas de ônibus. Não foram improvisadas, mas não poderiam ser implantadas pela lógica do planejamento. No entanto, mostraram resultados”.
Para esse fim, Massonetto defende a criação de um arcabouço para inovação que ampare ações de experimentação, inclusive legislação em nível federal.
Fernando de Mello Franco, como Massonetto ex-secretário na gestão Haddad (em seu caso, de Desenvolvimento Urbano), também defendeu a ênfase em inovação, com a identificação “de processos que campos laboratoriais podem trazer para uma maior efetivação do que almejamos, sobretudo no enfrentamento dos problemas metropolitanos".
Design
Em vez de "projeto", ele prefere a concepção de “design” como forma de agregar valor ao produto da inovação. “Hoje o design é aplicado à formatação de serviços. Poderia ser aplicado aos serviços públicos.”
Franco destacou a elaboração do Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana de São Paulo, que teve a participação do governo do estado e dos 39 municípios da região e agora precisa ser transformado em lei. “Há questões que são sobreposições e outras são de interesse local. A proposta é focar apenas nas questões públicas de interesse comum.”
Como exemplo da capacidade de o interesse comum contribuir para a gestão da região, ele citou o caso da criação do bilhete único para o sistema de ônibus da capital em 2004, na gestão Marta Suplicy. A ideia foi de que, "a partir da implantação, os problemas surgiriam e a governança metropolitana seria construída”.Presente na plateia, o jornalista Luis Nassif, ex-conselheiro do IEA, foi convidado pelo coordenador do evento a comentar as exposições. Para ele, o encontro discutiu “um projeto de país a partir de suas metrópoles, que vivem uma guerra entre o Brasil institucional e as organizações criminosas”.
Nassif afirmou que deve ser estudado como realizar parcerias entre municípios, estados e União para levar os serviços públicos aos bolsões de pobreza das regiões metropolitanas. A questão é saber como “suprir de serviços onde o Estado fracassou”, para se contrapor ao controle pelo crime organizado, disse. “O país está em desconstrução, com o risco de ser dominado por organizações criminosas, e o mercado não tem projeto para Brasil.”
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP