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Precisamos adquirir um senso cibernético para lidar com prós e contras das tecnologias, diz pesquisador

por Nelson Niero Neto - publicado 25/09/2019 17:25 - última modificação 09/10/2019 16:28

Professor visitante do IEA, Donald Peterson estuda o que chama de “vida na era cognitiva”

Donald Peterson - Life in the cognitive era II
O professor Donald Peterson durante sua exposição
Viver na “era cognitiva” significa ter acesso praticamente completo e irrestrito à informação. Mas sua oferta é tão grande que fragmentamos nossa atenção e muitas vezes não sabemos exatamente onde focar. Some-se a isso uma privacidade comprometida, a necessidade de lidar com diversas senhas pessoais, o aprimoramento de softwares e múltiplas interfaces, em constante inovação. Lidar com um quadro tão complexo e dinâmico exige um “senso cibernético”, defende Donald Peterson, professor visitante do IEA.

O escocês apresentou em duas ocasiões, nos dias 26 de agosto e 24 de setembro, o andamento de seu projeto de pesquisa “Life in the Cognitive Era”. A moderação do debate foi do engenheiro Antonio Mauro Saraiva, presidente da comissão de pesquisa do IEA. As profundas mudanças causadas pela tecnologia nos obrigam a encarar dois desafios para o futuro, segundo Peterson. Um deles é a necessidade de se ter em mente que as tecnologias são “facas de dois gumes” — ou, como definiu, podem ser “uma bênção ou uma maldição”. Outra consequência das constantes inovações é a urgência em se repensar o sistema educacional contemporâneo — que, na sua visão, está defasado quando se trata do conhecimento em relação à tecnologia e computação.


Dois lados

As tecnologias têm o potencial de fazer o bem e o mal — muitas vezes, as duas coisas ao mesmo tempo, “misturadas”, diz Peterson. A conectividade, por exemplo, cada vez mais acessível e rápida, nos dá acesso à informação e permite contatos imediatos com pessoas em outros continentes. “Ao mesmo tempo, tanta disponibilidade pode fragmentar nossa atenção, o que causa superficialidade no aprendizado e uma ilusão de conhecimento”, diz. A robótica é outro exemplo: a mecanização de certas atividades pode elevar a eficiência e a produção, mas pode ter como consequência o aumento do desemprego.

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Essa dualidade também atinge aspectos mais simples, do cotidiano, como lembrou o professor Jaime Simão Sichman, que trabalha com computação e inteligência artificial na Escola Politécnica da USP, durante o debate do primeiro encontro. “Estamos armazenando nossa memória fora de nossa cabeça, em dispositivos”, disse. “Recentemente, percebi que não sabia mais o número de telefone da minha mãe. E pensei, ‘mas eu não preciso, está no telefone’. Eu acho que esse termo, ‘eu não preciso’, significa muito. Estamos dando poder para uma entidade externa”.

Para Jaime, ficamos “perdidos” se perdemos a conexão com nossos dispositivos, ao não conseguir contatar ninguém nem acessar informações cruciais. Peterson concordou e reforçou a dualidade entre os benefícios e os malefícios da tecnologia. “Essa dependência é muitas vezes deliberada, porque escolhemos usar nossa energia para outras coisas além da memorização. Antigamente, era comum os estudantes decorarem grandes trechos de texto. Hoje, não há mais essa exigência, e os estudantes ficam bastante aliviados por isso. Mas, de fato, se alguém tirar o plug da tomada, nós simplesmente não sabemos o que fazer”.

Jaime Simão Sichman
O professor Jaime Simão Sichman durante o debate
Se por um lado as demandas da nossa memória diminuíram, as por múltipla atenção aumentaram. Peterson explica que estamos encarando um “dilema da atenção”, uma vez que é impossível tentar acompanhar e saber tudo, mas, em meio a tantas informações, podemos acabar ignorando algo específico que nos interessaria. “Nossa capacidade mental não é suficiente para fazer tudo o que gostaríamos, nem para ficar alternando entre vários objetos de estudo diferentes”.

Como lidar com as eventuais desvantagens e extrair o que há de melhor da tecnologia, então? Peterson diz que os antigos gregos podem ajudar a orientar este caminho. “Essa tentação de ser atraído por diferentes temas de estudo, por exemplo, é algo que os estóicos já pensavam”, disse. “Evidentemente, eles não se referiam à internet. Mas o sentimento é bem parecido”. Ele explica que os gregos sugerem o que chamavam de “desinteresse”, em um sentido positivo da palavra. “É a capacidade de manter sua mente em apenas uma coisa, com regularidade. E depois, deliberadamente, trocar para outro foco. Vivemos um momento em que cabe um ‘novo estoicismo’”.

Esse conceito, também chamado de “estoicismo cibernético” por Peterson, é caracterizado por uma “vida sensata no mundo digital”. “Precisamos, cada vez mais, desse senso cibernético”, disse. “Mas isso exige que tenhamos, ao mesmo tempo, foco e agilidade. Precisamos de uma estrutura curricular que ensine para as crianças hábitos que possam levar a esse entendimento”.

Antonio Mauro Saraiva - Life in the cognitive era II
O professor Antonio Mauro Saraiva foi o moderador dos debates

Educação

Mas o que ensinamos hoje nas escolas em relação à computação poderia ter sido ensinado há 20 anos, diz Peterson. O escocês reforçou que essa não é uma característica particular do Brasil, uma vez que acredita que o Reino Unido passa pela mesma situação. “Já vivemos um momento em que o conteúdo ensinado na escola para crianças não é necessariamente muito útil para a vida adulta”, disse. “Há uma demanda enorme por experts nas áreas que envolvem tecnologia e computação. Quanto é ensinado para suprir isso? Eu acredito que praticamente nada”.

Outro receio para o futuro é o aprofundamento de uma diferenciação social. “Como é muito caro implementar esse tipo de conhecimento em um sistema educacional, há o risco desse aprendizado só chegar aos que conseguirem pagar por ele”.

Peterson reforça, entretanto, que não há como tentar retroceder do ponto que chegamos. “Não faz sentido culpar as máquinas pelos malefícios da tecnologia, porque não somos obrigados a usá-las da maneira que usamos. É uma escolha que fizemos”, disse. “E, ainda que leis de regulação sejam necessárias, esse debate não pode ser visto como algo jurídico ou legal. Não é uma questão de proibir a tecnologia para preservar empregos humanos. É uma questão positiva, de preparação da nova geração para um futuro de convivência sadia com a tecnologia”.

Fotos: Leonor de Calasans/IEA-USP