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Substâncias altamente prejudiciais à saúde estão presentes em diversos produtos, apontam especialistas

por Victor Matioli - publicado 29/11/2018 18:20 - última modificação 04/12/2018 15:29

Os desreguladores endócrinos (DE’s), como são chamados, são substâncias — ou misturas de substâncias — capazes de alterar funções do sistema endócrino tanto do indivíduo contaminado quanto de seus descendentes. O tema foi tratado em um evento realizado no IEA-USP no dia 12 de novembro.
Elaine Frade Costa, José Eli da Veiga e Maria Izabel Chiamolera
Da esquerda para a direita: Elaine Frade Costa, José Eli da Veiga e Maria Izabel Chiamolera

Especialistas de diversas áreas do conhecimento têm voltado suas atenções para uma classe de compostos químicos ainda pouco estudados, mas que apresentam alto risco para os seres humanos. Os desreguladores endócrinos (DE’s), como são chamados, são substâncias — ou misturas de substâncias — capazes de alterar funções do sistema endócrino tanto do indivíduo contaminado quanto de seus descendentes. O que preocupa os especialistas é que eles estão presentes em diversos produtos usados diariamente, como maquiagens, artigos de higiene, alimentos, latas de alumínio, plásticos, borrachas e espumas.

Esses compostos podem estar diretamente relacionados a casos de obesidade, doenças do trato reprodutivo e alguns tipos de câncer, segundo Elaine Frade Costa, médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HCFM) da USP.

Apesar de o termo “desregulador endócrino” ter sido cunhado somente em 1991, os efeitos destas substâncias já têm sido observados há quase 50 anos, contou a endocrinologista Maria Izabel Chiamolera, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), durante um evento realizado no dia 12 de novembro no IEA-USP.

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Elaine e Maria Izabel fizeram exposições no encontro Conversa sobre Desreguladores Endócrinos, que tinha como finalidade entender melhor a atuação dos DE’s e as reais ameaças que eles apresentam para a saúde humana. Entusiasta do assunto, o professor José Eli da Veiga, do Instituto de Energia (IEE) e Ambiente da USP, foi o responsável pela organização e moderação do evento.

Em 1937, muito antes de o termo “desregulador endócrino” ser criado, uma substância chamada Dietilestilbestrol passou a ser comumente usada por mulheres por apresentar efeito antiabortivo. “Um estudo realizado no início da década de 1970, entretanto, descobriu que a droga causou um tipo raro de câncer vaginal nas filhas dessas gestantes”, contou Maria Izabel. Segundo ela, o caso foi o primeiro a ser registrado pela comunidade científica internacional e abriu caminho para outras pesquisas mais profundas sobre o tema.

O que são DE’s?

As principais substâncias

• PBDE’s - Retardantes de Chama Bromados - Encontrados em plásticos, espumas, materiais de construção, carpetes, estofamento, etc.
• PCB’s - Bifenilas Policlorinadas - Encontradas em líquidos de transformadores, capacitores e outros componentes elétricos. Foram banidos nos EUA em 1977 e no Brasil em 1981.
• BPA - Bisfenol A - Monômero plástico usado na produção  do policarbonato plástico. Encontrado em plásticos de cozinha, mamadeira, garrafas recicláveis e superfície interna de latas.
• Triclosan - Agente antibactericida e antifúngico - Encontrado em produtos de higiene, plásticos e tecidos.
• Organotinas - Encontradas em fungicidas agrícolas, venenos contra roedores, pinturas para navios e redes de pesca.
• Estirenos - Usados na produção de plásticos, resinas e borrachas.

O termo foi oficializado em 1991, durante a Wingspread Conference — World Wild Life, organizada pela zoóloga americana Theodora Colborn. “Desregulador endócrino” passou, então, a descrever alterações provocadas por agentes químicos nos sistemas reprodutivos de diversas espécies de animais, principalmente aves, peixes e jacarés.

Depois do evento, diversas outras conferências foram organizadas nos EUA e na Europa para compreender a atuação dos DE’s sob outras perspectivas, como da toxicologia, farmacologia, ecologia, oceanografia, entre outras. “O estudo dos desreguladores endócrinos transcende a medicina, porque é necessário saber muito bem o que está acontecendo em todos os ecossistemas para compreender os efeitos apresentados”, explicou Maria Izabel.

A partir de então, um número crescente de compostos foi inserido na categoria de “desreguladores endócrinos”. Os efeitos dos desreguladores sobre os hormônios são diversos: podem mimetizar ou neutralizar seu efeito, atrapalhar sua produção, liberação e metabolização, e interferir no sistema de sinalização hormonal, contou a endocrinologista da SBEM.

Apesar do conhecimento já adquirido, Maria Izabel ressaltou que as pesquisas sobre os efeitos destas substâncias ainda são muito recentes e, portanto, não têm respostas definitivas. “O maior agregador de produção científica voltado para a área médica, o PubMed, registra os primeiros artigos sobre DE’s em 1995”, explicou. “As pesquisas começaram a ser realizadas em larga escala a partir de 2006.”

Além disso, algumas características dos desreguladores tornam os estudos mais lentos, difíceis e ambíguos. Para Maria Izabel, o efeito transgeracional das substâncias em questão é uma dessas características. “Assim como o Dietilestilbestrol demorou décadas para ser percebido como prejudicial à saúde e proibido, uma série de químicos nocivos que foram largamente usados no século passado devem começar a apresentar seus efeitos agora”, comentou. Outras consequências são ainda mais difíceis de acompanhar, uma vez que não acometem o indivíduo contaminado, mas sim sua prole, como no caso do Dietilestilbestrol.

De acordo com Elaine, os efeitos demoram a se manifestar em parte porque as substâncias se acumulam no corpo, permanecendo em estado de latência. “Os desreguladores endócrinos apresentam baixa solubilidade em água, mas alta em lipídeos”, explicou. “Isso faz com que essas substâncias se depositem e fiquem armazenadas nos tecidos adiposos da pessoa.”

Outra particularidade dos DE’s é o fato de serem mais agressivos durante um intervalo temporal chamado de “janela de susceptibilidade”, contou a médica do HCFM. Segundo ela, o lapso entre o período intrauterino e o fim da adolescência é o de maior vulnerabilidade: “Nesse intervalo as células estão em constante transformação e, consequentemente, mais suscetíveis à ação dos desreguladores”.

Elaine Frade Costa
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Estudos e evidências

Com a intensificação das pesquisas, surgiram novas ocorrências que podem estar relacionadas à ação dos desreguladores endócrinos. Para os especialistas, a relação de causa e efeito é relativamente simples. Eles entendem que, quando alterações fisiológicas geralmente relacionadas a predisposições genéticas são registradas sem alteração nos genes, há um claro indício de interferência ambiental. Estes efeitos que transcendem propensões genéticas são chamados de “epigenéticos”.

Maria Izabel participou de uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), no Paraná, que estudou possíveis efeitos epigenéticos de agrotóxicos. A análise tinha como foco a ação de herbicidas a base de glifosato (substância herbicida mais usada no mundo) nas funções tireoidianas de camundongos. Segundo a endocrinologista, o glifosato atua suprimindo um hormônio que não ocorre em seres humanos e, portanto, era tratado como “inofensivo” pela indústria. Em 2015, entretanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a substância como “provavelmente carcinogênica em humanos”.

No fim do estudo, o grupo de pesquisa da Unicentro observou importantes alterações nas gônadas dos ratos expostos ao glifosato, com redução dos índices de fertilidade, enquanto o grupo da Unifesp confirmou deformações na metabolização dos hormônios tireoidianos dos mesmos indivíduos. Segundo Maria Izabel, o quadro se assemelhava bastante a um caso de hipotireoidismo.

Elaine, por sua vez, orientou uma pesquisa que relacionava a poluição atmosférica da capital paulista à desregulação endócrina. O estudo foi realizado com o apoio do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental (Lapae) da FMUSP e observou o impacto da poluição no sistema reprodutivo de camundongos. A pesquisa comprovou, segundo a médica, que a exposição ao material particulado fino da atmosfera paulistana alterou a morfologia testicular e o número de espermatozóides dos indivíduos.

Maria Izabel Chiamolera
Maria Izabel Chiamolera: "Para alcançar resultados efetivos, precisamos tomar mais atitudes como sociedade"

Regulamentação e prevenção

José Eli ressaltou que apesar de ser um tema consolidado em diversos setores da comunidade científica internacional e objeto de discussões recorrentes da SBEM, os desreguladores endócrinos não têm recebido grande atenção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que deveria supervisionar os debates. Segundo ele, uma busca no site da agência pelo termo “desregulação endócrina” não apresenta resultados.

Outras agências reguladoras internacionais já se posicionaram, de acordo com Maria Izabel. Ela lembrou, entretanto, que alguns membros da comunidade científica engajada na conscientização sobre os efeitos danosos dos DE’s veem os posicionamentos de alerta como “brandos demais”. “O problema é que as agências querem resultados mais consistentes do que podemos entregar, porque pesquisar desreguladores endócrinos não é nada fácil”, completou.

Em dezembro de 2015, a Sociedade Americana de Endocrinologia formalizou algumas recomendações para conter os efeitos dos DE’s, reiteradas por Maria Izabel durante o encontro: educar o público, a mídia e os políticos, buscar parcerias na indústria a fim de criar produtos menos tóxicos, incentivar pesquisas internacionais e grupos de pesquisa mais coesos, e determinar quanta evidência é necessária para as pesquisas.

Ela considera ser muito difícil tomar atitudes individuais para driblar os efeitos nocivos dos DE’s, uma vez que eles nos cercam de diversas maneiras e em vários ambientes. “Para alcançar resultados efetivos, precisamos tomar mais atitudes como sociedade”, alertou.

Fotos: Mairê Ferraz/IEA-USP